Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

24 de novembro de 2009

A triste história de Marcos Whraiter

Como se fosse verdade, Marcos Whraiter era um homem de coração bom, negro, de beiços salientes, cabeça ovalada e grande, ligeiramente gordo, sorriso largo e gargalhadas rarariantes. Bom de papo, boa gente, honrado como aprendera a ser, divertido e gozador como quis ser. Como se fosse verdade, tinha uma bela casa num bairro nobre de uma cidade pobre. Pobre de almas. Uma cidade de gente feia. Uma cidade estranha, sem propósito, habitada por pessoas sem propósito. Uma cidade pequena, no coração de algumas quase-montanhas, o suficiente para que deus não a visse, embora cintilasse no topo do morro uma cruz de neon azul, que se podia ver de outros morros nas noites de paz. Uma cidade onde, diziam os romeiros, o diabo fazia seu laboratório. Uma cidade na qual as leis pouco se faziam valer.
Como se fosse verdade, Marcos estava ali sob o marco do acaso. Sua mãe, dona de casa, seu pai, um policial aposentado que, talvez como todo policial aposentado, escolhera num classificado do jornal uma cidade pequena para descansar e criar sua prole. Talvez, se o jornal não tivesse publicado; talvez, se lesse outro jornal; talvez, se seu pai não fosse policial, nem estivesse aposentado; talvez, se sua mãe não fosse dona de casa, estariam em outro lugar. Talvez, mas estavam ali. Como se fosse verdade, Marcos estudou em uma boa escola, como essas de cidades pequenas, como essas de gente que vinha do sítio, como essas de professores que conheciam cada aluno como seus vizinhos. Marcos não tinha tino para estudos, aproveitou muito bem a escola para fazer amizades, arrumar brigas, pular o muro para comprar cigarro. Talvez, se Marcos não tivesse uma família tão autoritária, teria tino para estudo. Talvez sua facilidade para amizades não o fizesse conhecer Caio e Olavo. Cúmplices e parceiros. Talvez outras amizades o fizessem caminhar para outro lado, talvez não pulasse o muro para iniciar sua vida alcoólica. Talvez.
Como se fosse verdade, certo dia na aula de sociologia, Marcos escrevera de coração aberto aos seus colegas tudo aquilo que sentia, disse que amava, que adorava, elogiou, demonstrou inveja em alguns momentos e certamente surpreendeu a todos com seu testemunho de bondade. Há quem diga que houve ali um esguicho de liberdade por entre as grades de seu coração. Uma rara ocasião. Talvez por estar no 3° ano, prestes a ganhar o mundo daquela cidade pequena, Marcos se permitira.
Se estivesse em outra cidade que não naquela encravada em montes de terra e pedra, ele poderia ver horizonte em sua vida e planejar um futuro. Talvez não entrasse nos escuros dos becos da periferia com Caio e Olavo. Talvez não pisasse nas plantações de maconha, nem se inebriasse com a cachaça. Talvez não se apaixonasse.
Nada como uma mulher para colocar nos trilhos a vida de um homem sem horizontes. Mariana era bonita, um troféu, como diziam, algo para deixar destemido qualquer homem, ainda mais um homem de posses apegadas como Marcos. Talvez, se Marcos não a tivesse conhecido, não teria se sentido mais homem do que era, talvez não brigasse com Olavo, talvez não ficasse paranóico, muito menos roubasse a arma do pai e tentasse matar Olavo no meio da praça central. Talvez, se não estivesse naquela cidade, nem seu pai tivesse uma arma, ele não teria estampado a capa do jornal naquele ano. Ruim de tiro, como nunca fora sua habilidade, não matou ninguém, nem Olavo, mas feriu transeuntes. Talvez não perdesse o amigo nem a mulher nem a liberdade.
Como se fosse verdade, Marcos não teve apoio de sua família. Seu pai, acostumado a prender bandidos, se sentiu roubado duas vezes. Pela arma e pelo filho. Como se fosse verdade, ele caíra nas mãos dos débeis, entregara sua consciência ao carcereiro. Sua razão não era tão forte nem pesada, por isso voou para longe. Talvez, se tivesse um ombro para se apoiar, não a deixaria escapar, assim não precisaria visitar o lar das pessoas sem lucidez. Como se fosse verdade, o fio de bondade que restara em Marcos virou pedra. E com uma pedra e com a lucidez de poucos, deferiu golpes na cabeça do vigia do hospício, roubando a vida dele em troca da alforria.
Como se fosse verdade, Marcos perambulou maltrapilho, sem casa, sem amigos e sem mulher. Mas seu universo se restringia àquela cidade encravada num monte de terra e ali revisitou as grades algumas vezes. Talvez, se seu universo não fosse aquela cidade, Marcos estaria em outra vida. Talvez, se Marcos não tivesse conhecido Caio e Olavo, não estaria completamente drogado e bêbado naquela noite de setembro. Talvez, se não tivesse conhecido Caio, este não pararia diante daquele quase-ser naquela noite. E se Caio não tivesse uma namorada que conhecera naquela cidade no meio do nada, nem se não estivesse voltando da casa dela naquele horário, talvez não encontraria Marcos. Talvez, se fizesse um outro caminho ou morasse em outro lugar, não encontraria seu amigo jogado na calçada. Talvez, se Marcos tivesse de volta um lar, não estaria bêbado nem com aquela fome de dois dias. Talvez, se não tivesse fome, não pediria para Caio lhe comprar comida às seis da manhã. Talvez, se Caio não tivesse achado uma nota de dois reais segundos antes numa rua que não costuma passar, não compraria um pão com mortadela nem alimentaria aquele quase-ser que mal conseguia falar. Talvez, se não fosse verdade, Marcos não teria morrido engasgado com o pão, jogado na calçada de uma cidade onde talvez não morasse, com a fome dos sem família e na companhia da sua frágil mente incapaz de mastigar um pão. Talvez... talvez ... e ainda há quem creia que não seja verdade.

10 de novembro de 2009

João da Britadeira

João,

Tinha problemas de tremedeira.

Mas sempre teve os pés no chão


Nunca faltou com seu dever

Nunca fez brincadeira

Nunca demonstrou emoção.


Chegava no trabalho adiantado

Encarava nos olhos a massa de cimento

E ligava sua britadeira.


Era caco pulando, cortando a mão

Uniforme cinza, olho atento

Dentes a mostra... rosto esticado.


De chão ele conhecia;

Alisava, batia, cheirava

Ouvia o eco do batimento.


Chegou em casa certo dia

Sentou no sofá como de costume

Mas seus pés estavam balançando.


Sua mulher não tinha tino de escrava

Espalhou seu perfume em casa

Fugiu pro outro lado do morro


E agora, o chão que João construiu

Alto e imponente na favela

Só servia pra pedir socorro.


Pra quem tanto conhecia

Nem sabia onde punha os pés

E onde amarrava seu gado


“Mas essa coisa de saudade

Parece até água benta

Amolece até cajado”


E é à saudade que se afivela

Que João mandou um recado.


“Chão de polenta ainda não existe

E não vou ficar mais triste

Prefiro o chão azulado”

12 de outubro de 2009

A-mulher-que-não-conseguia-se-entender




"Monge
- Mestre, minha mente não tem paz. Por favor, pacifique minha mente.
Mestre Zen - Traga sua mente perante a mim e eu a pacificarei.
Monge - Mas quando busco minha própria mente não posso encontrá-la.
Mestre Zen - Pronto, pacifiquei sua mente."
(koan zen budista)





Ela não conseguia. Toda vez que que os ventos de suas lembranças lhe sopravam ouvia as fábulas saltarem da boca da professora e lhe invadirem com furor. Via suas próprias mãos tecendo palavras corridas no seu diário. Sentia o frio no estomago ao toque despretensioso daquele jovenzinho da sexta série, cujo nome ela não lembrava, mas o sorriso jamais esquecera. Via os lânguidos beijos dos atores no cinema. Sentia na ponta do lábio seu primeiro beijo atrás da escola. Sentia também como se fosse ontem seus dedos descobrindo o colo e a sensação nova que aquilo lhe causava. Lembrou-se de José e de como ele descobriu seu corpo enquanto este crescia, e de como fora boba ao brigar com ele por tantas besteiras. Lembrava-se com clareza de como José representou uma mudança em sua vida e aquela raiva por ele fez com ela temesse sofrer novamente. Lembrava de seus pequenos casos e como ela acabara tentando mais entender a si do que se levar pela sua libido. Via também suas discussões calorosas com Marcela e Gabriela, amigas até hoje, mas que nunca a entenderam de verdade. Lembrava-se do exato dia em que conheceu casualmente a psicóloga da escola e que teve uma certeza irrefutável de que era isso que queria ser. E de como a obstinação do futuro fez os anos correrem velozmente para ela. Como Antônio também curvou os trilhos de sua vida por mais de três anos até um dia ir embora. E toda vez que lembrava-se de Antônio tinha uma vontade enorme de revê-lo, de poder tomar uns drinks e falar da condição humana como outrora ou falar sobre o que um sentia pelo outro fumando um cigarro após o sexo naquela casa suja.
Ainda assim ela não conseguia. Não conseguia entender como foi engravidar de um homem tão vazio, ainda que em suas longas reflexões chegou a pensar que era premeditado. Que ela precisava de uma companhia ou algo a que desse sentido para continuar a vida, indiferente de quem fosse o progenitor. E soube mais tarde que pensou mais em si que em seu filho, mas ele estava adulto e criando seus próprios trilhos. Às vezes ela se sentia absurdamente nociva quando tecia conclusões às suas pacientes. Sua vertente para os estudos lhe conferiu um leque enorme de teorias psicanalíticas e inúmeras técnicas para entender a mente humana. Seu hábito de leitura a tornou em uma excelente oradora, de modo que até errada conseguia parecer correta. Sua garra para criar o filho sozinha a tornou mais rija, forte a ponto de conseguir entrar nos olhos de quem conversava sem esforço e fazer com que este falasse sobre sua vida. Ela não tinha dúvida que estas qualidades a trouxeram para sua condição de profissional respeitadíssima e muito valorizada. Mas mesmo assim ela não conseguia ainda entender sua vida, sua cabeça e o sentido que deveria haver para aquilo tudo. Passava horas lendo literaturas e encarnava aqueles personagens com ânsia. Concluiu depois de muito tempo que não sabia o que ela era e o que queria, sua vida era a dos outros, ela era o outro.
Como um daqueles dias normais de sua tediosa rotina estava ela dirigindo seu carro a caminho do consultório quando as nuvens tomaram corpo no céu. Negras, densas e fúnebres. Uma tarde de verão em São Paulo virou noite. A Marginal de repente estava parada. Carros a toda volta com pessoas temerosas sem conseguir sair do lugar, presas por uma condição do meio. E ela se sentiu encarcerada como nunca antes. A chuva começou a cair com fortes ventos e uma força inexplicável. Não era possível ver o carro a frente e, sozinha dentro do seu automóvel, o sentimento de prisão foi sufocando-a. O suor corria-lhe o busso. Ela estava presa sem possibilidades de sair, desesperada, coração palpitando quando um vulto passou ao seu lado em meio a tempestade. Um homem a passos lentos, descalço, sujo e com uma pipa de plástico na mão. Ela forçou a vista para entender aquela situação, viu que de fato era uma imagem real, havia mesmo um homem na tempestade. Como se uma pedra acertasse sua cabeça com violenta força percebeu em todos os anos de sua vida não havia se dado conta. A prisão estava dentro dela. Uma fortaleza edificada a duras penas pelas suas tênues lembranças. Um choque de clareza invadiu seu peito. Viu o pino da porta alí, inofensivo, tão pequeno. Ergueu-o e sentiu vívido o pingo gelado da chuva e o cheiro putrefeito do rio Pinheiros. Ela sorriu como criança e correu como criança, como a fábula que ouvira, como o filme ou como aquilo que ela nunca fora. Ao encontro do mendigo, empinou pipa no meio da marginal frente aos olhos dos desesperados. Embora o mendigo não falasse uma palavra sequer ela sentia o sorriso contido dele. Ambos saíram correndo em meios aos carros e a pipa pairava soberana por cima de todos, dançando e dando voltas como um espírito brincalhão.
Ela foi embora a pé, chegou em casa, tomou um banho e decidiu escrever. Passou dias, sobre o mesmo efeito, escrevendo com obsessão sobre as amarras da vida, sobre as mensagens ocultas que devemos ler, sobre a condição humana, sobre a tristeza e a felicidade, sobre quem somos, sobre a edificação da nossa personalidade. Refutou teóricos, abandonou técnicas e criou seu próprio código de conduta. Talvez tivesse escrito mais se soubesse que naquele mesmo dia, muitas pessoas morreram na marginal impossibilitadas sair dos seus carros, ou não queriam, ou foram impedidos de avançar pela enorme quantidade de carros abandonados na pista.
Seu consultório não tinha mais a ornamentação de antes, suas pacientes da casse média paulistana se encantavam cada dia mais com esta nova forma de ver o mundo. Sem perceber a infeliz mulher transbordava de prazer impelindo as pessoas pelos caminhos que ela nunca teve coragem de seguir. Muitas dessas também abdicaram da vida confortável e se lançaram de cabeça no mundo. Seus dias de escrita renderam livros, best-sellers, durante anos os mais vendidos em todo país e em questão de tempo sua doutrina era traduzida e ganhava adeptos no mundo inteiro
Sem perceber, esta mulher, ou aquele mendigo transformaram o modo de pensar de uma geração de pessoas. Fazendo-as experimentar a vida em todas suas intensidades e vertentes. Seguidores e continuadores desta doutrina perpetuam até hoje estes princípios. Após sua morte, repentina por pneumonia, seu nome foi reconhecido. Ganhou prêmios e sua imensa fortuna foi doada a fundações destinadas a prosperar a vida livre.
Muitos historiadores, sociólogos e filósofos denotam àquela mulher uma nova fase histórica de humanismo contemporâneo refletido no modo de consumo, na economia e nas políticas públicas da sociedade. Outros, recentemente tem destacado a história de vida daquela mulher pontuando-a como infeliz e manipuladora. Estes consideram-na como uma escritora de auto-ajuda para mentes frágeis e passíveis de manipulação. Dentre seus oponentes, o famoso sociólogo José Antônio ficou mundialmente conhecido por expor a todos as verdadeiras faces daquela mulher. Por convencer com uma vivacidade a construção ideológica como filha da história de vida dos seres humanos. José Antônio usava sua própria vida para justificar a teoria. Tivera uma infância dura e indiferente e sozinho teve de galgar o mundo, conhecendo a duras penas e sendo um resultado disso. O que ninguém sabia e tampouco descobriram era que José Antônio era filho daquela mulher. A qual ele preferia chamar de a-mulher-que-não-conseguia-se-entender.

19 de junho de 2009

Haikai

impelida pela vontade

a folha que se desprende

perde a liberdade

13 de maio de 2009

Onde nascem as Lágrimas?

   Era uma vila encantadora, jardins cobertos de cravos, lírios, crisântemos e hortênsias floridas. O tapete de grama se embrenhava entre sobrados suavemente pintados em cores amenas, grandes varandas, sem portão ou trinco. O céu parecia azul o ano inteiro, o sol regava todas as trinta casas sem preferência por uma, a chuva era prateada, lindos frutos cresciam nos pomares. As pessoas os compartilhavam sem cerimônias. Sorriam para seus vizinhos a cada manhã, as crianças pequenas corriam descalças na relva. Brincavam de esconde-esconde enquanto seus pais, orgulhosos, com lindos trajes, tomavam os mais saborosos chás à porta de suas casas. As senhoras e senhores pareciam não ter rugas, eram serenos, cultivavam o amor eterno. Ali, num lugar distante, onde os problemas do mundo pareciam não ter chegado. Onde não havia televisão, rádio, computadores, futebol e as pessoas viviam bem umas com as outras e dentro de casa. Ali, no conforto de um colchão de plumas, nasceu e cresceu Laurine.

 

   Uma menina amável, doce, tão linda que até as flores pareciam se curvar quando ela passava. Ali Laurine viveu e cresceu feliz, amando seus pais, seus vizinhos e aquele lugar. A mocidade de Laurine trouxe também um lindo amor, tão puro, tão forte que somente Ali poderia acontecer. Heitor era cavalheiro e respeitoso, brincava com as crianças, lia os mais belos contos a elas e, às vezes, costumava deitar na grama à noite para se banhar de estrelas. Ali, onde o que mais se via eram os dentes das pessoas e seus sorrisos francos de alegria, eles se casaram. Em meio a violinos e pistons, o baile foi grandioso e a lua de mel do casal reinventou o badalar dos sinos.

 

   E ali mesmo, no colchão de plumas, Laurine se deitou com as dores do parto. O velho médico veio calmo, as pessoas esperavam ansiosas na sala. Heitor segurava a mão da esposa, que a apertava com força. E, entre um suor e outro, viu-se o sorriso do médico erguendo um lindo menino, cabelinhos louros e a pele ainda avermelhada. O menino respirava calmamente e até parecia pressentir o privilégio de nascer em um lugar daqueles. Ambos choraram ao ver o filho. Choravam felizes um para o outro enquanto o doutor dava-lhe pequenos tapas na nádega. O menino se manteve tão calmo que assustou o doutor. Ele estava vivo e vívido, mas não chorava. Não se sabe por que, ninguém sabe até hoje, mas ali, naquele lugar encantador onde tudo era bom, oriundo do amor mais puro dos pais mais lindos, nasceu um menino com a estranha capacidade de não chorar. Por se tratar de algo desconhecido, as pessoas da vila apenas olhavam o recém nascido com admiração. Não havia motivo para preocupações, afinal não lhe faltaria amor muito menos condições de ter uma vida normal. Mas logo perceberam todos que não seria tão fácil.

 

   Um dia chamaram um médico, pois o bebê não parava de vomitar. Constataram apenas excesso de leite em seu estômago. Ele não chorava de fome, nem de cólica, nem de nada. Se o colocavam no berço dormia quando queria, ou ficava com os olhos abertos olhando todos. Laurine começou a se sentir indiferente para o menino. Aquele choro de bebê que só cessa com a presença da mãe não havia. Se se machucava, não chorava; se lhe faziam cócegas, não chorava de rir, apenas olhava. Se o deixassem sozinho no escuro ele não chorava, não chamava a mãe ou o pai. Se lhe gritassem ele obedecia sem chorar. Nada Ali era capaz de fazê-lo chorar. A necessidade dos pais não havia, e talvez não houvesse necessidade naquele ser. Parecia até não haver vida. Com o tempo, as lágrimas que faltavam ao menino começaram a nascer nos olhos da vila.

 

   Desde que entrara em um mundo particular de angústia e solidão, Laurine evitava chorar na frente de seu filho, mas chorava todos os dias ao acordar. Aos poucos, o amor do casal escorreu feito água... feito lágrima, impelindo-os a um convívio longínquo e frio, dormiam em quartos separados inclusive. Os vizinhos não ficavam mais à varanda, a estranheza causada por aquele menino de gelo afastava as pessoas. Estas não sorriam mais como antes, olhavam de canto de olho e as crianças não queriam brincar com ele. Aos poucos também a grama cresceu, árvores morreram, as ervas daninha cresceram junto às flores. As senhoras e os senhores agora choravam também, e, quanto mais choravam, mais suas lágrimas lhes cavavam rugas. Cabisbaixos eram uns com os outros e a vila sublimava seu encanto. Não incomumente havia brigas, as pessoas choravam também, choravam de saudade, choravam de dor, de ódio, de angústia, choravam de lágrimas.

 

  Indiferente ao cinza que pairava, o menino cresceu normalmente, com saúde. Falava, corria, aprendia, sonhava.... mas não chorava. Certo dia, lhe caiu um galho na cabeça fazendo seu rosto sangrar. Admirado com aquele líquido vermelho, o menino correu para a mãe perguntando a natureza daquilo. Desesperada, Laurine não conseguiu conter as lágrimas de desespero. Era como se o menino mostrasse a eles o significado daquilo que nem ele sabia o que era. Naquele dia, com sangue nas mãos, o menino parou, seus olhos fixaram-se no rosto da mãe, ele viu lhe correr água pelo rosto... acompanhou o lento movimento dela até o canto da boca. Parado, imóvel, ele não tinha visto sua mãe daquele jeito e, embora se acostumasse a ver esta cena na vila, ver sua mãe foi inédito.

 

-         Mãe? Mãe? Você também faz isso? E o que é isso? - se aproximou.

A mãe ergueu o rosto, limpou a lágrima e o sangue do filho.

-         Isso é uma lágrima, meu filho.

-         Que que é uma lágrima? Caiu um galho no seu olho, foi?

-         É quase isso filho.....  - as lágrimas corriam novamente.

-         Mas de onde vem isso? Aí de dentro dos seus olhos?

-         Depende filho, as lágrimas nascem em um monte de lugar. Nascem quando alguém vem ao mundo – mais choro – e quando alguém se vai. Nasce quando as pessoas se afastam, ou quando elas desejam muito algo que não podem ter. Nascem também quando a gente se machuca assim que nem você, ou quando a gente machuca o coração. Mas elas também podem nascer quando a gente consegue conquistar algo, ou quando a gente vê uma coisa bonita, quando nos fazem cócegas. Podem nascer assim, que nem a da mamãe de te ver desse jeito.

-         Eu quero chorar também com você mãe, posso?

-         Pode filho - e trouxe o menino junto ao peito – Mas eu acho que a mamãe já chora por nós dois.

 

As lágrimas de sua mãe foram tantas que em dois anos a afogaram de vez e.... Ali, vendo o rosto pálido de sua mãe coberta de flores no caixão, o menino olhou, olhou e olhou. Seu pai, agora uma pessoa seca e violenta, o desprezara dentro de casa. Gritos, tapas e injúrias lhe eram dirigidos como culpa pela morte da mãe. Ali, enquanto a vida lhe era também indiferente, o agora moço viu o pai sumir por entre os matagais da cercania. Esperou dias por ele e, quando a comida acabou em sua casa, o moço decidiu seguir o mesmo caminho do pai. Entrou no mato, andou, andou e suas pernas não doíam... seu corpo permanecia andando. Por dias andou, comeu frutas caídas à beira de uma estrada, dormiu em valas, passou frio e aguentou chuvas. Até que um dia seus pés colocaram-no às portas de uma grande cidade.

 

Este novo lugar era estranho, havia outdoors, carros e carros andando soltando fumaças pretas e densas, pessoas maltrapilhas embaixo de ruas sustentadas por pilastras. Pessoas tão elegantes quanto as que se recordava da sua mais tênue infância. Havia casas tão grandes que pareciam tocar o céu, pareciam ter mais de duzentas janelas. Havia grandes pedaços de ferro parecendo minhocas correndo sobre trilhos de ferro. Havia pessoas cobertas de flores como sua mãe e outras cujas cabeças deveriam ter sido atingidas por galhos. Ali também era cinza, as pessoas também eram tristes. Lágrimas havia muito mais do que na vila. Como havia pais iguais ao seu, fugitivos de algo, algo que desconheciam ou que os fazia chorar. Fugindo talvez de uma vila e encontrando naquele lugar tão grande maior tristeza da qual fugiram. Por onde andava, as fotografias lhe eram iguais. Aquela imensa vila começara a fazer sentido para o menino. Sentido de que ele fugiu para descobrir o quão ruim foi ter fugido.

 

E Ali, na maior vila que já vira na vida, na multiplicação doentia e dolorida do mundo que cresceu. Ali, onde o choro inundava as ruas, ele sentou e, depois de sentar, ele olhou, olhou... e olhou.

4 de fevereiro de 2009

Privada e escalatrina

Os pés inchados dentro de sandálias furadas arrastavam-se dolorosamente na calçada. Talvez cem ou duzentos pés, a maioria com unhas grandes e grossas, enrugados e cascudos. Pés de várias cores, várias formas, vários cheiros.... pés cujo peso que carregam são maiores do que podem suportar, o peso do abandono.....e eles suportam. O primeiro da fila evitava o olhar da missionária, pegava uma maçã, um pote com canja, uma colher descartável, um suco e ia embora comer na porta do bistrot. A missionária distribuía os alimentos com os olhos piedosos de Deus ante os necessitados. Ela inclinava ligeiramente o pescoço, sorria como atendente de magazine e por trás daquele sorriso respirava....não tinha coragem de inspirar pelo nariz...o cheiro das pessoas lhe causava náuseas. E a amálgama de fedor envolvia e evoluía aquela fila crescente:
- O senhor fazia o que?..
- Eu? Eu era professor..dava aulas...
- Aí o cara achou que eu queria a privada..
- Ahhhh
- Vale deus, o minino tá só o osso de magro...
- Ah eu devolvi sim, o dinheiro não era meu.
- Se num sabe...até hoje eu sô anafabeta..mas eu se lê mão seu professor...
- Ele só chorava, não queria teta não...
- Mas o que será?
- A porra da privada tava no meio da calçada...
- Eita!
- Tem um cigarro pra arrumá?
- Brigado.
- Ah, mas o senhor vai se muito feliz, um homem sabido, vai dá aula, ensiná os outro...
- Acho que é escalatrina que eu vi no rádio...
- Ô doencinha do inferno.
- Olha o cara cortando fila ali na frente!!

No começo da fila o Negro disse:
- Respeitem meus cabelos brancos – pegou a refeição e saiu. A canja era branca também e ele respeitosamente devorou.

- Troquei a rodinha, tava arranhando...
- Depois disso o cara disse que não queria mais....que já tinha cagado trinta anos lá dentro...
- Deus te ouça, mas acho que não sou um bom professor viu....
- Se for mesmo eu levo o minino lá, eles vão te que dá os tratamento.
Falas aconteciam, histórias iam e vinham..
- O cara falou que paga R$15,00 por dia.

Como se aquela frase devesse ser dita de forma mais silenciosa, o homem que a pronunciou sentiu as pessoas silenciando ao seu redor e a leve impressão que seu novo biscate teria de ser compartilhado.
De fato as pessoas se calaram no exato instante que um avião passou no céu. Dentro dele um jovem e cuidadoso piloto sorria para as nuvens, gordos dormiam e roncavam, executivos preocupavam-se com qualquer coisa, a aeromoça chorava no banheiro por se descobrir grávida na noite anterior, velhas falavam dos parentes para pessoas desinteressadas. A neta da velha conseguiu um ótimo emprego numa gravadora musical gospel. Conhecia grande parte dos cantores e ia na casa de alguns deles no Morumbi. A neta, que neste exato momento, em algum canto da cidade acabava de se deparar com uma privada no meio da calçada, gravou o grande sucesso gospel “Deus é igual para todos”. Musica que tocava no carro do namorado do piloto enquanto este passa ao lado da fila dos pedintes e ele se deparava com conflitos morais. O ex dono da privada mal imaginava que sua filha, cujas nádegas repousaram também muito tempo naquele assento, estava grávida chorando no banheiro de um avião. O pai do bebê, gerente de uma rede de fast food, responsável pela grande obesidade daqueles que dormem e roncam no céu, não sabia da notícia e continuava atendendo as mais diversas pessoa famintas... do outro lado da cidade outras pessoas famintas viam na possibilidade de ganhar R$15,00 por dia uma excelente oportunidade.

- Como que é essa história?
- Aqui ó – tirou do bolso um papel – o moço disse que eles tão precisando de gente e pagam quinze por dia.
- Lê pra gente aí professor!
...

“O PARTIDO SOCIALISTA NACIONAL (PSN) NECESSITA DE PESSOAS PARA SEREM CABO ELEITORAL NA CAMPANHA.
DISPONIBILIDADE: O DIA TODO
R$ 15,00 POR DIA (sem benefícios)

Os interessados devem comparecer das 09:00 as 17:00 no seguinte endereço.
Rua São Francisco, 1666, Pompéia.”


- Ta tendo eleição é?
- Olha só! Eu vou!
- Mas o que que é isso de cabo? Que que a gente faz?
- Entrega panfleto do candidato, veste camisa, balança bandeira, essas coisas.
- Quinze conto pra isso? Moleza
- Mas pra que que eles qué que agente faça isso professor?
- Pra o candidato ganhar votos.
- Oxe, que coisa estranha, eu nem título tenho... e como é que os outro votam nele só de vê a camisa?
- É esse mundo tem muito mais coisas estranhas do que agente sabe.
- Ihé mesmo.
- Olha só!!!
- Que foi professor?
- O cara que ta recrutando, o Maurício Junior...ele foi meu aluno.

Palpitar em breus

Encontrei este poema perdido num caderno....rs Acredito que deva ser do final de 2006.

___________________________________________________



Foi-se, esvai-se o mundo.....de sons
Sons paralelos aliados a mudos palpitares

PULSAR.....PULSAR.....PULSAR

Não se Perguntam por que, apenas pulsam.

A noite engole os pensamentos em breus

.... vejo ela nos olhos teus.

Negros, vis e tristes olhos de ternura.

O rosto que te envolve não é mais o mesmo...
O mesmo irradiante
O mesmo encantador e orquestrador rosto de estrelas..
Apagou-se, foi-se.

Sinto o quase-toque de suas mãos sobre as minhas
E...
No calor do corpo antes de repousar na superfície da pele abrem-se espasmos cintilantes

Os nossos olhos fecharam-se

Len-ta-men-te

Até o derradeiro encontro de almas, de nuvens, de corpos

Não somos nós!!! Somos a própria noite....o breu....o escuro e a paixão.

Somos o tudo..... e tudo se esvai.

O lado de dentro...sublime

O lado de dentro...sublime