Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

17 de dezembro de 2007

Jilin, China, 20 de dezembro de 2002

Tài Tai,

É com pesar que lhe escrevo hoje. E por mais estranho que pareça, o falecimento do nosso pai é o fardo mais leve desse regresso. A morte revela os homens e tenho certeza de que o velho Wang foi “se divertir na Origem de todas as coisas”. Seu rosto continuava o mesmo rosto tranqüilo e rijo de vinte anos atrás. Acredito, entretanto, que o sofrimento, mais que o tempo, impregnou nele espessas rugas. Não tenho a mais vaga idéia do que se passou pela cabeça dele com as perdas dos últimos anos, mas quando olhei pela última vez seu rosto antes que a terra o cobrisse, tive a sensação de que, por trás da gangrena, existiu uma reclusão à vida. Assim como, por trás daquele rosto sereno, se escondiam sôfregos pensamentos.
Perguntei a Aiko sobre o ocorrido e parece que ele convivia muito bem com a ferida no pé, tanto que se enfezava se lhe cogitassem a vinda de um doutor. O machucado não tratou e, nos últimos meses, cresceu. Segundo Poya – ainda viva, e que cuidou dele – o cheiro de carne podre fazia com que poucos se aproximassem da casa. Ela disse ainda que nosso pai conferiu a ela, ainda são, o desejo de escrever a nós dois. Infelizmente, a velha Poya não teve tempo de pedir a Aiko que escrevesse antes das violentas febres e alucinações que acometeram papai.
Recordo vivamente de todos os desejos e palavras dele em relação à morte e, em respeito a isso, não peno sua ida, mas ainda assim me sinto um devedor para com ele e pretendo, para honrar a nossa história, buscar na boca dessas pessoas da aldeia os vintes anos da vida dele. Somente assim poderei enterrá-lo verdadeiramente e ter comigo a paz que ele está tendo. Sinto-me, como o mais velho da nossa escassa família, na obrigação de revigorar a dor de um pai que resistiu às perdas e, ao mesmo tempo, convalesceu com elas. Fui ausente nessas horas e isso me faz não o ser agora. É um fardo, sem dúvida, mas o levarei a cabo. Por isso, querido irmão, voltar à América não é coisa para agora. Estou hospedado na nossa casa e me sinto acometido pelas almas que nela sucumbiram... é uma parte importante do que pretendo.....Tornarei a escrever....e tenha certeza de que compartilharei contigo aquilo que for necessário. Espero que esteja tudo bem por aí. Aguardo notícias suas. Se Tung perguntar como estou, não lhe diga nada do que te escrevo...apesar de meu amigo, não quero partilhar, senão com você, os fatos.

Um grande abraço,
Lao Peng

12 de dezembro de 2007

Jilin, China, 02 de dezembro de 2002


Caros Lao Peng Li e Tài Tai Li.

O motivo desta carta é triste, portanto, serei breve, sem muitas considerações.

Venho informá-los que o pai de vocês faleceu, ontem à noite, devido a uma infecção generalizada, advinda de um corte no pé feito com a enxada, enquanto carpia a lavoura.

Friso, aqui, o quanto tentamos salvá-lo e, principalmente, o quanto ele foi valente, resistindo e lutando bravamente por quase um ano. Infelizmente, devido às sérias dificuldades que enfrentamos aqui não pudemos guarnecê-lo de todos os medicamentos e cuidados necessários.

Em seus últimos dias de vida ele pronunciava incessantemente o nome de sua mãe e, pouco antes de morrer, me fez um último pedido: “Procure meus filhos que estão longe e diga a eles que retornem... eu vivenciei e posso assegurar-lhe que a busca pela sobrevivência não vale a renúncia de uma vida inteira...”

Espero que estejam bem.

Meus sentimentos,

Aiko Koan

22 de novembro de 2007

O traçado das estrelas



"Temos sempre de defender os fortes contra os fracos".
Friedrich Nietzsche


- Olha só as estrelas, Nice. Como são bonitas. Lá no interior, quando eu era menino, tinha um monte delas, cada vez que a gente levantava a cabeça se perdia no clarão da noite. A gente ficava tentando ver os desenhos e ligava os pontos que nem naquela brincadeira de criança. Mas, no fim, todo mundo se perdia nos próprios pontos que traçavam. Agora parece tão pouco no céu de São Paulo, cidade grande tem disso.
- É, parece até que a gente é que nem as estrelas! – silêncio - Eu nunca brinquei disso não. Sempre morei aqui, e é difícil eu olhar pro céu, só quando chove.
Mário e Berenice estavam deitados no piso superior da praça Roosevelt numa noite fria de céu limpo. Algumas estrelas salpicavam em meio a prédios altos e sem vida. Mário adorava fazer isso, não fazia questão de preservar suas vestes. Para ele as estrelas eram as coisas mais bonitas que podiam existir. Berenice aprendeu a admirar as estrelas nos olhos negros dele. O brilho era igual, mas a ela parecia mais quente, mais real, menos distante. Uma sensação que ela não sabia muito bem definir, mas a deixava com os dentes à mostra. Era difícil ela sorrir, somente aquele homem que conhecera em situação tão adversa possuía esta “coisa”.
Assim que o relógio da aurora marcasse uma noite de céu claro e seus afazeres permitissem, ambos caminhavam vagarosamente de mãos dadas até a praça Roosevelt e deitavam no piso superior para olharem as estrelas e conversar um pouco, exercício tão raro em suas rotinas.
- Você deve estar cansada de ouvir, mas eu gosto muito desse seu sorriso!
- Brigada. Eu gosto quando você fala. É bonito, você sabe um monte de palavras.
- Mas que graça tem saber um monte de palavras se não tem ninguém pra falar, e você me ouve.
- Olha só, eu fico toda coisada quando você fala essas coisas. Você tem estudo, fez faculdade, será que se eu fizer também vou falar bonito?
- Que nada, pra mim você já fala bonito. Essa coisa de faculdade é só pra separar as pessoas...cada um fica achando que sabe alguma coisa...pra poder trabalhar....e tudo mais....e no fundo a gente é que está bem, olha só o tamanho da nossa casa, tem mais luz que o teatro municipal.
- Não é que é verdade...gostei.
- Tem gente que chama isso de felicidade, Nice. Eu nunca parei pra pensar nesse assunto. Deve ser verdade.
- Eu também acho.

Os diálogos não se estendiam muito além disso. Eles costumavam olhar, olhar, olhar, apontar, bebericar uma cachaça e sorrir. Se sentiam realizados, cada qual a sua maneira. Depois eles desciam novamente de mão dadas, passavam por entre bares pipocados de pessoas sorridentes discutindo teatro, música e política. Quando eles passavam, fazia-se um silêncio. Alguns disfarçavam, outros prendiam a respiração para não sentir o cheiro de uréia, a maioria olhava rapidamente e desviava o olhar, algumas moças seguravam a bolsa discretamente, outros simplesmente não viam.
- Nice.
- Oi.
- Sabia que tem um monte de gente aqui que é feliz e tem um monte de gente aqui que chora de noite no quarto?
- Aí grande, tó uma força pra você – uma mão estendeu uma moeda de um real.
- Brigado...brigado – respondia Mário com a palma da mão brilhosa.
- É – começou Berenice - e tem um monte de gente que nem pensa nisso não, chega em casa e dorme de bêbado.
Os dois não, continuavam indo, com a serenidade e a satisfação de quem acabara de descobrir no céu um mundo fantástico e maravilhoso. Quatro pés cascudos trocavam sujeira com o chão, um pedaço descolado da calça se arrastava no traço dos dois, blusas duras e manchadas requebravam lentamente, cabelos emaranhados e com pedaços de folhas iam pendulando, as mãos grossas pareciam veludos quando atadas, colunas arquejadas, cabisbaixos eles sorriam por dentro, com faces duras, deitavam embaixo do minhocão entre uma carroça e uma parede pixada e se amavam, compartilhando cascas, fedores e lendias, se amavam. Sem juras, sem gemidos, sem medo e sem preocupações.

1 de outubro de 2007

Sonho findo


Ruas vazias na madrugada fria, sacola de plástico flutuando debaixo do poste, sob o triângulo de luz. Bueiros exalando ares quentes nos pés de putas morimbundas, um mendigo deitado de lado, paletó rasgado, crosta de sujeira no pé dentro do tênis sem sola. Bêbados trôpegos no Anhagabaú, carros tripulados por jovens musculosos ouvindo música eletrônica com o volume no máximo, cortando as luzes entre prédios. Bares povoados de gringos tomando caipirinha, estradas sinuosas, casais de mãos dadas na praia, mulheres exibindo seus lindos corpos bronzeados e oleosos de bruços para o sol. Pescadores de cabelos laranja e bermudas pardas empurrando a jangada, hippies tocando violão e vendendo colares de sementes secas, barraquinhas de comida baiana, capoeiristas no calçadão gingando seus corpos robustos. Crianças de cabelos indígenas nadando nuas no imenso rio, uma mulher de rugas profundas, saia suja e chinelo havaianas, bordando na porta aberta de uma casa de sapê. Senhoras sorrindo nas feiras, tropeiros de colunas eretas e rédeas firmes, um velho de chapéu de couro fincando a enxada e lavrando a terra seca, burros arquejando latas d’água. Brigas de selvagens na rua cheia, um pivete correndo com a bolsa da madame, sirenes costurando os carros, futebol na várzea nua. Pandeiro saltitante na laje, morenas de coxas rijas rebolando suas bundas grandes, sorriso branco na pele escura. Uma menina de doze anos se insinuando na estrada, um velho pitando fumo na cadeira de balanço olhando a plantação. Tratores girando o cereal de mil alqueires.
Visões do Brasil, de uma terra crua se esparramando no continente sob os mais diferentes pés. Era isso que André buscava quando saiu da faculdade e foi dar aula, era isso que pensava quando ouvia Almir Sater e lia Guimarães, Patativa e Veríssimo. Era isso que pensava quando levava seu filho pra passear e o via descobrir o gozo de deitar na grama....

pensava...

buscava....

..........................................................................sonhava...

Voltava.

Certo dia chegou a estender a mão para que uma cigana sem estudo pudesse ler. As unhas sujas da mulher contornavam os traços fracos daquela palma, tão fracos que quase o deixavam sem futuro. Da boca árida e dourada daquele ser vieram as marteladas da sentença, o álibi para um desejo antigo.

“Cê vai fazer três viagens logo logo. E a vida de muita gente vai mudar com isso. Mas você não tem escolha..tá escrito”

Trinta e oito anos de idade, um filho de treze, uma esposa dedicada, um emprego prazeroso. Tudo que um bom cristão desejaria ter, mas não André. Ele queria o vento no rosto, o olhar da camponesa, o pé tocando o chão. Queria se reconhecer na grama calva de uma oca, no purpúreo anoitecer de uma estrada reta.
- Vou até a casa do Walter pegar uma documentação do sindicato, já volto.
Estas foram as últimas palavras que sua família escutou. André já havia arrumado um comprador para seu modesto carro, deixou uma quantia razoável de dinheiro dentro do armário. Não havia bilhete, recado, arrependimento. Havia sim uma idéia que mais se parecia com uma rocha, fixa, imóvel e impenetrável. Ele preparou a mochila, duas bermudas, uma sandália comprada de um louco na Praça da República, uma regata, uma camiseta batida e uma blusa. Colocou na mochila um coquetel de drogas da nostalgia beat entre as quais a vida era a mais perigosa e mais alucinante. Torpe de céu extenso e cachaça vagabunda, André estava prestes a devorar o horizonte com seus olhos famintos.
Ele pegou o dinheiro do banco, jogou-o dentro da mochila, o mesmo fez com o dinheiro do carro, um metrô, a rodoviária. O primeiro passo, uma passagem para algum lugar novo...Campo Grande. Pronto já estava feito, eram duas da tarde o ônibus ia sair às três e meia. Os óculos escuros tipo motoqueiro escondiam um semblante sem expressão, sem medo. Entorpecido. André caminhou por ruas tortuosas até encontrar o bar mais sujo que pode. Pediu o cigarro que há dez anos não fumava e um uísque com muito gelo. Bebeu e fumou, sentiu fluir o passado em suas veias. Um sorriso se formou, mostraram-se os dentes. Um sonho, uma vida, cinco reais e setenta centavos....

Filho da puta, desgraçado vagabundo!!

Uma mulata de lábios carnudos e cabelos revoltos chegou como se fosse desfilar na passarela. A passarela trágica da vida marginal. Tirou o revólver da bolsa, apontou a dez metros de distância para o chapeiro no fundo do bar. Gritava e tremia.

Que porra é essa Judite

Seu filho da puta.
Eu que achava você ia pra casa da sua mãe
Que ficava no trabalho até mais tarde
Achava que você me amava
Eu vendi minha TV pra te ajudar
Briguei com a minha mãe
Agora tô com um filho seu na minha barriga
E você não me diz que tem outra família.
Seu desgraçado.

Visões de um Brasil de casos mil. Judite tremia, chorava, bufava. André não perdeu seu riso, de longe viu a cena e, como um espectador das peças da vida, degustou de seu uísque e dos roteiros perdidos pelo país.

Eu não podia te contar Judite
É um caso de muito tempo,
Num vale nada,
Eu só pago a pensão
Eu num tenho nada com ela...juro

Ahhhhhhhh

Zuniu o grito, estalido surdo.
A bala atravessou o bar
Quebrou o copo de uísque
Descobriu a mina de sangue
Na garganta de André

Olhos abertos, idéia fixa
Viagem de bebida
Viagem de ida
Cenas do real
Sonho findo não sonhado

Retardado

Coisas da vida.

24 de setembro de 2007

Viva!!! A sã descoberta.

Ofereço este texto a um nobre amigo.


Personagens

Breton (31 anos)
Nicolau (21 anos)
Raul (20 anos)
Glória (21 anos)
Virgínia (24 anos)

Cenário:
Ponte Cruzeiro do Sul, marginal Tietê, São Paulo.

Ato único

Cena 1

Estão os cinco debruçados no parapeito da ponte, olhando o rio Tietê. Breton e Glória de mãos dadas, ele fumando compulsivamente, ela arrumando o cabelo periodicamente. Virgínia, quieta, observando algumas manchas no rio. Raul com uma garrafa de vinho em uma das mãos e um cigarro em outra e Nicolau com tiques de passar a mão na cabeça.

BRETON: Não acho que seja assim a vida, as pessoas têm consciência do que fazem, existe uma ética de querer o bem independente de religião. A alma é boa em si só.
RAUL: (dando um gole) Por que você tá falando isso? A gente tá falando do filme que passou ontem.
BRETON: Porque é isso. Você não acha?
RAUL: Sei lá. Não quero pensar nisso agora.
BRETON: (exaltado): Tá com preguiça de pensar! Por isso que você num faz porra nenhuma, num pensa também.
RAUL: (assustado): Você tá bem Breton? Você tá tremendo. Não acho que seja assim também. É que a gente tava falando do filme e você vem com esse papo.
VIRGÍNIA: Eu acho, sabe Ni, que isso aqui é uma visão bonita. Apesar de não parecer, reflete muitas coisas.
GLORIA: É mesmo bem, você está tremendo.
BRETON: Olha o que tá tremendo aqui (segura o saco). Eu tô aqui falando de uma coisa que, se vocês não perceberam, trouxe a gente e o ser humano até os dias de hoje.
NICOLAU: Olha isso, um monte de lixo, o cheiro de podre, carniça, é uma das piores coisas de se ver. É o reflexo da degradação da humanidade. Credo, não sei como você consegue ver beleza nisso.
RAUL: Como assim, trouxe o ser humano até aqui? Que merda é essa que você está falando?
VIRGÍNIA: Mas é aí que está a grande jogada Nicolau. É lindo ver como a humanidade chegou até aqui. Á beleza no podre. Olha só, milhares e milhares de anos, de descobertas, de ciência e um monte de coisa que a humanidade criou e hoje ela se questiona sobre poluição. Não é lindo isso? Eu acho demais.
NICOLAU: Acho que eu não entendi, mas é feio, tô vendo e é feio. Esse papo aí de poluição é foda também. Deve ter merda nossa aí em baixo, você não acha?
BRETON: Puta que o pariu Raul (acende um cigarro). Imagina só, lá no Japão, há muito tempo atrás, eles sempre respeitaram a natureza e uns aos outros. Tinha aquele lance de honra, de tirar o dedinho fora. Isso é respeito Raul, a alma do japonês é mais sincera.
RAUL: Eita, agora que eu não entendi nada. Acho que você tá meio louco.
VIRGÍNIA: Noooossa, sabe que eu não tinha pensado nisso. Que legal, tem merda de São Paulo inteira aí dentro. Quanta merda, isso aqui é uma mina de merda. Riquíssima em matéria orgânica. Tô até emocionada. Imagina só, todo esse rio tem merda que um dia foi de alguém, de pedreiro, de porteiro, de madame, de professor, de camelô, de patricinha, de estudante, de ladrão...e tão todas elas lá, passando uma do lado da outra sem complicação...que demais...
(levanta e grita) VIVA A DEMOCRACIA DAS MERDAS!!!!
GLÓRIA: Ih, tá doidona a Virgínia.
BRETON: Fica quieta Glória!
RAUL: Isso.
BRETON: A alma é desprendida disso tudo. Ela não faz juízo de valores, é universal Raul, os japoneses eram hierárquicos na sociedade, mas respeitavam a alma dos outros. Você nunca viu caras importantes se curvarem diante de camponeses. Isso é respeito, Raul, as almas são um caso à parte.
RAUL: Puta!! Que legal, acho que entendi o que você ta dizendo.
VIRGÍNIA: Viva a democracia das merdas!!!
NICOLAU: Bacana esse seu raciocínio, hein, Virgínia. As merdas são francesas. “Libertê, igualitê e fraternitê”.
VIRGÍNIA: Viva a democracia das merdas.
RAUL: Se as merdas são francesas, as almas são japonesas. (brado) Viva a democracia das almas!!!!
GLÓRIA: Viva!!
BRETON: (brado) Viva a comunhão das almas com as merdas!!!!
NICOLAU: Viva o Igualitê de la merdê!!!! E a merda do Tietê!!!
GLÓRIA: E a alma do japonês da feira.
VIRGÍNIA: E nossas merdas e nossas almas que estão aqui em baixo no Tietê!!!!
NICOLAU: Viva o Tietê!!!
GLÓRIA e BRETON: Viva o Tietê!!
RAUL e NICOLAU: Viva o Tietê!!!
TODOS: (brado) Viva o Tietêêêê!!!! Tietêêê...Tietêêêê




Cena 2


Virgínia e Breton andando na rua, abraçados, ambos com garrafas de vinho nas mãos.


VIRGÍNIA: (ergue a garrafa) Viva!! Viva o Tietê
BRETON: Merdêê!!!
VIRGÍNIA: Ehhhh
(silêncio)
VIRGÍNIA: Não achei que eles teriam coragem de pular no rio.
BRETON: Se a gente teve, por que eles não teriam? Sabe Virgínia, eu tô tão feliz.
VIRGÍNIA: Sabe que eu também, tô aliviada....Gritar faz bem.
BRETON: É verdade.
AMBOS: Viva!!!
(risadas e gargalhadas)

(silêncio, um olha para o outro. Um dos dois diz:)

????: Você tem tomado seu remédio?
????: Não. Não acredito mais naquele psiquiatra. E me dava muito sono aquele remédio.
????: Parou de vez então.
????: É, mas tô muito bem. Olha só, hoje, quantas coisas legais a gente descobriu.
????: Verdade. Isso é muito bom.
????: Demais.
AMBOS: Viva!!!!!!

17 de setembro de 2007

Angústia.

Este texto foi escrito quando eu tinha 17 anos. Momentos conturbados, embriagados e estranhos cercam uma realidade dolorosa. Um adolescente metido a besta não consegue entender o mais simples e complexo questionamento: “O que sente cada ser?” a ponto de gerir sua vida a partir disso. Chocar-se com a realidade do outro é chocar-se com a própria? Vidas moribundas representam necessariamente sentimentos moribundos?.....não, não quis a resposta, apenas vi, senti, vivi.
No fim das contas, uma experiência de escrita interessante (de louco), mas não em sua competência desenvolvida. Conselho meu é que se leia primeiramente os versos, depois só as prosas e, por fim, o texto conjunto verso-prosa. Mas quem sou eu para aconselhar alguém....digo que foi essa a idéia.
Comentários são bem vindos!!! Boa leitura.





Angústia


Os tragos descem lentamente
Em ritmo esparso,
Sacodem o estômago
Fluem descontínuos no deserto de mim.
Encontram meu gélido olhar.
E somam-se os vazios...

As pessoas formigam ao meu redor. Falam, brincam, riem, cantam, bebem, fumam. O bar está repleto deles. À minha frente, um grupo jovem; um rapaz alto de camisa xadrez e espinhas na face inteira...bêbado, outro com uma franja na testa recolhido, introvertido, ombros curvados; uma moça clara, baixa de cabelos chanel vermelho, com uns óculos pretos quadrado, bermuda e uma tatuagem de uma rosa na batata da perna direita, outra gordinha, outra magrinha, outro bêbado,
Outros tantos e, no entanto, pareciam os mesmos.

Adiante, diversos grupos sentados nas mesas, conversando – uns mais, outros menos – ao meu lado o mais instigante: a rua, impossibilitada de ocupação humana devido ao movimento maquinal dos carburadores. E estes, em suas velocidades sem destino, divagavam qualquer tentativa de foco. Saí dali.

Aonde o sentidos se misturam,
A realidade venta, a incerteza compassa,
Risos abraçam o silêncio.
Ondas quebram na garganta,
Gargantas cortam o vácuo;
O vácuo rasga meu tímpano.

Caminhei sozinho por um tempo, tremendo de dúvidas. O vento ardia a superfície de minha pele. Eu de braços cruzados sentia um profundo enjôo, uma náusea existencial: aqueles que me cercam nem ao menos me conhecem, nem ao menos se conhecem. Preocupam-se com o vento, afinal este lhes desarranja os cabelos engomados. Para mim ele é muito mais rijo, sôfrego, torturante a ponto de roubar o doce aroma do jardim que ainda habitava meus pulmões. Eles se preocupam com a música que lhes extasiava como o álcool. Mas talvez por isso sejam mais felizes, menos intrigados e incontestavelmente mundanos. Meus passos me levaram de volta ao mesmo lugar, ao mesmo copo e à tristeza mais aguda. Não eram mais ondas a caminho dos meus olhos, mas um rio de entorpecentes, era muito duro, não queria enxergar aqueles aparentemente felizes. Bebia para ofuscar o que me chegava aos olhos. Tudo piorou.

Almas aladas vagam sorridentes,
Cospem o furor de suas vidas moribundas
Gritos de socorro fantasiados,
Heavy, rock, bob, toque, hard core.
Mugidos universais
De comas unilaterais

Ahhhhhh aquela música é muito boa! Clama uma moça de cabelos vermelhos do meu lado, tirando-me da viagem a qual me haviam compelido. Tento olhar as faces novamente, não consigo! O efeito da ingestão vem à tona, esfrego os olhos...nada. Desespero inabalável. Fecho os olhos, curvo a cabeça. Encontro um breu, uma luz central indicando uma escada que desce – provavelmente a tampa de um bueiro – desço. Lá nada é igual...o silêncio é paz, calmaria, dúvida. Entre um escuro e outro surgem dois claros olhos, a ponta de um nariz delgado...você. Um olhar, um sorriso, um gesto e estamos flutuando no breu, no escuro, no nada. Dois corpos, ou um...não sei mais. Enlevo de névoa e vento nos canaviais, a gente flutuando, subindo, subindo, subindo até o ventre de Eros. Fúnebre sensação...intenso desejo. O mundo dessa cabeça retardada é muito melhor, é mais vida, é mais calmo, é mais mundo....não posso, não quero não devo, não posso...tarde demais. Levantei a cabeça...o fim.

E a ilusão do mundo daqui
Galga vida no mundo de lá
Sonhos, álcool, misturas bipolares
Pesam, comprimem, trancam meus olhos
Para não mais abri-los.

Vitor Fabricio (23/05/2004)

3 de setembro de 2007

Um Dia

Hoje é um dia.....mais um dia......
Dia do caminhoneiro, do cortador de grama, do executivo, do bandido, do padre, do senhor, do corrupto, do mendigo, do caridoso, do assaltante, do estudante, do aniversariante, da mulher, do homem, da criança, do bebê, do defunto. Dia de Maria, de José, João, Severino, Adamastor, Rosa, Cleide, Paulo, Cezar, Conceição, Clara, Rodrigo, Joe, Lucas, Raquel, Larissa, Emanuel, Joaquim, Lourdes....Vitor... dia de tudo e de todos.
Dia de fortes batimentos. Dia de corpo pesado, água turva. Dia de outra imagem no espelho, de esclerose consciente. Dia de sol, de calor frio, dia de passos firmes no vazio. Dia de sobrancelhas serradas cortando pulsos, rasgando risos, tombando olhares. É um dia da palavra seca, da buzina aguda, das pessoas sós, do chiado surdo, do incompreendido, do desvalorizado, do medo, do furor, da vontade cega, da escrita louca, da destilação fétida, da rotina vã, labor inútil, bocas mudas.

Dia de pulsação
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..............................................de confusão.....
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..............inquietação......................................
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...............................................Persuasão.......
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Rebelião.........................................................
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Chão...............................................................
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Vão.
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Dia como um dia de muitos mais. Um dia que jaz.

Dos dias sem paz.

28 de agosto de 2007

A última consulta


- Sim, e como você se sente?
- Como assim?
- Como você se sente, como pretende assimilar isso? São poucas as pessoas que conseguem chegar aonde você chegou.
- Não sei ainda, estou com medo doutor.
- Medo de quê?
- Não sei, minha cabeça nunca foi boa, você é a prova disso, cuidando dela todo este tempo.
- Sim, não há nada demais com sua cabeça.
- Agora não há mesmo.
- Isso.
- Tudo vai mudar doutor, tudo. Como é bom saber disso.
- Está se sentindo bem?
- Se estou me sentido bem? Claro que estou. Anos e anos com estes tormentos na minha cabeça e pela primeira vez vou conseguir me livrar disso. Muito obrigado doutor.
- Não precisa agradecer, você pagou por isso.
- Acho que a primeira coisa que vou fazer é falar para Márcia, ela precisa saber.
- Sim.
- Como será que ela vai receber isso?
- Se você souber contar, ela vai ficar feliz. Entenda, a cabeça de uma mãe que perde o filho nunca mais é a mesma.
- A gente nunca mais conseguiu transar doutor.
- Sempre te disse que é necessário um tempo para que se supere o trauma.
- São três anos já.
- Não fique aflito.
- Não, não estou. Quando eu contar isso para Márcia ela vai entender. Assim como o senhor fez comigo.
- Vá com calma.
- Se não fosse você para me ajudar, para me fazer entender esses tormentos.
- Eu não ajudo, muito pelo contrário.
- Claro que ajuda, você me fez entender. É uma imagem, eu tenho certeza, não tem como meu filho vir falar comigo.
- Este é um momento delicado.
- Eu gostava, chorava quando ele vinha com aquele rosto liso na minha direção, sorriso aberto.....e quando ele ia era duro, duro demais suportar a verdade.
- Isso não vai mais acontecer.
- A Márcia disse que o viu ontem, será que ele nunca mais virá falar comigo?
- Não, não vai.
- Mas.....e agora?
- Você deve se acostumar.
- Mas eu quero vê-lo de novo, doutor.
- Lamento, você acabou de cumprir a última etapa do processo. Quando sair daqui, terá um mundo cheio de possibilidades. Sua vida não será mais a mesma.
- Desfaça isso, quero ver meu filho.
- Existem coisas indissociáveis meu caro. Quando me procurou, disse que queria acabar com os tormentos, voltar a viver normalmente. É isso que estou te proporcionando hoje. Quanto ao seu filho, era o único meio de evitar a dor que tanto o atormentava. Seu sofrimento era fruto da realidade se confrontando com uma ilusão, uma destas partes deve não mais existir para que se restabeleça a normalidade.
- Obrigado por me dar a realidade. Sei que será duro, mas temos que passar por cima disso. Márcia vai entender.
- Pode ser que sim, pode ser que não.
- Vou tentar.
- Isso, tente.
- Muito obrigado, doutor.
- Não agradeça rapaz, fiz somente o que me pediu. Agora, se me permite, tenho que fazer uma visita e estou atrasado.
- O senhor vai para onde? Quem sabe posso te dar uma carona.
- Vou ver meu filho, não se preocupe, estou de carro.
- Sim. Deve ser estranho para o senhor ir conversar com seu filho com tantos casos de perdas que você atende.
- Não é não. Meu filho morreu há vinte anos, eu estou indo para o cemitério na verdade.
- Mas............
- É isso mesmo jovem. É uma pena que tenha escolhido a ilusão. Eu quis a realidade, por mais dolorosa que seja, cada um tem sua escolha. Acredito que existem dores que não podem nem devem ser apagadas....nunca. Adeus meu caro, siga seu futuro.

21 de agosto de 2007

Um chopp, um elástico e uma raiva

Ele sentou no balcão do Pub sozinho, com sua discrição executiva e cansaço nas sobrancelhas, colocou o paletó no colo e abriu um botão da camisa:
- Um chopp claro por favor.
Ela estava do outro lado do balcão. Sorriso tímido, cabelos bem presos, óculos aprumados, de roupas sóbrias, papo descontraído com amiga e aparelhos nos dois jogos de dentes com um elástico prendendo os dois
- Olha só que homem lindo acabou de sentar do outro lado – a amiga logo viu.
- É mesmo, bonito ele. – “nunca que eu consigo sair com um homem deste” pensamento pessimista.
“ainda tenho que pegar esse transito para ir embora” e ele dava goles profundos no chopp. Ficava olhando as pessoas, como elas conversavam, seus trejeitos, seus sorrisos. Aquilo era realmente desestressante. Luzes baixas, madeira, música agradável e mais um chopp.
- Amiga, vou ali e já volto.
Ela ficou sozinha no balcão e, como que por impulso, não parava de olhar para ele, às vezes perdia o pensamento, quase sempre voltava à tona e ficava envergonhada de si mesma. Então um gole no seu copinho de chopp dava uma certa espairecida. Mas aqueles elásticos eram horríveis, mal ela abria a boca, os elásticos puxavam de volta. Para beber o chopp ela levava o copo até a boca, fazia um biquinho de peixe, encostava o copo, uma leve erguida, uma chupadinha e lá vai o chopp mais espumante do que veio. Claro que todo procedimento era devidamente verificado para que as pessoas não percebessem, caso contrário ela ficaria extremamente sem jeito. Naquela altura do campeonato, tomada pelo furor daquele homem lindo e pelos copos que ela havia tomado, se esqueceu do procedimento e bebeu como se sua boca estivesse livre, leve e solta. Até que não foi tão desastroso, ela percebeu que era plenamente possível abandonar toda cerimônia.
“Hmm, ela não percebeu que ficou com bigodão de espuma, será que ninguém vai avisá-la?”. Aquilo realmente o incomodou, os garçons passavam de lá pra cá, os atendentes dentro do balcão também e nada. Ela estava com um sorrisinho e olhava descontraída para os lados, olhadinha rápida para ele e desvio do olhar. Torneira, camiseta do garçom...ele...desvia rapidinho. Quadro na parede, loira passando, ele...desvia rapidinho. TV, copo, gole, mais bigode, ele. “Acho que eu olhei demais pra ela, ela não pára de olhar para mim” e ele não se segurava, olhava o fundo do copo, a bunda da loira, o bigode...desvia rapidinho. Fundo do copo, bunda da loira, bigode...desvia rapidinho. Fundo do copo, a loira foi embora, bigode. “Ih, ele ta olhando pra mim, ai meu deus, postura”. Deu uma erguida no ombro, mais chopp e bigode. Os olhares se encontravam volta e meia e rapidinho desviavam. “Não vai ter jeito, tenho que avisar”. Olhou para ela, ela viu, a mão dele do lado do copo deu uma erguida, acenou. “Ai! Será que é comigo?”. Ela olhou para trás, não havia ninguém, olhou de novo para ele e o viu apontando para a boca dele e dando uma lambida na parte de cima dos lábios. “Ããhh. Não acredito, ele tá dando em cima de mim!! Ai meu deus e agora, isso nunca me aconteceu antes”. Ela ficou rubra, olhou pra baixo, mas sabia que aquela era uma chance única. Endireitou-se na cadeira, soltou o cabelo, deu uma chacoalhada no pescoço, jogou-o para trás, cotovelos na mesma inchando o decote, olhar fixo nele, passou o dedo indicador na borda do copo, deu uma fechadinha de leve nos olhos e o sorriso mais sensual que podia dar. “Puta que o pariu, ela não entendeu, que que eu faço? esquece, não olha, não olha”. Não tinha como, olhou de relance e viu ela com aquele bigode cada vez mais volumoso dar uma piscadela com a cabeça inclinada. Uma gota de suor desceu de sua costeleta, ele ficou vermelho, arregaçou a manga da camisa e fixou-se no copo. “Que merda que eu fui fazer. Não olha mais, pronto”. Virou-se para o outro lado, o garçom passou, ele teve uma idéia. Interceptou-o, pegou um papel, uma caneta, rabiscou algumas palavras, devolveu, disse algumas coisas no ouvido do rapaz. “Ele escreveu um recado para mim, não acredito, ai! O garçom ta vindo pra cá”. Conforme esperado, bilhete entregue, ela abriu avidamente, leu e arregalou os olhos. “Gente!! É pra eu me limpar....como ele sabe disso, nossa, que homem”. Ele continuava de costas para o balcão, aguardou uns minutos, virou-se e a viu debruçada escrevendo algo, mas com um belo bigode. “Tá de brincadeira essa menina. Será que não consegue entender?”. Ele desistiu, pediu a conta e quando esta veio, veio junto um bilhete. Ele abriu, leu. “Ela num entendeu nada, não é possível”. A raiva se apossou do discreto moço, saiu a passos largos em direção ao caixa. Não conseguia ao menos tirar o dinheiro da carteira. Pagou. Estava saindo quando parou e muito sem pensar caminhou firmemente, virou, foi ao lado do balcão, agarrou a moça, deu-lhe um beijo de arrancar o bigode, afastou a cabeça, olhou....ahhhh pronto, não estava mais lá...adeus bigode. Ela, sem nenhuma reação, olhos bem abertos, boca mais ainda, viu ele abrir um grande sorriso, virar-se e ir embora.

13 de agosto de 2007

A magia Clara - Final

Clara gritava e balançava os braços desesperadamente. O carro não diminuiu o farol e veio devagar. Clara se levantou, foi dar seu primeiro passo quando viu que o carro não ia parar. Era uma caminhonete vermelha, passou como se não os percebesse. Clara pôde ver que um homem dirigia. Quando a caminhonete passou, viu uma corda amarrada na traseira e atrás da corda o Fiat 66 sendo rebocado com uma mulher guiando. Os braços de Clara pararam no ar, apenas o rosto acompanhou a ida dos dois carros e, acima deles, no horizonte, o dia raiando. Ela não emitiu um som, não gritou, não esbravejou. Apenas olhou para Rodrigo desacordado, ou dormindo....decidiu, colocou sua jaqueta em cima dele e começou a caminhar em direção à cidade. Seus joelhos sentiam o peso do corpo mais do que sentiriam normalmente. Os pés doíam, o corpo amolecia...ela não estava mais ali. O rosto sem expressão galgava passos cambaleantes...ela seguiu. Encontrou, por fim, um bar quando o sol já se mostrava.
Chegou e seu corpo se deixou cair no balcão em cima dos cartões promocionais. As poucas pessoas que lá estavam pararam de mastigar seus pães de queijo...apenas olhavam o estado deplorável da jovem. O dono do bar se aproximou, deu uma tocada no ombro dela – moça...ei moça..que que aconteceu? Clara ergueu len-ta-men-te o rosto, se olhou e, antes que pudesse responder, viu grudado em sua mão o folheto do restaurante de sua amiga...parou, olhou e virou para o dono:
- Telefone - Foi o que conseguiu dizer. O homem apontou para o orelhão ao lado do caixa.
Ela foi, ligou a cobrar, trocou rápidas palavras com quem estava na linha, desligou e saiu cambaleando. As poucas pessoas que estavam no bar se olharam e voltaram a mastigar seus pães de queijo. Clara esperou Alice chegar no posto ao lado. Não demorou muito e uma buzina. Era Alice:
- Meu deus do céu menina, que que te aconteceu? – Alice ergueu pelo queixo o rosto pálido de Clara e jogou seu cabelo para trás. Clara fracamente pronunciou:
- Depois te explico...temos que pegar uma pessoa na estrada.
Alice ajudou Clara a entrar em seu carro, entraram na estrada e em pouco tempo viram o corpo de Rodrigo estendido no mesmo lugar em que estava. Rodrigo não conseguia se mexer, apenas seus olhos semi-abertos puderam acompanhar o carro, as pernas e seu corpo sendo erguido. Com esforço, Alice conseguiu colocá-lo no carro. Seus olhos viram os de Clara e os dois se fecharam juntos.


* * *


Rodrigo abriu os olhos, estava num quarto bem decorado, de moletom, limpo e desnorteado. Colocou-se na beira da cama, passou a mão no rosto, voltou ao mundo, levantou, foi até a janela e viu um bonito jardim. Ouviu vozes vindo da sala, saiu do quarto e, seguindo o som pela longa casa, entrou na sala:
- Olha que está aí – falou uma mulher que ele desconhecia. Jovem, loira e bonita.
Clara estava com ela no sofá da sala. Bem vestida, arrumada e aparentemente saudável. Clara levantou feliz e deu-lhe um abraço:
- Como você se sente?
- Bem
- Que bom, essa é a Alice, amiga de quem eu lhe falei. Foi ela quem nos resgatou.
- Nossa, não lembro de nada.
- Tudo bem – interveio Alice – o que importa é que estamos todos bem. Vamos tomar café.
- Que dia é hoje? - perguntou Rodrigo. Era um bonito dia.
- Hoje é quarta e são oito da manhã...você dormiu a terça inteira e ficou só no soro, tá na hora de comer alguma coisa – disse Alice com seu jeito divertido.
Comeram uns biscoitos, uma frutas, café, leite, tudo estava muito bom.
- Rodrigo, Clara me contou um pouco dessa história de vocês...que loucura hein, mas pode ficar tranqüilo que tenho uma vaga pra você lá no restaurante e, por enquanto, você pode ficar por aqui enquanto não arruma um lugar para ficar – Alice era uma ótima pessoa.
- E você Clara? – perguntou Rodrigo um pouco triste.
- Bom, eu vou embora.
- Pra onde?
- Primeiro, pra rodoviária – disse rindo e passando a mão no rosto dele – você vai ficar bem, tenho certeza.
Rodrigo não respondeu, acreditava no fundo que pudessem ser felizes em uma casinha no interior do Mato Grosso. Queria a companhia de Clara, mas esqueceu de compartilhar com ela. A comida desceu arduamente, ele olhava Clara com um brilho diferente nos olhos e um sorriso que não vira há muito. Curtiu o momento daqueles dentes a mostra. Ela parecia tão dona de si...Rodrigo desejava ser daquele jeito...desejava aprender a ser daquele jeito...mas continuou calado.
- Bom gente, tenho que ir ao restaurante. Clara, não posso te levar na rodoviária, mas te deixo no ponto de ônibus, tudo bem? E Rodrigo, tem umas roupas lá em cima para você. Vista uma delas e vamos comigo, já vou te mostrar algumas coisas do seu novo emprego.
Eles entraram no carro, Rodrigo em silêncio, as moças conversando. Logo estavam no ponto de ônibus. Um aperto desolador comprimiu o peito de Rodrigo, o acaso que o fizera conhecer aquela pessoa, que o fizera apaixonar-se, que o trouxera àquele lugar e lhe dera uma vida diferente agora escorria pelas mãos com uma naturalidade incrível. Desceram do carro. Clara deu um longo abraço em Alice, trocaram palavras, Clara agradeceu por tudo. Depois virou em direção a Rodrigo, ele estava paralisado...queria falar, queria segurá-la. Um longo abraço nele:
- Se cuida viu! – ele esperava muito mais
- Tá! Pode deixar...Obrigado por tudo. Você é uma pessoa maravilhosa...vou te ver ainda..pode ter certeza...não vai ser fácil ficar sem você.
Clara sorriu, passou a mão no seu rosto.
- Fica tranqüilo...tchal.
Ela deu sinal para o ônibus, subiu e acenou se afastando...não teve beijo...não teve choro...apenas o fim daquilo tudo.



* * *



Clara não desceu na Rodoviária, parou no primeiro posto da rodovia. Caminhou a passos lentos e olhar distante. Entrou na lanchonete do posto, pediu uma água e começou a bebê-la. Ouviu então uma voz feminina atrás dela:
- Corajosa você hein moça...levou a cabo o prometido.
Clara continuou olhando pra frente, deu um gole da água e depois um leve riso.
- Corajosa? Eu? Que é isso...eu não tenho a coragem de comer bolacha Maria de calcinha e sutiã na varanda do apartamento – e se virou.
Estava lá... Judite, com aquele corpo esbelto...abriu um sorriso e sentou-se à mesa.
- Onde esta seu namorado? Perguntou Clara olhando para fora.
- Olha ele lá entrando – apontou Judite para a porta.
Clara virou novamente e viu a figura altiva do homem caminhando levemente com uma cerveja na mão. Ele chegou, sentou do lado de Judite, deu lhe um beijo:
- E ae Clarinha! Tudo bem? Que sufoco hein! Exclamou o homem.
- Tudo foi só um momento de dificuldade, mas você está muito bem para um homem morto Dudu – falou Clara rindo.
- Pois é, não foi fácil não, achei que não conseguiríamos.
- Você me ensinou bem a atirar na cartucheira...fiquei com medo de verdade de você não ter trocado as balas.
- Relaxa, deu tudo certo no fim das contas.
- E agora, o que vão fazer? – perguntou Clara – Vai dizer que vocês vão pro interior do Recife...quase ri com essa.
- Vamos pra Bahia, acho lá é um lugar bom, podemos nos ajeitar lá com esse dinheirinho da Judite. E você?
- Ainda não sei...essa história de Recife me fez pensar...acho que vou pra lá, mas não agora.
Eles se levantaram, saíram e caminharam até os carros. Dudu foi até a caminhonete vermelha, abriu a porta, tirou a bolsa já conhecida de dentro e entregou-a a Clara. Ela deu uma olhada, viu as notas de cem reluzentes:
- Obrigado pela carona ontem viu – disse Clara colocando a bolsa de volta no carro.
- Por nada! O mérito foi todo seu disso tudo. Sabe, eu ficava me perguntando que magia que essa menina tem que consegue cativar as pessoas. O rapaz ficou louco por você.
- É, apesar de eu ter me tornado mais astuta, continuo como antes! Disse Clara, sem jeito – Então, até Dudu, boa sorte pra ti...e vê se da próxima vez não fala para os fugitivos me ligarem – deu uma boa risada.
- Só se for por uma causa nobre.
Eles se despediram. Dudu entrou com Judite no Fiat 66. Clara entrou na caminhonete, colocou um óculos escuro, ligou o som, o carro... buzinaram um para o outro e seguiram em direções contrárias, cortando suas próprias estradas.

FIM

Clique aqui e ouça a música "Capitu" para o fim. Depois comente por favor o que achou da história.
Muito obrigado aos meus seis leitores.
Abraços

7 de agosto de 2007

A magia Clara (VII) - Loucura

- Meu deus do céu, como que eu fui deixar o dinheiro no carro... puta que o pariu, como eu sô burro...e agora? – Rodrigo praguejava dando chutes no pneu do carro.
O medo, a dúvida e o desespero dominavam todo e qualquer ar que invadia os pulmões. Há pouco, estavam Clara e Rodrigo em um quarto de hotel num lugar inóspito, fugindo de quem os procurava e deles mesmos. Não tinha como alguém saber daquilo, a menos que estivessem sendo seguidos desde muito tempo. E por que então a pessoa – maldita que a seja – que roubara o dinheiro do porta-malas não os matara? A menos que esta queira vê-los vivos por algum motivo. Será que estava por ali ainda? Ou será que, por descuido, alguém vira uma mala suspeita na hora em que entraram no hotel? Nada poderia se concluir naquele momento, senão que estavam perdidos e quase sem nenhum dinheiro.
- A gente não sabe o que aconteceu Rodrigo, mas não adianta se desesperar...quem quer que seja levou esse dinheiro, não nos fez nada e ainda temos o carro... nada aconteceu com a gente...esse dinheiro foi o grande causador de toda essa história, às vezes acontecem coisas que são sinais para nos ajudar.
- É fácil falar isso, essa coisa era a única garantia que eu tinha de viver tranqüilo por um tempo. Tem alguém aqui fora que veio buscar isso e não vão deixar barato por eu ter roubado esse dinheiro.
- Tá, mas não tem ninguém aqui, vamos pra cidade e podemos vender o carro, você pega esse dinheiro e fica um tempo escondido..não vai mudar nada...isso era um fardo....vamos embora daqui.
Rodrigo com a cabeça baixa no capô do carro apenas ouvia.
- Vai, entra, eu dirijo, vamos embora.
Ele entrou sem dizer uma palavra sequer, extremamente transtornado. Clara, antes de ligar o carro, olhou piedosamente para o rapaz, deu-lhe um beijo carinhoso na bochecha colocando a mão em seu rosto:
- Calma...fica calmo – virou-se para o volante, ligou o carro e arrancou.
O percurso do hotel para a cidade foi denso como lama. Nada se falou, nada podia ser dito. Adentraram na frieza das casas simples que cercavam a rua e nos olhos dos transeuntes, curiosos e famintos, a sugar o calor dos corpos. Logo veio o asfalto, alguns prédios, comércio, jovens rindo, velhas andando. Clara parou o carro na frente de uma concessionária de veículos – já volto – falou seca e preocupada.
De dentro do carro, Rodrigo pôde ver e moça gesticulando com o homem que parecia ser o dono do estabelecimento. Ela apontava para o carro e falava com veemência. O homem de rosto fechado olhava de longe...cara descrente. Quem iria querer um carro daqueles...tolice acreditar que conseguiriam vendê-lo. Não demorou muito e Clara voltou desolada, colocou a cabeça na janela do carro:
- Sem possibilidades. Ele disse que vai ser difícil a gente vender isso aqui...bom, a gente não tem tempo pra esperar. Quanto sobrou do troco do hotel? A gente come alguma coisinha baratinha e abastece – ela deu a volta, sentou ao volante, olhou a situação do tanque, não era das boas, afinal andaram muito de São Paulo para Pontaporã.
Ela sabia que não daria para encher o tanque nem para chegar à cidade encontrar sua amiga...não queria a lucidez daquela conclusão...preferiu não compartilhar o drama com Rodrigo. Olhou para ele.
- Trinta e um reais e sessenta centavos – falou Rodrigo, com a mão curva e o dinheiro amassado – mais um maço de cigarro e um isqueiro.
Clara continuou olhando com o rosto perdido. Ligou o carro, saiu...cidade...casas..pessoas...estrada...mato...rodovia e parou no posto da saída.
- Coloca trinta reais para mim por favor – pegou o dinheiro da mão de Rodrigo que mantinha o olhar perdido na frente segurando o puta-que-o-pariu – vou pegar alguma coisa pra comer.
Pagou o frentista, foi à loja e voltou com um salgadinho. Entrou no carro, colocou-o no colo de Rodrigo e partiram.
Avançaram estrada adentro...haviam dormido até tarde, estavam descansados, mas a noite começara a mostrar sua cara. Clara não quis interromper os pensamentos de Rodrigo, mas colocou a fita da Rita Lee e seguiram viagem noite adentro. A estrada estava deserta. De repente, Rodrigo começou a dar risada, começou tímido, mas logo gargalhadas.
- Ai ai ai quer saber..foda-se esse dinheiro...você tem razão. Às vezes acontece um monte de coisa boa e a gente não curte porque está muito preocupado. Sabe, vai ser legal trabalhar num restaurante...uhhhuuuu!! gritou e aumentou o volume do rádio...“Um belo dia resolvi mudar e fazer tudo que eu queria fazer”. Rita Lee cantava...uhuuuu!! repetiu Clara.
Selaram um beijinho e balançaram a cabeça. Um momento de euforia...o ponteiro da gasolina estava piscando e estavam num caminho alternativo sem iluminação e sem casas. Não demorou muito e o carro deu sinais da seca, foi parando..apesar disso, estavam bem humorados:
- Acabou a gasolina – falou virando o pescoço.
- Hiii – a lucidez não visitava Rodrigo há muito – falta muito?
- Mais uns quarenta e cinco minutos no ritmo que a gente estava.
- Vamos a pé...depois a gente vê o que faz.
- Tá.
Parecia loucura, mas estavam em comunhão dela. Pegaram a lanterna, blusas – fazia frio e acabara de chover – fecharam a porta, deram as costas ao carro. A noite, apesar de sombria, trazia as nuvens nas poças d’água passando rapidamente na frente da lua, mas os passos cegos faziam chacoalhar toda imagem. Caminharam bem e descontraídos por uma hora e meia, fumando e conversando. Depois disso...silêncio...dores nas pernas...bolhas nos pés molhados...cansaço e começaram a cair grossos pingos do céu anunciando uma tempestade. Foi-se todo resquício de loucura...a chuva veio forte...só tinha mato, nada de árvores, nada de casas...nada. O frio cortava o rosto dos dois e fazia trincar o músculo de suas pernas...raios estouravam no horizonte e iluminavam o tamanho do percurso. Meia hora de tormenta e Rodrigo cai no chão desmaiado. Não tinha comido nada e recusara o salgadinho. Clara, com o cabelo ensopado no rosto, agachou do lado dele. Os músculos da coxa retraíram...ela deu um grito, sentou-se segurando a dor, voltou-se para o rosto dele:
- Rodrigo!!Rodrigo...acorda – tentava fazer sua voz ser audível diante da chuva e dava uns tapas em seu rosto.
Rodrigo voltou a si. Muito fraco...respiração ofegante...ele não ia conseguir. Faltavam ainda uns trinta minutos para chegarem ao começo da cidade. Clara deitou-se do lado dele, virou o seu rosto para que conseguisse respirar, passou um lado da jaqueta em volta de seu tórax e repousou. Logo que a chuva parou, Clara foi incomodada por uma luz. Não, não era o dia amanhecendo. Um farol alto de um veículo vinha na estrada em direção aos dois. Clara, com esforço acenou.
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Continua...........último capítulo semana que vem.

30 de julho de 2007

A magia Clara (VI) - Um centímetro

Não era um dia comum, era o dia do porquê, dia dos olhares desencontrados, dia da palavra curta, dia da lágrima espontânea, dia dos carros na rodovia, dia de Clara. Depois de uma longa e turbulenta noite, os corpos exaustos descansaram feito céu. Entretanto o céu não descansou, sua perenidade estúpida fez com mais um dia surgisse para quem não o desejava. Os olhos de clara gemiam, oravam a prece sôfrega do horizonte distante. O cobertor amassado trazia a tormenta lucidez da morte ocorrida. Como por um pacto oculto, não se falou de Dudu. Depois do longo banho, Clara sentou na cama suja do hotel, perdeu a vista nas costas despidas de Rodrigo que estava na janela. Ele virou, Clara retornou ao mundo:
- É melhor você voltar para sua casa, eu já te trouxe muitos problemas – falou de forma ensaiada e direta.
Clara não respondeu, manteve o corpo estático.
- Eu te coloquei numa roubada e não quero que te aconteça nenhum mal, sou um fugitivo e não sei o que vai ser de mim daqui pra frente. Você tem que voltar.
Alguns segundos depois:
- Agente vai pra cidade, vende o carro e vamos de ônibus até o Mato Grosso do Sul, lá tem uma amiga minha que é dona de um restaurante. Eu peço para que você trabalhe lá, você passa um tempo com uma vida diferente, depois vê o que faz.
- Você não está entendendo, é arriscado pra você ficar andando comigo.
- Tudo é arriscado Rodrigo, é arriscado eu ficar em casa, é arriscado eu andar na rua, é arriscado viver. Você acha que estaria aqui se tivesse medo de correr riscos
- Você e eu temos uma vida pela frente, não acho certo se meta com um perdido que nem eu. Você tem uma família que gosta de você, tem estudos, tem grana.
- E eu vou ficar em casa, levando a vida que eu levo e esperando uma visita surpresa do tempo pra me matar.
- Não, mas você pode se dar mal, eu não quero isso. E depois que eu conseguir esse emprego que você falou, o que você vai fazer?
- Sei lá! Vou sair por aí.
- Você é muito sonhadora
- Isso é ruim?
- É!
- Porque?
- A vida não é assim Clara.
- E o que ela é então? Me responde – o choro subiu, a voz também – você acha que a vida é previsível? Você pode até prever pra quem você dá as cartas numa partida e quem dá as suas cartas?
Silêncio.
- Eu estava em casa anteontem e matei meu primo e você me diz que voltar pra casa é a melhor coisa a ser feita. E isso que aconteceu, eu esqueço? Fácil né?
Rodrigo manteve se em silêncio, respeitou o transtorno de Clara, se aproximou, deu-lhe um abraço, sentiu o angustiante soluço dela até que este se acalmasse, curvou as costas, pôs-se à frente dela, a mão subiu até o pescoço, o olhar penetrou a alma;
- Eu gosto de você, será que é difícil você entender que eu quero seu bem, por mais que eu queira que seu bem fosse do meu lado sei que não é.
O rosto de Clara assumiu uma feição séria e surpresa, a cabeça esvaiu. Ela se aproximou lentamente com o olhar fixo, transcendeu com a boca a um centímetro da dele. Ele venceu a distância e a languidez do beijo que se deu fez atar seus corpos.
A cama acolheu o longo beijo, o calor dos corpos se despindo demoradamente e o suor calado dos dois. Certamente este fora o ápice de sua longa existência e experiência. Quando Clara acendeu um cigarro a cama também o fumou. Abriu suas fibras e sentiu fluir a essência daquela fumaça. Clara olhava a brasa do cigarro. Rodrigo admirava a fumaça saindo de sua boca. Depois de um tempo juntos em comunhão de pensamentos Clara olhou para ele:
- Temos que ir.
Ele consentiu. Levantaram e foram se banhar.
Arrumaram as coisas, desceram, pagaram a conta e rumaram para o estacionamento. Quando chegaram no carro Rodrigo imediatamente viu a porta do porta-malas arrombada e encostada. Seu coração deu um salto. Clara estava olhando para o outro lado e não percebeu o desespero dele. Rodrigo abriu a porta e o que ele temia tinha se confirmado.
- Puta que o pariu!! – não se conteve
- Que foi Rodrigo – Clara perguntou depois do susto
Ele virou para ela, estendeu a mão indicando o porta-malas. Ela se aproximou e viu, ou melhor não viu. Não havia nada lá...o dinheiro fora roubado. Nada do que estava dentro do carro tinha sido levado, apenas o dinheiro. Pavor, foi o que Rodrigo sentiu. Clara ficou paralisada.
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Continua - Penúltimo capítulo semana que vem

24 de julho de 2007

A magia Clara (V) - Co-incidências


Não há saída!! A terra é fim de tudo! Dizia o vô de Clara desde que ela era pequena. As palavras martelavam em sua cabeça enquanto o caixão cumpria a frase e seu avô era regado pela terra úmida. Curiosamente o padre orava na lápide. Clara nunca fora cética como o vô, se perguntava em momentos de escuridão no quarto, se aquele vazio imperador não significava algo, se aquilo tinha sentido. Clara acreditava no destino, na morte pré-determinada e que cada pessoa tinha sua hora e vez. Acreditava que o destino lhe faria conhecer uma pessoa maravilhosa e que talvez pudesse ser feliz com ela por um tempo. Acreditava..... a solidão, o desalento, as desilusões de sua vida e as suas perdas enterraram o vislumbre. Clara se tornou uma pessoa mais astuta, mais pensativa, mais quieta, reservada e sensível. Passou a encarar a morte com uma certa naturalidade casual. Mas o caso era outro, um corpo jazia em sua frente e pela força de seu dedo no gatilho. O rosto branco tingido do corpo com os olhos arregalados fez Clara entrar em choque...nada, não saia mais nenhuma palavra de sua boca. O que Rodrigo pôde ver quando se recuperou da surra foi Clara com os olhos fixos nos de Dudu, encostada na laleira, braços em volta das pernas e uma corredeira fina e constante dos dois globos. Rodrigo tinha o olho inchado e a sobrancelha cortada. Acompanhou a cena de outro ângulo, viu a bala rasgar o peito da figura escura e romper sangue. O corpo caiu para o lado. Rodrigo estava agora se arrastando em direção a Clara. Ele se pôs do seu lado, ela não movia um músculo. Rodrigo passou os braços em volta dela, encostou o rosto sujo em seu ombro e observou aquele rosto:
Não é possível!!!! Eduardo!!!! – o susto foi enorme.
Clara virou o pescoço e com mesmo olhar distante fitou Rodrigo. Um encontro de olhos confusos, de sentimentos misturados. Aquele rapaz conhecia o primo dela, com o qual passou grande parte da infância. Talvez o acaso desse conta de confortar Clara.... não naquele momento. Sem esboçar nenhuma reação, Rodrigo ajudou Clara a se erguer, foram até a cozinha. Ele serviu dois copos d’água, beberam em silêncio. Passou-se alguns minutos até que o choro cessasse e a lucidez voltasse:
- Você conhecia meu primo da onde? A primeira voz depois de um bom tempo.
- Ele foi segurança de uma casa lá em Campos, eu ia direto, acabei ficando amigo dele.
Clara não respondeu, qualquer explicação lógica faria sentido naquele momento. Continuou com olhar fixo no lampião.
- Ele me falava muito de você, antes até de nos conhecermos naquela festa. Na verdade eu não era tão amigo do Carlos quando fui ao aniversário dele. Fui porque o Eduardo disse que eu deveria te conhecer. Sabe, eu me encantei por você naquelas descrições...eu estava saindo de uma deprê...sei lá pensei acho que vou nessa festa.
Mais uma vez Clara não disse nada, entretanto a configuração que as coisas tomaram formas era de uma coincidência muito grande. Clara estava mais do que transtornada, estava cansada, confusa e ao mesmo tempo admirava a ternura daquele rapaz despejando confissões sem necessidade.
- Ele era um cara muito gente boa! –Murmurou ainda Rodrigo
Qualquer vento faria a pedra do pranto rolar de novo ladeira abaixo. Clara umedeceu os olhos, conteve o choro com força.
- Que que agente vai fazer agora? – Perguntou Rodrigo – agente precisa dá um jeito.
- Precisamos sair daqui - Resposta seca.
- Mas para onde?
- Não sei, um hotel na beira da estrada, depois agente vê o que faz, aqui não têm condições de ficar.
Fez-se um silêncio:
- E o que fazemos com ele? – perguntou Rodrigo indicando com o nariz o corpo no chão.
Clara olhou para traz, viu o corpo, não respondeu.
Rodrigo a segurou pelo braço e foram para o carro. Ele abriu a porta do passageiro, ela entrou:
- Fique aqui, vou arrumar as coisas e já volto.
Ela permaneceu no banco do passageiro, enquanto ele carregava as coisas de volta no carro. Bateu pela última vez o porta malas, debruçou-se na janela, ameaçou abrir a porta, parou, olhou para a casa: “já volto”. Clara o viu se afastando, entrando na casa e logo depois saindo com as mãos no punho do corpo, arrastando ele para o canavial. Clara acompanhou o movimento pelos espelhos do carro. Ele largou o corpo de Dudu no meio do mato, fechou a porta da casa, entrou no carro, ligou e arrancou.
Foram até o primeiro motel da estrada, entraram e a força do cansaço venceu o transtorno das cabeças. Dormiram em silencio.
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Continua - penúltima parte terça-feira.

17 de julho de 2007

A magia Clara (IV) - O Rumo do bote

Os passos vinham da varanda, o assoalho rangia bem devagar. A parede de madeira era o que dividia Clara do alguém que estivesse lá fora. Ela se encolheu segurando o cobertor. Sabia que não tinham encontrado ninguém no caminho, tão pouco na casa. Estavam a mais de meia hora de qualquer casa ou presença humana, se alguém tivesse chegado com certeza ouviriam, a menos que este tenha vindo a pé pela estrada ou pelo canavial da divisa. Sutilmente Clara se esgueirou e bateu no pé de Rodrigo, este envolvido na escuridão da enorme sala mal pode ver o rosto de Clara com o dedo indicador na boca pedindo silêncio. Ele a olhou, ergueu o tronco e pode ouvir os passos lá fora. Ela o olhou sem saber o que fazer, tomada pelo medo segurou seu braço. Sem fazer barulho Rodrigo caminhou em direção a porta, ao lado dela jazia um arpão enferrujado com fisgas afiadas. Antes de pegá-lo viu a cartucheira antiga na parede. Não sabia se funcionava, muito provavelmente não, ele a pegou, manteve ereta no centro do peito segura pela mão direita e com a esquerda deu uma leve erguida na cortina tentando ver alguma coisa. Clara, encolhida ao pé da lareira, viu a metade do rosto austero de Rodrigo observando a varanda. Um vulto negro caminhava a passos lentos com a mão na parede da casa. Pelo porte físico era um homem, alto e forte, jaqueta e botas.
- Quem está aí? – falou Rodrigo com o olhar fixo na silhueta.
O homem do lado de fora parou de repente. Um bumbo soava no peito de Rodrigo, ele tremia para segurar a arma. O silêncio foi a pior das respostas, nada audível vinha do lado de fora naquele momento.
- Quem está aí? – repetiu – Eu estou armado, quem é você?
Nada, a figura não respondeu. Começou a se afastar a passos largos. Sumiu do campo de visão de Rodrigo e calou os passos. O vácuo existente entre a varanda e sala fazia pulsar nas veias os corações aflitos dos jovens. Nada, nem sinal do ser que rondava a casa. Tinha ido embora, a conclusão era bem vinda. Rodrigo relaxou os punhos da arma e caminhou na direção de Clara:
- Esta tudo bem! – afirmou com medo – Ok, ok já foi, devia ser um louco andarilho – falou agachando, dando um abraço em Clara e segurando com a mão livre seu pescoço.
Permaneceram abraçados até que se acalmassem as respirações. Rodrigo a deitou no chão, buscou o travesseiro, colocou em baixo da cabeça e a recostou ternamente. Passou a mão em seu rosto e viu Clara buscando no fundo dos seus olhos o conforto da nudez despreocupada na sacada. Se aproximaram, olhares fixos, trocas de medo, invasão de sentimento... cumplicidade.
Boom... num golpe só a porta foi arrombada, do canto da sala Clara e Rodrigo puderam ver a forma viril do homem parar, olhar, avistar e com os braços arquejados firmar o primeiro passo em direção a eles. Rodrigo se virou deixando Clara atrás dele. A figura grande deu passos decididos e rápidos em direção aos dois. Sem nenhuma reação, Rodrigo foi atingido por um chute no rosto, rolou de lado atordoado. A figura estava obstinada, foi até ele e começou a esmurra-lo com grande raiva. Ele tentava se defender da melhor maneira. Clara, imobilizada pelo medo, avistou a cartucheira no pé do algoz, não viu...foi. Os socos bramiam do rosto de Rodrigo, o sangue na penumbra era negro. Clara pegou a arma, foi ao gatilho....Pá!!! o estampido ecoou pela sala, pelos cabelos, pelo corpo, saiu pela porta remoendo os canaviais. A coruja levantou vôo e foi para o escuro. O barulho seco do corpo caído no assoalho da casa fez Clara com os olhos esbugalhados, úmidos e vermelhos levar a mão na boca. O corpo descansou ao lado do tapete de onça. Dois entes unidos pela agudez do mesmo gatilho e deitados no mesmo lugar. A cabeça boquiaberta da figura se mostrou na fresta de luz aos olhos de Clara. Ela em choque, tremendo e soluçando viu um rosto assustador, um rosto fúnebre, um rosto dominado, um rosto suave, um rosto calmo, um rosto conhecido...o rosto de Dudu.
- Nããão...- o grito de Clara rasgou o vento, o céu e as estrelas.
Dudu pegara, pelos punhos da moça que ria com a boca para o céu, o rumo a seguir eternamente no bote.
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continua

9 de julho de 2007

A magia Clara (III) - Estrada para o passado

O vento erguia levemente os cabelos de Clara. Os canaviais se estendiam no horizonte e dançavam como ondas refletindo o sol daquele domingo. Conforme o carro avançava na estrada, as canas passavam tão rápido que os olhos não podiam acompanhar. Clara semi-cerrou os olhos e sentiu a brisa. Um brilho diferente acendera seus pensamentos e a invadira. Ela se viu vislumbrando o passado. Sentiu-se de novo no bote descendo o riacho calmo que ficava do outro lado das pedras tortas, depois do morro, quase divisa com a fazenda Damião. Os dedos tateando a superfície turva e gélida da água tentando pegá-la. Com a mão em concha ela olhava aquela poça e ficava intrigada, tentando pensar porque a água no rio era escura e na mão era transparente, nunca chegava a conclusão nenhuma, mas sempre achava mágico tirar a cor da água apenas com a mão. Então se cansava de olhar e jogava arteiramente o líquido nas costas de Dudu, o primo da roça que guiava o bote. Ria com os dentes para o céu da irritação comedida do moço. Clara deu um leve riso com a memória e aumentou o Jetrho Tull no som do carro. Ela estava novamente no bote, o bote do tempo. Rumando para um deságüe longínquo e desconhecido, depois de amassar e jogar para cima sua antiga rotina, sem sequer pegar os documentos em casa e apenas com uma sacola de roupas recém comprada. Colocara uma outra vida no bote ou estava de carona no bote de Rodrigo, quem sabe. O que Clara sabia era que estava indo ao encontro de suas lembranças. A fazenda do avô era um ótimo lugar para passarem uma semana em sigilo e abaixarem a poeira. Ademais, após a morte dele, ela estava vazia, com os pobres cuidados do caseiro, seu Ademar, pai de Dudu. Até lá, a estrada era o trilho e o vento o combustível das divagações.
- O que você pretendia fazer com o dinheiro quando pensou no golpe? Perguntou Clara sem tirar o rosto da janela.
- Eu ia pagar as dívidas minhas e do meu velho como casa, carro...essas coisas, e com o restante ia para Las Vegas, ou Punta, ou Bahamas, um lugar que eu não tinha decidido ainda para fazer carreira no jogo – respondeu sem tirar os olhos da estrada.
- Como assim “fazer carreira”?
- É...ser um jogador bem sucedido, viver disso, ter uma boa casa...cachorros e por aí vai...afinal é a única coisa que eu sei fazer.
- E agora, você ainda tem esses planos?
- Não sei, acho que sim, mas preciso fugir primeiro...em breve vão dar um jeito de encontrar a casa do meu pai, preciso avisa-lo.
- E eu preciso ligar para casa, pra despistar minha família, senão a primeira coisa que vão ver é se eu fui para a fazenda do meu vô.
- Tem um posto logo ali.
O posto era daqueles modernos que reinavam no meio do nada. Eles pegaram algumas coisas para comer, uma cerveja, Rodrigo ligou para o pai e deu o cartão a Clara para que fizesse o mesmo. Ela ligou...ninguém atendeu...secretária eletrônica: “Alô, mãe...eh...mãe, eu vou passar um tempo fora com uns amigos, estamos indo lá pro nordeste, não sei quando eu volto..mas eu to bem, desculpe não ter avisado..eu num tava me sentindo muito feliz em casa...de qualquer forma é isso..tchal tchal..beijo”. Desligou o telefone, tirou o cartão e foi em direção a Rodrigo, que estava no banco, olhando o horizonte e tomando uma cerveja. Ela sentou-se do seu lado, sem desfazer o silêncio que pairava, ele estendeu a latinha a ela mantendo o olhar fixo e pensamento distante. Ela que não era muito de beber cerveja, bebeu despreocupada. Eles se levantaram e seguiram viagem.
Já tinham avançado muito na noite quando a primeira placa mostrou: “Pontaporã – a 34km”. Estavam próximos, pois na verdade a fazenda ficava um pouco antes da cidade.
- Entre ali – Clara apontou para uma saída de terra batida do lado direito.
Entraram na estradinha e andaram um bom tempo cercados pelas arvores que pareciam estreitar o caminho. O mato estava dominando a estrada, a impressão é que fazia tempo que ninguém andava por lá. Enfim chagaram na porteira e a suspeita se confirmou, quando o farol do carro iluminou a entrada, puderam ver a trinca enferrujada e a placa da propriedade caída. A casa do caseiro estava aparentemente sem ninguém. Clara tirou a trinca, esperou o carro passar, fechou e foram até a casa. De longe Rodrigo já pôde ver, erguendo-se imponente no breu o casarão antigo, também sem nenhuma iluminação. Pararam em frente...era verdadeiramente grande aquilo tudo. Clara desceu e Rodrigo seguiu em seu encalço, pegou a lanterna no porta mala:
- Parece que ninguém vem aqui desde que meu vô morreu! – disse Clara com um pouco de medo – até a casa do caseiro está abandonada.
- Pelo menos podemos ficar tranqüilos por aqui – falou Rodrigo iluminando de pé a pé a extensão da fachada.
- Eu não teria tanta certeza – exclamou Clara para ela, sem que Rodrigo pudesse ouvi-la.
A porta estava aberta, eles entraram. Havia muita poeira, e os móveis estavam todos no mesmo lugar, sem nenhuma alteração, senão a do tempo, a toalha estava na mesa de jantar ainda com algumas velas derretidas nos castiçais. Na cozinha, havia panelas no fogão a lenha. Rodrigo achava tudo aquilo bonito e assustador:
- Aqui – disse Clara apontando para uma porta – vamos pegar os lampiões lá no porão.
Eles desceram, passando por muitas coisas velhas, peças de máquina, ferramentas, quadros, móveis velhos e na prateleira do fundo estavam cinco lampiões a óleo. Eles os pegaram, foram até a cozinha, acenderam e colocaram distribuídos pela sala. Quando os lampiões iluminaram toda a sala, Rodrigo pode ter uma noção do tamanho do cômodo, era extremamente alto, forro de madeira, um tapete de onça em frente a lareira, parecia coisa de filme, algumas armas antigas penduradas na parede e até uma jaguatirica empalhada que mesmo morta, brilhava os olhos quando a lanterna os varria. Eles pegaram tudo que tinha para pegar no carro, trouxeram para a sala e já ajeitaram as camas para dormir. Embora houvesse muitos dormitórios na casa, preferiram dormir na sala...havia bastante espaço. Comeram, beberam e ficaram conversando a respeito da casa. Rodrigo estava exausto e caiu no sono rapidamente. Clara ficou ali olhando a carranca do outro lado da sala, acendeu um cigarro, levantou e apagou os lampiões. Ficou em silêncio, pensando nas coisas que ocorreram, na sua fuga, na história louca daquele rapaz, na sua própria superação em sair sem medo...era muito para ela pensar no fim do dia, também estava demasiadamente cansada. Apagou o cigarro, deitou e, antes de fechar os olhos ouviu o ranger vagaroso de passos no assoalho...seu coração disparou.
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continua na página acima

3 de julho de 2007

A magia Clara (II) - O Golpe

Rodrigo deu uma mordida grande e nervosa no X-bacon, mastigou com as buchechas cheias, deu uma sugada na coca-cola, e engoliu de uma vez só. Estavam numa lanchonete perto da Teodoro Sampaio, um lugar sujo com mesas de lata enferrujadas e um cheiro de café mal passado do domingo de manhã. Clara pediu um suco e tomava pausadamente enquanto ouvia Rodrigo elucidar a situação.
O moço era integrante de um grupo de ladrões que promoviam jogos de pocker. Ele era talvez o croopie mais habilidoso que já participara do grupo, conseguia sem o menor esforço colocar três ais na mão de qualquer pessoa da mesa. O restante do grupo era composto por mais seis pessoas: Joe, o mais influente de todos, oriental bem sucedido dono da mansão em campos do Jordão onde os jogos aconteciam e freqüentador dos mais luxuosos jantares da nata paulistana ao lado de sua pseudo-esposa Jaqueline, uma deslumbrante mestiça de sorriso acanhado e poucas palavras; Rubens, o jogador oficial, fazia-se passar por um herdeiro milionário de um carpinteiro que desenvolvera uma peça chamada cachimbo, responsável por aumentar o rendimento de uma locomotiva em quinze por cento. A patente deste cachimbo rendeu, segundo a história, uma vida muito confortável ao jovem rapaz de trinta e cinco anos. Além disso, colaboravam para o desempenho da equipe Judite, a garçonete, William o jogador isca, e Rômulo, policial civil do departamento de investigação responsável pela tranqüilidade da ação.
O processo funcionava da seguinte maneira, Joe e sua pseudo-esposa, divulgavam nos particulares eventos as partidas aos apostadores, que eram bem escolhidos. No jogo, estavam a mesa, Rubens e Willian, um reservado e na maioria das vezes o ganhador do golpe e o outro que fazia o papel de um pequeno empresário viciado em jogos e detentor do mais perigoso espírito aventureiro, além de Rodrigo, o mais novo que distribuía as cartas de forma a deixar o jogo bem equilibrado até a jogada chave. Normalmente, Rodrigo recebia as informações de quem deveria ir para o fim do jogo junto com Rubens, aí, depois de longas horas de batalha ele soltava na mão da vítima uma quadra alta, de valete, dama ou rei, o suficiente para deixar qualquer apostador a ponto de colocar sua casa na mesa, mas para o parceiro vinham belas seqüências limpas e estava feito o jogo. Judite era da retaguarda, se necessário ela passava cartas, distraia os apostadores, servia drinkes sonolentos, ou até aliviava sexualmente ou outro nos intervalos da partida. Rômulo desviava rastros de investigações, passava as coordenadas dos outros lugares clandestinos e das possíveis vítimas. O dinheiro era bem dividido e cada um dava conta da sua maneira.
Clara ouvia atentamente todo o desenrolar da trama. Às vezes se ajeitava na cadeira com empolgações orgásticas pela história. Rodrigo armara com Judite um auspicioso golpe no grupo. Na ultima partida, ocorrida na noite anterior, depois que ele trocou rápidas palavras com Clara no msn, deu o jogo para Willian quando este – pelo trato - deveria sair. Willian subiu aposta por aposta até levar o pote de todos exibindo sua trinca de ais. Terminado o jogo, todos na sala, começaram a discutir sobre o que fizera Willian e porque Rodrigo dera o jogo feito para o companheiro. Rodrigo alegou ter sido um equívoco na hora de embaralhar as cartas, Willian disse que, apesar de receber um jogo alto, tinha certeza que Rubens estava com um maior que o dele para levar o pote. Não satisfeito com a ação do Crupie, Joe dispensou o rapaz depois da partilha por ele ter descumprido o trato e esse tipo de erro ser muito arriscado para o negócio. Rodrigo estava saindo em direção ao carro quando Rômulo veio lhe falar:
- Hei!! Hei!! Rodrigo – disse ainda com um bolo de dinheiro na mão.
Rodrigo esperou, o policial se aproximou, ficou olhando atentamente para o bolo em sua mão e para a cara do Crupie. Naquele momento, Rodrigo teve a certeza que o dinheiro falso trocado por Judite o qual estavam todos levando para casa não era tão verdadeiramente falso quanto se imaginava, não para um policial. Rodrigo perguntou o que era e foi sorrateiramente para o carro, abriu a porta, entrou, mas Rômulo a segurou:
- Você acha que é fácil enganar as pessoas hein pirralho? Cadê o dinheiro? Onde você colocou?
- Que dinheiro? Que que você ta falando?
- To falando do dinheiro de verdade que aquela vagabunda trocou por essa imitação barata.
- Eu num sei de nada - Disse tentando fechar a porta.
- Você acha que alguém lá dentro não notou, eu to aqui só pra te mandar pro inferno e pegar a grana seu bostinha.
Rodrigo engatou a ré no carro e arrancou, torceu o volante ... primeira marcha. Nesta altura Rômulo já estava com a arma em punho levantando em direção ao motorista. Rodrigo o atropelou antes que ele pudesse atirar, e saiu em disparada, ainda a tempo de ver da estrada, os faróis dos automóveis da casa se acenderem e rumarem em sua captura. Ele acelerou, colocou o braço para trás a ponto de tatear a perna quente e lisa de Judite deitada no banco de trás, com a bolsa contendo aproximadamente 200 mil reais. Eles andaram de campos do Jordão até São Paulo, pararam próximos ao cemitério do araçá, dividiram a grana e cada um tomou seu rumo. O de Judite foi passar uns tempos no interior do Recife e tentar algum negócio pequeno. O de Rodrigo foi incerto, por isso ligou para Clara. E estavam agora frente a frente com os cotovelos na mesa velha, um jovem com cem mil reais num Fiat 66, fugitivo do grupo de ladrões e da polícia pela morte do tratante, e uma moça cansada de ouvir os pianos dolorosos de Colle Potter, e a ponto de injetar o mais gloriosos Bob Dylan no K7 do carrinho para trilhar uma fuga.
Clara temia pela sua saúde, pela saúde dos seus pais, mas no fundo já sabia o que fazer, sabia para onde ir, sabia ... era isso.
Ela recostou mais na mesa, aproximou-se de Rodrigo, lhe disse algumas palavras que nem o narrador conseguiu escutar, ergueu a cabeça, pediu um cigarro, deu os dez reais que Rodrigo tirara da carteira, não esperou troco. Os dois se entreolharam, levantaram e foram.
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Continua no texto acima.

26 de junho de 2007

A magia Clara.


Ela saiu do banheiro sem se secar, nua, a passos trêmulos, cabelo chanel cobrindo os olhos, viu a silhueta de alguém andando no outro lado do quarto, parou, olhou e se aproximou do espelho observando a estranha figura. Corpo magro, seios pequenos, quadril reto, parou a um metro da superfície, olhou a massa parda do outro lado e ergueu o braço lentamente até que seus dedos encontrassem os dedos que vinham de lá. Entre os fios úmidos no rosto lágrimas surgiram no lado de cá sem serem notadas. Mal sabia ela porque, águas vinham e iam sempre.
- Clara venha jantar, estamos esperando.
Sem muito pensar ela foi ao armário, pescou as primeiras peças do pijama, enxugou o cabelo e os olhos, deu uma sacudida na cabeça e foi para a sala. Estavam todos lá, pai, mãe, avó tia e primo.
- Oi, oi gente.
- Oi Clara, que cara é essa minha querida. Você está muito diferente hein. Sentenciou a tia.
Sem respostas, todos à mesa comeram e falaram besteiras sem sentido, do vô que morrera a pouco, do Sanches que estava com algum problema e iria morrer a qualquer momento, sob observação no veterinário.
- Ele era tão companheiro – falou a mãe de Clara com a voz um pouco embargada.
Nada do que diziam parava por um instante na cabeça dela. Pensamento escuro, perdido naquilo que ela não sabia o que era. Toda a família, a cena, a peça eram de fato um zunido para aqueles ouvidos. Sem mais uma vez falar, ela se levantou, levou sua louça para a cozinha, lavou olhando para as luzes dos prédios a frente, uns pertos, outros longínquos, outros não dava pra ver. Voltou, deu boa noite e sem resposta foi para o quarto. Trinca passada, pijama tirado, ligou o som programado no CD do Colle Potter, pegou o cigarro escondido na gaveta, acendeu, ligou o computador e foi para a janela.
Talvez a hora mais gostosa do dia, o vento que batia na janela do quarto, gelava sua pele e a fazia sentir a fumaça invadindo os pulmões e saindo como o próprio pensamento. Olhava a escuridão pontualmente iluminada de tantas janelas e tantos lares sem se importar com sua pobre nudez.
Pluuup! O mesenger chamou alguém, ela foi. "OI Clá", "Olá Moço". Rodrigo era um amigo que pouco conhecia, um outro que não fazia nada no sábado à noite. Conversas bobas, vazias, nada que arrancasse um sorriso daqueles lábios petrificados. Saiu, deixou o moço só, deitou no puf ao pé da janela, mais um cigarro, o corpo relaxado. Recostou a mão sobre o peito, acariciou o busto com delicadeza. O piano no som ecoava no ambiente e seus dedos tímidos descobriram a umidade do colo. Em silêncio contorcido, mais um arfar se abafava no vento da rua. O corpo amoleceu estendido e logo se encolheu. As mãos antes fortes se voltaram para o rosto, o pranto desceu vertiginosamente, soluçante Clara adormeceu.
O dia nublou na pele de Clara, nublou no capô sujo dos carros, nublou nas sacolas de feira das senhoras, nublou no cigarro do taxista, nublou no topo dos edifícios, no cabelo das crianças. Nublou, e entretanto fazia um bonito sol. O vento fez com que ela acordasse para fechar a janela. Ela meio tonta levantou e fechou de um golpe só o vidro, apoiou a testa, varreu os prédios cinzas e viu bem de fronte, um andar acima, uma mulher de calcinha e sutiã na sacada, com uma xícara na mão e algumas bolachas Maria na outra. Olhava fixamente para o quarto de Clara, os olhos se encontraram, nenhuma das duas figuras desviava o olhar até que um homem de bermuda veio de dentro do apartamento colocando-se do lado da mulher. No mesmo instante o telefone tocou.
- Oi Clá! É o Rodrigo, eu to aqui na frente do seu prédio, preciso falar com você.
Clara colocou um conjunto de moletom, um chinelo e mesmo descabelada e com sono saiu. Todos estavam dormindo na casa, na ponta dos pés ela foi.
Rodrigo estava encostado no carro, eles se cumprimentaram, Clara já perguntando o que acontecera.
- Entra no carro, já te explico.
Eles entraram no carro, ela já com medo e ele muito nervoso.
- Clá, preciso da sua ajuda.
- Que foi? Que que aconteceu?
- Eu...eu – ele tremia – eu fiz uma cagada e não sei o que faço.
- Mas o que que você fez meu deus?
Fez-se uma pausa, ele estava muito tenso, olhou pra ela com os olhos vermelhos:
- Eu matei um cara Clá! Eu descumpri o trato, o grupo veio falar comigo, eles me ameaçaram, eu fiquei com medo, num sei, saí com tudo e passei por cima do Rômulo, agora eles tão atrás de mim, eu preciso de ajuda.
Ela nem respondeu na hora, ficou apenas confusa, não tinha a menor idéia que aquele sujeito meigo, que volta e meia conversava com ela na internet pudesse matar uma pessoa. E o que era esse grupo? O tal do Rômulo? Trato? As coisas estavam muito sombrias, incógnitas, não era possível naquele momento tirar nenhum tipo de conclusão palpável.
Durante um tempo o silêncio reinou no carro que andava devagar. Clara conteve o desespero, não conseguiu pensar em nada. Pelas conversas que tivera com o rapaz tinha a nítida impressão de ser um bom sujeito, carinhoso, inteligente e bem humorado. A situação ainda estava semi-exposta, algo muito grave acontecera e por algum motivo o peso do futuro do moço quase desconhecido caíra em suas mãos. Independente do caso ou qualquer veracidade apresentada, naquele instante ela era a pessoa que podia ajuda-lo. Sabe-se lá por que motivo ele a procurara, sabe-se lá porque motivo eles se conheceram, ou porque estavam vagando num carro velho, a única coisa que ela sabia era que havia de encontrar uma solução. Uma gostosa sensação de perigo tomou conta de Clara. Algo tão inesperado, alguém tão desconhecido, uma vida tão monótona.
- Vire a esquerda aqui – ela cortou o silêncio – tive uma idéia.
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Continua no texto acima

18 de junho de 2007

Rolo do tempo


Prefiro que diga:
- Salte do trem.....
...e faça figa

Passado é o trem
E o futuro

treme
Presenteado desliga.


Pego esse futuro
furo

Dou uma mordida
..............Bebo seu céu

para te entender
amiga

No passado do trem
ou nos trilhos da vida.


12 de junho de 2007

Um poeta a caminho del sol

Estes versos simplórios foram feitos em homenagem a um amigo chamado Itamar, que neste momento começa sua viagem de ônibus, trem e mochila rumo ao Peru para visitar sua noiva. A viagem será acompanhada pelo diário online em seu espaço no link aí do lado. Boa viagem Itamar...reticências infinitas para ti...estou com uma puta inveja..rs.




Um poeta a caminho Del sol


Estreita distância de montanhas.
.............................................
.............................................

Brasil.....................................
.......................Bolívia.............
Peru.......................................
.............................................
.............................................
Viaja o sonho..........................
Corre os trilhos,.......................
rasga as letras........................
.............................................
.............................................
Escala a terra na saudade.........
...Busca o Mundo.....................
....................Os olhos ............
................................O outro...
......................O fundo ...... ..
..........A brisa ........................
..Abraço..................................

.............................................
Laço.......................................
.............................................
Lágrima..................................
.............................................
.............Felicidade..................

11 de junho de 2007

O Baú



Baú

Tu és um mistério a ser descoberto.
Esmeralda rara num baú trancada;
Em baixo da areia, em cima do nada.
À espera do viajante certo.

Eu, casualmente cravei a enxada;
Quebrei a tampa, cheguei perto,
Busquei teu peito no baú aberto
Mas via a chave na tua mão cerrada.

O teu descompasso superei imune;
Descobri no brilho desta noite clara
O destino, a noite e o brilho que me pune;

Pois os acasos que esta vida encara
Conduzem às vezes ao que nos une
E quase sempre ao que nos separa.

8 de junho de 2007

O caso e o descaso de Giba.

Este texto foi escrito para o concurso literário da Revista Piauí. Ele tinha que ter 3 mil caracteres (com espaços) e ser desenvolvido a partir da frase "Ele implicava com os leiloeiros, apreciava mais os falsários". Conta, em 2999 caracteres o caso do detetive Giba. Acompanhem também o texto "arte e a preço" escrito pelo Caçula a partir da mesma frase. Blog do caçula aí no link ao lado. Boa leitura.
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O caso e o descaso de Giba

Giba estava no seu bar oficial à paisana quando o segurança de um fazendeiro poderoso da cidade o abordou. O caso era descobrir se dois dos homens de confiança da fazenda estavam falsificando documentos antigos para vender a colecionadores. “Tá aí um bom caso” pensou o boêmio detetive. Aceitou. Não parecia muito difícil, afinal o método utilizado por Giba era bem simples: mapeamento de bares – bares – amizades – abordagens – pessoas bêbadas - obtenção de respostas. Ele conhecia todos os botecos e restaurantes da cidade, assim como os chapeiros, cozinheiros, metres, garçons, gerentes, donos e afins. Acertou os custos e iniciou o procedimento. Nome dos suspeitos: Zé e Carlos; nome do bar: Os Leiloeiros; freqüentador: Zé; Rotina: quintas feiras; hora: oito. Com as informações obtidas Giba partiu para a ação.
- Fala Pelé! Cumprimentou o barman – Vê uma gelada pra mim.
Sentou no balcão, do lado da mesa na qual Zé e o capataz da fazenda conversavam. Deu um trago, virou e ouviu:
- O Carlos!! Puff, você não sabe o que ele me contou! – disse Zé inclinando o corpo para frente.
- O que? - O capataz inclinou o corpo também. Quase que Giba faz o mesmo.
- Que na verdade, ele implicava com os leiloeiros, apreciava mais os falsários.
O capataz passou a mão na cabeça, curvou a sobrancelha e nada disse. Giba ficou confuso, aquilo não fazia o menor sentido para ele. Implicava com o leiloeiros? Mas porque ele implicaria com o bar? Será que eram leiloeiros que compravam os documentos antigos? Eles eram os possíveis falsários, como se apreciavam? Existiam mais? Apreciar era um código? As dúvidas deixaram Giba, inquieto, não conseguia ligar os fatos. Parou, virou, decidiu partir para a o plano B, seguir. Pediu mais uma cerveja e esperou que fossem embora. Quando os homens saíram Giba viu que os eles olharam para os lados antes de entrar no carro. A certa altura do caminho, as ruas estavam vazias e só havia dois carros andando. Giba estava tão alucinado pelas dúvidas que nem percebera o risco de perder a missão. Sorte que os rapazes não o notaram.
No bairro das jardineiras eles pararam. Giba continuou e parou depois da esquina, desceu do carro e encostou num poste. Os homens olhavam desconfiados a toda volta, foram juntos até o porta mala abriram. Zé tirou uma mochila preta de lá, abriu o zíper e sacou uma garrafa. Abriu a tampa, cheirou e deu para o capataz. Giba se aproximou fortuitamente do carro ficando atrás de uma árvore, tenso, o suor lhe descia a costeleta. O capataz segurou a garrafa e deu um gole. Enquanto bebia, Zé gesticulava:
- Que que você acha? Os leiloeiros tem fibra, onde já se viu um licor caribenho, artesanal, raro desse ter fibras. Vê se os falsários tem! É muito melhor, agora você quer cobrar o mesmo preço nos dois! Que é isso!
Giba não quis nem ouvir a resposta, ficou possesso, saiu de trás da árvore praguejando sem se preocupar com os apreciadores de licor, foi direto pro bar oficial e abandonou o caso.


6 de junho de 2007

Soneto - Rotina

Rotina


Continua o sonho, a vida...continua...
O mesmo frio, o mesmo tédio. As madrugadas
Vão ficando extensas, a fala tão nua;

E os tragos descem a cavar estradas.

Vem aí outra loucura...e vem com a sua
Timidez fingida e explosões regradas.
Desabafo cego ao sair pra rua.
Confissões solitárias nas calçadas.

Triste a casualidade desta vida!
Que aponta o rumo, mas não a saída.
E me faz seguir, para lá longe, perceber...

Que o maior erro do passado certamente,
foi sonhar alguém e esperar inutilmente
um possível norte para viver.



4 de junho de 2007

Soneto - Perdido

Perdido


Ando perdido neste mundo escuro,
Breu de praia, de relva, de sorriso incerto.
Turbilhão de fatos, escolhas mortas sem futuro.
Metas cegas e certezas férteis no deserto.

Encaro, com temor, o destino bem de perto.
Beiro à margem de outra lágrima e juro;
Que na vida o medo mais latente e mais duro
Por mim encarcerado será por mim liberto.

Perdi-me nos olhos negros da incerteza,
Cujos sinuosos rumos costuram outras vidas
Descobrindo histórias, versos e segredos.

Perdi-me nas escadas de minha própria fortaleza,
E o único fim no caminho de corredores e subidas
É o fúnebre encontro dos meus medos.



31 de maio de 2007

Poema - Certeza

O poema abaixo foi escrito em meados de 2004, eu me encontrava então com dezessete anos bem conturbados. A inspiração veio de um caso cuja protagonista se mantinha fria e distante, meio indiferente e na manhã do ultimo dia escolar ela se permitiu e chorou quando nos abraçamos. No fim eu vim para São Paulo onde, recentemente a encontrei. Ficamos apenas falando amenidades. Em relação aos versos, foi mais uma das minhas tentativas toscas de brincar com as palavras. Os sentimentos eram sinceros mesmo, mas parece que foi um desafio, eu queria escrever um poema que mantivesse apenas duas casas de rima do começo ao fim justamente para que desce a sensação de compasso. O resultado dessa construção é vinte e seis linhas se alternando em final “ia” e “ava” até o final...tônica do passado. No fim das contas ele é bem bobinho, digno dos 17 anos de qualquer um de nós, mas tenho um carinho enorme por ele, pois no fundo não houve esforço para faze-lo, foi fluido e isso me causou à época um misto de alegria e satisfação. Vejam o que acham.


Certeza


Ao te abraçar naquela manhã fria,
descobri a verdade que você negava;
Junto ao teu corpo, meu coração mais forte batia,
junto ao meu corpo, teu coração saltava.
Naquele momento, do teu aroma eu bebia,
e tua pele me esquentava.
Viramos um só ser, uma só energia,
unidos por uma paixão que nos calava.
O tempo e o mundo; e a vida não mais existia,
a verdade agora se revelava.
A força do nosso abraço a tudo podia;
A força do nosso sonho a tudo arrematava;
Dentro do meu peito um calor ardia
a cada segundo que passava.
E a lágrima que dos teus olhos corria,
no meu coração desaguava.
Nesse momento, nessa invasão, nessa magia,
meu pobre mundo se acalentava.
A incerteza cessou, acabou a agonia;
A tua lágrima me curava,
Este liquido ... a poção que nos engolia,
e a flor da comunhão alimentava.
Nosso universo agora nascia,
e em nós dois se concretizava.
Tu não conseguiste negar o que sentia,
e eu não consegui negar que te amava.

(04/12/2004)

24 de maio de 2007

Conto - O 44, o 45 e a Ponte.

O 44, o 45 e a Ponte

Pedro deu um beijo selado na namorada, olhou com compaixão para aqueles olhos azuis, aquele rosto rubro, pro pijama colorido, ajeitou sua jaqueta com as duas mãos no zíper, deu um tranco e se foi. Desceu as escadas e saiu pra rua. Estava um ventinho chato no centro de São Paulo. Ele arquejou os ombros, acendeu um Minister, e com os olhos semi-cerrados andou dando profundos tragos e soltando a fumaça demoradamente. Dobrou a Avenida Passalaqua, chegou a Rui Barbosa, foi direto para seu flat. Silencioso abriu a porta do apartamento 44 e antes de entrar deu uma arquejada de cabeça para cumprimentar a dona Lúcia que todas as manhãs deixava seu apartamento habitável – bom dia! Virou e entrou. Olhou pra baixo e notou algumas correspondências. Estranhou, pois sempre entregavam as cartas na portaria, mas como ele não havia dormido em casa aquela noite, simplesmente abaixou e apanhou as cartas, descalçou o sapato, sentou na cama e começou a abri-las. Uma fatura do cartão de crédito, um cartão postal da sua filha que estava nas ilhas Fiji estudando arqueologia. Leu com o rosto sério e ao terminar deu uma entortada nos lábios, suspirou profundamente, balançou a foto e colocou na gaveta do criado mudo. Algumas promoções inconvenientes e no fim da pilha estranhou uma carta parda, sem pensar abriu e começou a ler:
“Querido,estou ansiosa por te encontrar finalmente, tenho passado muitas noites esperando por este momento, cada vez que leio suas cartas, afundo minha cabeça no travesseiro e compreendo o quão ínfimos somos todos perto daquilo que nos move. Você despertou em mim aquilo que eu havia desistido depois que o Lucas morreu, suas cartas são o conforto que permite meu sono. Mas amanhã deixarei de projetar, e poderei diante de você me encontrar. Chega de palavras soltas, chega de sonho, quero sua magia me preenchendo para ter certeza que existe saída. Grande beijo e até.
Ass. Patrícia
Obs. Troquei de celular, meu novo número é 7144-4534, me liga”

Pedro franziu a sobrancelha tentando supor que raios se tratava aquela carta. Ele a pegou, virou e viu que estava endereçada ao apartamento 45, com o nome de Luis Augusto. Ficou extremamente desconcertado, acabara de ler algo importante que não era para ele. Quis imediatamente entrega-la ao dono, mas não foi. Começou a pensar no rapaz, por volta de vinte e cinco anos, extremamente quieto, não falava com ninguém, vivia cabisbaixo pelos corredores, quando se encontravam, uma figura misteriosa. “Como essa cidade é cheia de histórias anônimas” concluiu com felicidade. Deitou e ficou relendo a carta com atenção, pensou também em Patrícia que encontrou naquele cara uma saída de sabe-se lá que problema. Ele desceu o elevador, foi até o orelhão e ligou. A situação era extremamente instigante, um homem de quarenta e um anos, sozinho, com uma vida pacata, viu ali a oportunidade de uma aventura sem limites.
- Alô, falou uma voz doce do outro lado.
- Oi, recebi sua carta, respondeu seco;
- Oi Lu, que bom que você ligou, eu adiantei meu vôo, vou chegar hoje, vamos nos ver mais cedo, ai, eu to tão nervosa.
- Que horas você vai chegar? Perguntou.
- As seis, em congonhas.
- Ok, te pego lá, estarei de calça dins, uma camisa listrada de vermelho e cinza e um sobretudo bege.
- Eu vou de jaqueta roxa.
- Tá certo, até breve então Patrícia. Beijo.
Desligou o telefone e se sentiu um menino arteiro, deu um riso e subiu pelas escadas até o apartamento, ainda deu uma olhada para o 45, pensou qualquer coisa e entrou. Passou o dia inteiro ensaiando um romantismo que a muito não tinha. Perto das quatro da tarde tomou um banho, pôs a roupa escolhida e pegou o ônibus para o aeroporto. Chegando lá, sem saber da onde vinha o vôo apenas esperou Patrícia na saída, não demorou muito e surgiu uma mulher, ruiva, aparentemente uns 34 anos, algumas sardas no rosto, linda, muito linda. Olhos vividos, sorriso fácil, deslizava mesmo com a mala, ela o viu de longe e a passos firmes foi em sua direção como quem vê o pai que já morreu a muito tempo vivo, ali. Ele sorriu, abriu os braços e recebeu Patrícia, que estava com os olhos lagrimejados, olhou fixamente para ela, passou o dedão na maçã do rosto, colheu o choro e deu um longo e sublime beijo nela. Eles foram para um bar e sem notar se entenderam, parecia que as coisas que ela dizia faziam sentido, ele não precisou interpretar nada, foi alguém que um dia deixara de ser. Eles conversavam por olhares, se beijavam com gosto. Foram até o apartamento dele e no elevador encontraram com Luis, abatido, olhar distante. Ela com a cabeça em seu peito e ele com a cabeça no acaso que os juntaram. Olhou como um pai para o rapaz ao seu lado, sem nenhuma preocupação com aquela alma moribunda. Eles desceram juntos, um entrou no 45 e fechou a porta, o casal entrou no 44 e ela imediatamente perguntou se o apartamento não era o 45, ele sem notar o erro que acabara de cometer, inventou que havia mudado recentemente para o da frente devido a umas goteiras. Contornou a situação sem problemas. Eles se amaram por toda noite, se entregaram, se encontraram um no outro, se consumaram.
Foi questão de tempo para que ele se apaixonasse perdidamente por Patrícia, uma paixão devastadora, fortalecida todos os dias quando acordava e via aquele rosto angelical dormindo ao seu lado. A namorada de Pedro estava desesperada atrás dele. Foi algumas vezes ao apartamento, mas ele se esquivava. Queria esquecer o Pedro que fora, queria esquecer sua história, queria se esquecer. Ela sumiu, ele também.
Um dia, ao chegar do trabalho Pedro encontrou Luis no sofá da recepção do flat lendo um livro. Ficou olhando aquela figura, sentiu-se intimamente intrigado, pensou em como seria a vida daquele ser. Um misto de angústia e culpa inundaram seu peito. Ele se aproximou, passou a mão na barba rala, sentou do lado do moço:
- Opa, que você está lendo? Perguntou meio displiscente.
O rapaz olhou por cima dos óculos, acanhado, respondeu com uma voz tímida:
- O estrangeiro, Albert Camus.
- Nossa!, eu adoro Camus, esse livro é bom pra caramba. Faz pensar muito sobre a vida, o jeito que ele fala sobre o sofrimento é destruidor. Faz um tempão que eu li, mas num esqueço não. Puta livro!
Luis abriu um sorriso verdadeiro, apaixonado. Eles começaram a conversar sobre o livro e rapidamente mudaram de assunto, falaram de um monte de coisas, estenderam a curva do rio, dobraram fugacidades, calaram o silencio...se gostaram. Ele subiu o elevador encantado com o conhecimento e a riqueza que guardava aquele baú daquele moço. Ao abrir a porta encontrou Patrícia com a toalha no corpo penteando os cabelos em frente ao espelho, deu um beijo nela e deitou na cama. Eles conversaram banalidades e foram dormir. Ficou religioso, todos os dias quando Pedro chegava do serviço estava lá Luis no sofá como que esperando para liberar conversas, e assim eles faziam. Luis era estudante de filosofia na usp, morava em Ribeirão Preto e veio bancado pelos pais estudar em São Paulo. Religiosa também era sua rotina ao chegar em casa, um beijo, banalidades, amor e juras. No meio da noite, ele levantava nu, acendia um cigarro, ia até a sacada onde via os carros passando, apenas tragava o cigarro pensando na vida que não era dele, no sofrimento que existia na noite do quarto da frente. Olhava a mulher que nunca fora da sua vida deitada na cama e desejava ardentemente que fosse... se ele tivesse uma vida. Olhava sua imagem refletida no espelho do outro lado da sala e via uma massa sem nexo. Uma lágrima involuntária sempre lhe escapava aos olhos neste momento. Um nó apertava seu peito, o sofrimento do quarto da frente escorria pelo corredor e o afogava. A que ponto chegou aquela história, porque cargas d’água colocaram aquela carta no seu apartamento?
Todos os dias ele sorvia o lírico das palavras de Luis e o desaguava dentro de Patrícia. Tornou-se uma ponte que une e separa dois destinos. Uma ponte sem nome, sem corrimão, sem caminho, sem imagem. Uma ponte edificada entre apartamento 44 e o 45. Nada que fizesse o libertaria deste poço que cavara.
Era uma quinta feira de vento chato no centro de São Paulo, Pedro chegou no flat, olhou para o lado e não encontrou Luis. Surpreendido, subiu para o apartamento e, antes de chegar ao 44 encontrou um pedaço de papel no meio do corredor, as portas dos dois apartamentos estavam abertas. Ele agachou, tomou o papel nas mãos já trêmulas, leu com voracidade, ergueu a cabeça, largou a maleta, e saiu em disparada para as escadas. Começou a subir desesperadamente os degraus, subiu, subiu e num golpe só empurrou a porta de acesso para o topo do prédio, olhou e viu Luis e Patrícia parados um de frente para o outro em silêncio. Um iceberg se chocou contra seu estômago. Começou a tremer, suas pernas arquejaram, ele se deixou cair de joelhos, as mãos no rosto em prantos, ergueu a cabeça e as palmas para o céu. AHHHHHHHH, emitiu o grito mais alto, mais sôfrego, mais desesperador de toda cidade, a única coisa que conseguia descrever o que se passava naquela mente.
Patrícia e Luis olharam ao mesmo tempo para o lado, viram o retrato de um sofrimento indizível até mesmo para Camus e não entenderam absolutamente nada.

O lado de dentro...sublime

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