Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

26 de fevereiro de 2008

O sorriso do Pingüím

ATUALIZAR....ATUALIZAR...ATUALIZAR...Chega e-mail, lê e-mail, pega a resposta na pasta, copia, cola, envia...ATUALIZAR. João estava com os olhos quase fechando, hipnotizado, girando o mouse.

SETINHA...MÃOZINHA...SETINHA...MÃOZINHA...ATUALIZAR. A coisa mais chata que aquele estudante poderia conseguir, João conseguiu. Um salário fudido de quinhentos reais, um vale alimentação ridículo e uma carga de bilhete único. As atividades no partido eram assim. João pensava e repensava se estava satisfeito, o que obviamente já tinha resposta, mas parava de pensar quando lhe escorria uma baba no canto da boca.

Sua função era muito simples: responsável-superintendente-do-atendimento-ao-público-do-partido-na-região-central. Em suma, ele recebia e-mails com dúvidas, reclamações e aporrinhações; lia, escolhia a resposta - automática na maioria das vezes -, mandava e pronto...respondido. Seis horas por dia nessa alucinante rotina. Todas as réplicas e tréplicas também ficavam sob sua tutela. Ao final de cada mês, uma reunião com o subcoordenador-de-relações-públicas, um relatório das atividades...tantas perguntas assim, tantas assado, vinte palavrões, quinze referências diretas à senhora mãe do único deputado do partido, etc. O subcoordenador passava o olho, cruzava as pernas na sua poltrona, mordia a ponta do óculos e dizia:
- Vinte palavrões?
- É.
Silêncio
- No mês passado foram quantos?
- Dezoito
- Hmmm (mão no queixo) vou ter que falar com Aldair, esse marketing nosso não está funcionando. Pior que ele tá com uma dor de barriga que não consegue ficar dois minutos sem limpar a testa e sair torto.
Jogava o relatório na mesa e dava um tapinha no ombro de João, que nem tirava os olhos do pingüim em cima da mesa:
- Muito bem, João. Ótimo trabalho.


Naquele dia, antes de sair da sala de reunião, João percebeu que o pingüim em cima da mesa estava com enorme sorriso nos bicos. João cerrou os olhos, aproximou a cabeça e teve certeza. O pingüim estava rindo, e rindo um riso jocoso, meio malandro...estava rindo dele, aquela figura patética, naquela vida medíocre, num partido de merda. João levantou, pegou o pingüim, enfiou na cueca e saiu.

No outro dia de trabalho lá estava o pingüim ao lado do computador. Primeiro e-mail:

Boa tarde,
Sou eleitor do deputado M........ e tenho acompanhado o envolvimento dele no caso das lantejoulas chinesas. Prefiro não acreditar que ele esteja realmente envolvido nisso. Qual a posição do partido a esse respeito?
Grato
Conrrado

João leu e já pensou: “resposta 1 do caso das lantejoulas chinesas”. Desceu o mouse para acessar a pasta e lá estava, do lado dele, o pingüim, imóvel, com seu sorriso perturbador. João parou, deu um responder e a próprio punho digitou:

Prezado Conrrado,

Primeiramente gostaríamos de agradecer pelo contato. Somente ouvindo nossos eleitores podemos dimensionar o tamanho do pinto que nos espera. Em relação ao envolvimento do deputado no escândalo das lantejoulas chinesas, nós garantimos a plena integridade e isenção dele em tal fato. Acreditamos, entretanto, que o molhar das bucetinhas nos fará passar por esse imbróglio.
Atenciosamente,
João

E enviou.

As respostas que se seguiram tiveram a mesma serenidade, como:
“O partido convocou uma reunião extraordinária com o Mestre Splinter e os Tartarugas Ninjas para discutir a pauta”;
ou
“Não podemos repudiar diante do Amado Batista. É uma questão de honra para o partido”;
ou ainda
“haja vista que os pardais castrados da Amazônia estão em greve de sexo oral, temos uma conjuntura delicada”
passando por
“encaminharemos todas as informações ao Cirque Du Soleil para averiguações”
e até
“Agradecemos a compreensão e estamos torcendo pelo milésimo gol do Túlio Maravilha”

Assim se seguiu por vinte dias e todos os personagens de quadrinhos, desenhos e filmes, todos os palavrões, artistas bregas e físicos quânticos tiveram sua hora e sua vez. A vida de João estava extremamente empolgante. Nestes dias o pingüim parecia depressivo perto dele a cada resposta que recebia. Algumas pessoas não estavam entendendo o que acontecia, perguntavam e recebiam uma resposta pior, outros xingavam até a esposa do deputado. A campanha só não durou mais porque, no vigésimo dia, rompe pela sala o subcoordenador, vermelho, louco.
- Puta que o pariu João, que que tá acontecendo nessa merda?!?!?! Meu irmão me ligou porque o vizinho dele recebeu um e-mail daqui falando que o Tio Patinhas ia fazer um casaco de lantejoulas e enviar por sedex.....mas que porra é essa?!?!?
- Não sei senhor – respondeu, com cara de sonso, escondendo o pingüim atrás do monitor.
- Você tem meia hora par ir à minha sala explicar isso – e saiu batendo a porta.

Nesse tempo, sem preocupações, João contabilizou um minirelatório com os mais de 1100 palavrões, as mais de 400 referências diretas à mãe do deputado e também à cunhada e à esposa, os quinze processos notificados e os raros bem humorados que acreditaram ser uma piada. Juntou tudo, colocou o pingüim na cueca e foi até a sala do subcoordenador.
- Senhor, não sei, sinceramente, o que está acontecendo – e colocou o relatório em cima da mesa – mas quero deixar claro que não admito ser tratado assim em meu ambiente de trabalho. Vou sair do serviço e do partido e entrarei com um processo contra o senhor por danos morais, obrigado.

Nessa altura do campeonato, o subcoordenador já estava pálido, com o relatório nas mãos. Não disse uma palavra sequer. João o olhou, tirou o pingüim da cueca colocou-o de volta na mesa estrategicamente virado para o homem e saiu. Apagou os arquivos do computador e foi embora.


8 de fevereiro de 2008

Jili, China, 05 de Janeiro de 2003

Querido irmão,

Gostaria, primeiramente, de pedir desculpas pelas duras palavras que lhe dirigi há dois dias. Não nego o sentimento latente em mim quanto às suas atitudes. E de reafirmar que, do que disse, muito é verdade. Acredito, porém, que nossa união nesse momento de conturbação é mais importante que as prateleiras da loja ou seu comportamento ocidental. És um Li, está no seu sangue e isso não há como negar.
Refleti muito sobre minha outra carta (e acredito que nesse momento em que escrevo você deve estar lendo com rancor) quando eu mesmo comecei a arrumar as coisas aqui em casa. Joguei fora a antiga cama de palha onde papai morrera; deixei somente a que era sua, que está mais conservada. Hoje durmo nela. Limpei com creolina e água sanitária o chão todo. Mudei uns móveis e deixei mais arejados a sala e o quarto. Confesso também que começo a sentir falta dos jogos do Lakers, é difícil ficar sem a televisão para zapear e passar o tempo. Hoje, olho e olho da janela, aquelas montanhas, que continuam as mesmas de quando saímos daqui. Elas são tão pacíficas, tão sóbrias e remetem igualmente às minhas memórias de menino aqui, quando não as olhava desse mesmo modo, e ao que está atrás, a você, a Tung.
Esta noite receberei Aiko em casa...Talvez você tenha notado o frêmito de minhas frases...ela tem me feito muito bem. Apesar do tempo, os olhos não mudaram...continua vivaz. Lembro-me de lhe ter contado nossa história, foi minha primeira mulher e agora parece que o acaso caminha para que seja a última.

Desculpe a brevidade, mas espero que minhas desculpas sejam aceitas e aguardo ansiosamente mais novidades suas daí. Se Tung perguntar desta vez, diga que estou bem e lhe mande um beijo.

Fica um para você também.

Até breve.

O lado de dentro...sublime

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