Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

17 de dezembro de 2007

Jilin, China, 20 de dezembro de 2002

Tài Tai,

É com pesar que lhe escrevo hoje. E por mais estranho que pareça, o falecimento do nosso pai é o fardo mais leve desse regresso. A morte revela os homens e tenho certeza de que o velho Wang foi “se divertir na Origem de todas as coisas”. Seu rosto continuava o mesmo rosto tranqüilo e rijo de vinte anos atrás. Acredito, entretanto, que o sofrimento, mais que o tempo, impregnou nele espessas rugas. Não tenho a mais vaga idéia do que se passou pela cabeça dele com as perdas dos últimos anos, mas quando olhei pela última vez seu rosto antes que a terra o cobrisse, tive a sensação de que, por trás da gangrena, existiu uma reclusão à vida. Assim como, por trás daquele rosto sereno, se escondiam sôfregos pensamentos.
Perguntei a Aiko sobre o ocorrido e parece que ele convivia muito bem com a ferida no pé, tanto que se enfezava se lhe cogitassem a vinda de um doutor. O machucado não tratou e, nos últimos meses, cresceu. Segundo Poya – ainda viva, e que cuidou dele – o cheiro de carne podre fazia com que poucos se aproximassem da casa. Ela disse ainda que nosso pai conferiu a ela, ainda são, o desejo de escrever a nós dois. Infelizmente, a velha Poya não teve tempo de pedir a Aiko que escrevesse antes das violentas febres e alucinações que acometeram papai.
Recordo vivamente de todos os desejos e palavras dele em relação à morte e, em respeito a isso, não peno sua ida, mas ainda assim me sinto um devedor para com ele e pretendo, para honrar a nossa história, buscar na boca dessas pessoas da aldeia os vintes anos da vida dele. Somente assim poderei enterrá-lo verdadeiramente e ter comigo a paz que ele está tendo. Sinto-me, como o mais velho da nossa escassa família, na obrigação de revigorar a dor de um pai que resistiu às perdas e, ao mesmo tempo, convalesceu com elas. Fui ausente nessas horas e isso me faz não o ser agora. É um fardo, sem dúvida, mas o levarei a cabo. Por isso, querido irmão, voltar à América não é coisa para agora. Estou hospedado na nossa casa e me sinto acometido pelas almas que nela sucumbiram... é uma parte importante do que pretendo.....Tornarei a escrever....e tenha certeza de que compartilharei contigo aquilo que for necessário. Espero que esteja tudo bem por aí. Aguardo notícias suas. Se Tung perguntar como estou, não lhe diga nada do que te escrevo...apesar de meu amigo, não quero partilhar, senão com você, os fatos.

Um grande abraço,
Lao Peng

12 de dezembro de 2007

Jilin, China, 02 de dezembro de 2002


Caros Lao Peng Li e Tài Tai Li.

O motivo desta carta é triste, portanto, serei breve, sem muitas considerações.

Venho informá-los que o pai de vocês faleceu, ontem à noite, devido a uma infecção generalizada, advinda de um corte no pé feito com a enxada, enquanto carpia a lavoura.

Friso, aqui, o quanto tentamos salvá-lo e, principalmente, o quanto ele foi valente, resistindo e lutando bravamente por quase um ano. Infelizmente, devido às sérias dificuldades que enfrentamos aqui não pudemos guarnecê-lo de todos os medicamentos e cuidados necessários.

Em seus últimos dias de vida ele pronunciava incessantemente o nome de sua mãe e, pouco antes de morrer, me fez um último pedido: “Procure meus filhos que estão longe e diga a eles que retornem... eu vivenciei e posso assegurar-lhe que a busca pela sobrevivência não vale a renúncia de uma vida inteira...”

Espero que estejam bem.

Meus sentimentos,

Aiko Koan

O lado de dentro...sublime

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