Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

13 de janeiro de 2014

Memórias de lembranças turvas (fragmento do capítulo 10): a separação

Ali, no pé da árvore, escondido da luz noturna, um casal se olhava com sorriso entreaberto. Ali, no boteco da esquina, um, e mais outro, e outro, todos. Doíam-me e me fustigavam. Cada par de pessoas felizes nas ruas por onde eu andava abriam-me um tiro gélido na barriga. E haviam tantos casais. Tanta vida, ao passo que a minha ia como um pé depois do outro, vazia e a cortar o vento pelas pernas. E o vento parecia não sentir nada. Desviar-se frente a uma massa sólida prestes a cair não era tarefa difícil para a natureza bruta de São Paulo. Aquele inverno fazia frio de dentro para fora. A primavera floresceu cinza e tentou roubar a luz. Mas o que roubar quando não se há nada? A sola dos pés chiam antes que o chão oco por onde piso. Quando eu era criança me apaixonei. Por de traz daquela menina havia uma ideia de que pode haver esperança no outro, de que haverão ombros para nos apoiarmos quando rarear a força de viver. Uma ideia no entanto não responde às nossas angustias quando temos vontade de chorar, ao contrário, nos açoita com sua presença nos casais enlaçados. Um cachorro cheira a boceta de uma cadela na rua Pamplona. Onde estão os poetas para nos fazer sentir os afetos? Covardes. Exaltadores do inexistente, pregadores de peças sérias nas quais o amor vence. Joguem para os outros aquilo que suas vaniloquências exortaram, os façam de fantoches de suas frustrações, conduzidos pela fragrância de um sorriso puro em uma festa de faculdade, cairão cedo ou tarde no fosso de onde entoam suas canções. Quando era criança me apaixonei, mas e agora que sou homem? Qual será o próximo cadafalso? Quando não sinto meus pés na noite fria é como se neles estivessem eu inteiro. Não sentir a caminhada nada mais é que, cegar-se às cenas tristes. E se eu irrompesse os ladeados corações de mãos dadas e lhes tentasse explicar sobre o sangue que há nos corações? Não me teriam por sóbrio, no entanto, um dia ao pé de uma árvore sem folhas vendo de perto os equívocos do acaso, dar-me-ão razão, talvez. Para onde vão as juras depois que as fazemos? Quem é, afinal, testemunha dos nossos pensamentos enganadores? As palavras despendidas, com significado, ou não, depois de ditas somem em uma tenra vibração do ar. E regressam nos dias de inverno penetrando no vão da calça, subindo as pernas e gelando os pés. E na forma do silencioso movimento, as palavras querem dizer algo. Seu canto térmico é novamente o combustível dos meus pensamentos. Nívea, por onde andaram suas palavras nestes anos todos? Os pensamentos de quem elas aqueceram? Um dia, quando Lucas se apaixonar, o que direi ao nosso filho? Com qual máscara no rosto falarei que a vida é bela? E você, o que dirá? A pipoca doce que ele gosta hoje é muito mais do que ele pode supor. Quisesse eu parar o tempo para que a vida dele seja como a pureza entre a mão cheia e a boca colorida. Recorda-te Nívea, de 2002 e a euforia da copa do mundo? Eu não me apaixonei ali. Eu sei, você nunca acreditou. Minha euforia tinha tons tão somente de solidão e ganhou contornos sexuais para eu fazer o que fiz. Como me foi cara aquela meia hora de sexo com uma mulher cujo nome preferi esquecer. E quantas e quantas meias horas eu passei torturando-me ao longo do ano em que me deixaste. Quantas e quantas meias horas eu desejei te ver. Passavas de um lado da rua e meus pés perdiam a dimensão do movimento. Que viagem tórrida esta que você me fez fazer. Sabia, Nívea, que as peles e o sexo são os instrumentos mais falsos dos nossos sentidos? Reagem ao toque na harmonia da nossa mente desejosa. É somente fechar os olhos e não estamos mais apenas com uma pessoa na cama. Estamos com outras tantas quais possamos imaginar. Quantas vezes fizemos amor neste ano separados. Sabia que os beijos parecem socos quando não são dados nas pessoas que amamos? São pequenas frestas abertas no nosso coração, trazendo a doce esperança do novo. Mas a cada beijo e calor a mim dados, eu devolvia desalento, opacidade e ausência. Como fui mal com aquelas cujo intuito era me ajudar. Não sei se me culpo. Sabia? Mas, ora.... é claro que você sabe. Nos últimos anos, eram os meus beijos os teus socos, era minha pele o seu acesso a outrem. Lembra, quando me perdoou? Eu chorava e as palavras não me vinham....eu te abraçava para que não fugisse e desejava não acordar e descobrir a trama dos meus sonhos como tanto me fizeram crer. Hoje, eu queria te perdoar.... eu te perdoaria se ao menos você pedisse este perdão. Mas você foi embora. Lembra do que disse quando eu reafirmei todo meu amor mesmo passados aqueles meses? Você disse: “não acredito” o ser humano é sangue....hoje creio nisso, mas queria tanto lhe mostrar o outro lado. Que nesta sua partida de agora, decidida, você pudesse levar a esperança na perenidade do amor. Não a tenho mais, no entanto não estimulo os outros a jogá-la fora. Lembra? Naquele outubro de 2003 quando me recebeu em nossa casa, quando eu te abracei longamente e não ousou erguer teus braços? Quando colocou minhas flores sobre a mesa tal qual se faz com a conta de luz? Quando negou beber o vinho de seu maior gosto somente por tê-lo recebido de minhas mãos? Quando se sentou na beirada da poltrona como quem está prestes a erguer-se? Lembra Nívea, quando tentou me dissuadir de falar qualquer coisa sobre nós e tentou me mandar embora? Quando evitava meu olhar vagueando o teu pelo chão e pela mesa e eu tentava ao menos tocar sua mão? Lembra a leve vincada nos lábios mudos e o cerrar de olhos quando te elogiei? Como eu perguntei dos seus pacientes vegetativos, e você foi lacônica? Quando você não riu daquela nossa piada, e me ouviu displicente da mesma forma que Guilherme costuma fazer conosco na mesa de jantar enquanto eu falava dos problemas do escritório sem que tivesse perguntado? E eu falei dos meus casos afetivos nada concretos tentando parecer mais independente ou buscando que contasse os teus. Lembra, daquele silêncio eterno no qual eu tentava barrar as lágrimas antes delas chegarem aos olhos? Lembra de como sua expressão esguiou-se quando eu disse que sentia sua falta, e naqueles meses todos nunca deixara de te desejar... o tempo todo? Sentia falta de vê-la secando-se depois do banho ou com a mão na cintura quando cozinhava. Você é capaz de lembrar o quão frios seus lábios estavam quando beijei-te a força e eles sequer reagiram? Consegue supor a minha dor em virar as costas sem um sorriso teu? O amargor daquele vinho perdurou em minha boca nos dias seguintes. Era sangue.... como são os seres humanos. Naquele dia eu queria te mostrar a possibilidade do amor que não se apaga e o quanto eu te amava. Aquele tempo sem você não tinha sentido nenhum, e mesmo que não se paute a vida em sentidos e razões o que me restara eram os sentimentos de vazio e tristeza. Quando me ligou uma semana depois, a única coisa dita foi: o Guilherme sente sua falta. Juro Nívea, eu não queria saber do nosso filho, queria saber de você, queria fazer falta para você...mas nosso filho trouxe você de volta a contragosto. E meses depois disso, chegava Lucas. Hoje entendo porque não quis amamentá-lo. Quanto mal eu lhe causei. Você tinha vinte anos quando nos casamos... Eu forcei a me a amar. Que forma mais cruel de devolver a dor. Se um dia encontrar alguém depois de muitos anos e este alguém jurar ainda te amar, por favor dê-lhe ouvidos, não diga não acreditar. O amor é diferente para cada um e mesmo que sua vida tenha lhe dado um sentido provisório, não desacredite naqueles cuja esperança permanece. Não o destrate, não seja dura. Isso pode ter consequências irrecuperáveis. É possível, pense. E por mais que não o ame reciprocamente, faça-o sentir-se confortado, respeite ao menos as lágrimas despejadas, as horas maldormidas e os tragos rotos dedicados a ti. Não serei eu este homem, mas seja quem for, não faça o que fez comigo. Não lhe aceite pela conveniência, não lhe dê a oportunidade por dó. O amor cobrará suas investidas em forma de sofrimento e o máximo alcançado desta sua empreitada será o aumento da dor alheia e a sua consequente culpa e lhe torturar.

O lado de dentro...sublime

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