Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

1 de outubro de 2007

Sonho findo


Ruas vazias na madrugada fria, sacola de plástico flutuando debaixo do poste, sob o triângulo de luz. Bueiros exalando ares quentes nos pés de putas morimbundas, um mendigo deitado de lado, paletó rasgado, crosta de sujeira no pé dentro do tênis sem sola. Bêbados trôpegos no Anhagabaú, carros tripulados por jovens musculosos ouvindo música eletrônica com o volume no máximo, cortando as luzes entre prédios. Bares povoados de gringos tomando caipirinha, estradas sinuosas, casais de mãos dadas na praia, mulheres exibindo seus lindos corpos bronzeados e oleosos de bruços para o sol. Pescadores de cabelos laranja e bermudas pardas empurrando a jangada, hippies tocando violão e vendendo colares de sementes secas, barraquinhas de comida baiana, capoeiristas no calçadão gingando seus corpos robustos. Crianças de cabelos indígenas nadando nuas no imenso rio, uma mulher de rugas profundas, saia suja e chinelo havaianas, bordando na porta aberta de uma casa de sapê. Senhoras sorrindo nas feiras, tropeiros de colunas eretas e rédeas firmes, um velho de chapéu de couro fincando a enxada e lavrando a terra seca, burros arquejando latas d’água. Brigas de selvagens na rua cheia, um pivete correndo com a bolsa da madame, sirenes costurando os carros, futebol na várzea nua. Pandeiro saltitante na laje, morenas de coxas rijas rebolando suas bundas grandes, sorriso branco na pele escura. Uma menina de doze anos se insinuando na estrada, um velho pitando fumo na cadeira de balanço olhando a plantação. Tratores girando o cereal de mil alqueires.
Visões do Brasil, de uma terra crua se esparramando no continente sob os mais diferentes pés. Era isso que André buscava quando saiu da faculdade e foi dar aula, era isso que pensava quando ouvia Almir Sater e lia Guimarães, Patativa e Veríssimo. Era isso que pensava quando levava seu filho pra passear e o via descobrir o gozo de deitar na grama....

pensava...

buscava....

..........................................................................sonhava...

Voltava.

Certo dia chegou a estender a mão para que uma cigana sem estudo pudesse ler. As unhas sujas da mulher contornavam os traços fracos daquela palma, tão fracos que quase o deixavam sem futuro. Da boca árida e dourada daquele ser vieram as marteladas da sentença, o álibi para um desejo antigo.

“Cê vai fazer três viagens logo logo. E a vida de muita gente vai mudar com isso. Mas você não tem escolha..tá escrito”

Trinta e oito anos de idade, um filho de treze, uma esposa dedicada, um emprego prazeroso. Tudo que um bom cristão desejaria ter, mas não André. Ele queria o vento no rosto, o olhar da camponesa, o pé tocando o chão. Queria se reconhecer na grama calva de uma oca, no purpúreo anoitecer de uma estrada reta.
- Vou até a casa do Walter pegar uma documentação do sindicato, já volto.
Estas foram as últimas palavras que sua família escutou. André já havia arrumado um comprador para seu modesto carro, deixou uma quantia razoável de dinheiro dentro do armário. Não havia bilhete, recado, arrependimento. Havia sim uma idéia que mais se parecia com uma rocha, fixa, imóvel e impenetrável. Ele preparou a mochila, duas bermudas, uma sandália comprada de um louco na Praça da República, uma regata, uma camiseta batida e uma blusa. Colocou na mochila um coquetel de drogas da nostalgia beat entre as quais a vida era a mais perigosa e mais alucinante. Torpe de céu extenso e cachaça vagabunda, André estava prestes a devorar o horizonte com seus olhos famintos.
Ele pegou o dinheiro do banco, jogou-o dentro da mochila, o mesmo fez com o dinheiro do carro, um metrô, a rodoviária. O primeiro passo, uma passagem para algum lugar novo...Campo Grande. Pronto já estava feito, eram duas da tarde o ônibus ia sair às três e meia. Os óculos escuros tipo motoqueiro escondiam um semblante sem expressão, sem medo. Entorpecido. André caminhou por ruas tortuosas até encontrar o bar mais sujo que pode. Pediu o cigarro que há dez anos não fumava e um uísque com muito gelo. Bebeu e fumou, sentiu fluir o passado em suas veias. Um sorriso se formou, mostraram-se os dentes. Um sonho, uma vida, cinco reais e setenta centavos....

Filho da puta, desgraçado vagabundo!!

Uma mulata de lábios carnudos e cabelos revoltos chegou como se fosse desfilar na passarela. A passarela trágica da vida marginal. Tirou o revólver da bolsa, apontou a dez metros de distância para o chapeiro no fundo do bar. Gritava e tremia.

Que porra é essa Judite

Seu filho da puta.
Eu que achava você ia pra casa da sua mãe
Que ficava no trabalho até mais tarde
Achava que você me amava
Eu vendi minha TV pra te ajudar
Briguei com a minha mãe
Agora tô com um filho seu na minha barriga
E você não me diz que tem outra família.
Seu desgraçado.

Visões de um Brasil de casos mil. Judite tremia, chorava, bufava. André não perdeu seu riso, de longe viu a cena e, como um espectador das peças da vida, degustou de seu uísque e dos roteiros perdidos pelo país.

Eu não podia te contar Judite
É um caso de muito tempo,
Num vale nada,
Eu só pago a pensão
Eu num tenho nada com ela...juro

Ahhhhhhhh

Zuniu o grito, estalido surdo.
A bala atravessou o bar
Quebrou o copo de uísque
Descobriu a mina de sangue
Na garganta de André

Olhos abertos, idéia fixa
Viagem de bebida
Viagem de ida
Cenas do real
Sonho findo não sonhado

Retardado

Coisas da vida.

O lado de dentro...sublime

O lado de dentro...sublime