Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

12 de setembro de 2011

Criança cria herança

É assim. Uma sacola plástica sendo chacoalhada e ela rindo à gargalhada. Sem dente, careca ou com escaços fiozinhos ela nasce assim, conhece o mundo com a boca. Clips, tampas, comidas, sujeiras, ela experimenta e prova de tudo até saber o que pode ou não comer. Depois para de provar. É assim. Os primeiros passos, tenros, frágeis, desequilibrados mas de uma força vital avassaladora, de um sorriso dos pais próximo ao êxtase. E andando vai, andando cai, levanta, anda e segue, e corre...corre para a vida. E fala a vida, assim meio desconexa, meio complexa, paralelepípedo, Pindamonhamgaba, circunflexa.

É assim. Pipa, bicicleta, bonecos, bonecas, esconde-esconde, roupas sujas. Na festa de aniversário muitos brinquedos, modernos, sofisticados, agradam mais aos pais que ela, que em pouco tempo está chutando latinha e fazendo castelos na areia suja. E chora se seu castelo desmorona. A vida, embora seja um playground, mostra como as coisas podem ser ao cair de um castelo. Futebol, queimada, corrida, piscina, praia, festa, amigos. Por quê? Por que o céu é azul papai? Por que não posso mexer nisso mamãe? Por que isso é só de criança? Por que as crianças crescem? Por que fez isso filho? Por que o tempo não para? Por que as crianças deixam de ser crianças? Por que tantos porquês? Por que estas perguntas te farão ser homem ou mulher? Por quê?

É assim. Vinícius de Moraes ao ver sua filha nascer escreveu: “fique assim, meu amor, sem crescer. Porque o mundo é ruim, é ruim e você vai sofrer nessa vida uma desilusão, porque a vida somente é seu bicho papão”. Há aqueles cuja vida se torna um eterno brinquedo. Experimento de sorrisos, sensações, intensidade de olhares, gozo, aventura. Estes são ditos “fugazes”, “irresponsáveis”. Há aqueles cuja alma de criança permanece e o ar da surpresa presenteia cada esquina, espanto, assombro. Estes são ditos ingênuos, doidos. Lhe são aconselhados psiquiatras e terapeutas. À criança resta a “pureza” que se perderá em cada censura dos pais a lhes dizerem o que é certo e errado, em cada sala de aula a lhes ensinarem a doutrina; em cada nova experiencia a lhe ensinar a dor de não ser mais criança. Por quê?

É assim. Uma paixão, uma arte com sua companheira à quarenta anos. O neto no parque, a boca suja, o dedão machucado, as cicatrizes da liberdade. Tememos que as crianças cresçam e a vida lhe subtraia o encanto. Tememos que elas não cresçam e que a vida lhe seja perene, sem dor, sem morte, sem vida. Tememos, sobretudo.... temos medo. Medo do mundo que ela terá de enfrentar assim que lhe vierem os primeiros pelos. Tememos pois sabemos como o mundo é. Tememos intimamente por nos sabermos participantes do mundo e construtores do nosso medo. Quase nunca tememos pelas crianças que deixaremos para este mundo. As escondemos: “o mundo é mal e você terá de aprender a lidar com ele” ao invés de: “o mundo é o mundo e você o constrói conforme brinca, faz de seu mundo o amigo fiel, faz de seu amigo um mundo bom”.

É assim. O medo rouba a infância e a melhor herança. O medo dos ditos adultos, inteligentes, sapientes. A criança aprende o medo dos outros, vai caindo, tomando pra si o que não deveria tomar. Vai pensando demais, refletindo demais os sentimentos impensáveis. Enrugando e enrijecendo a cada lágrima. A criança lava louça, paga contas, corta a grama, troca o disjuntor, pensa o mundo, teoriza conceitos, faz sexo, amor, ou se casa. Corre atrás de dinheiro, trabalha, se preocupa, gasta suor, sangue, sorriso em troca daquilo que jamais quis ser enquanto pulava corda ou tomava banho de chuva. Quando pelada não se preocupava com os olhares alheios senão com uma banheira rasa num dia de céu claro e calor intenso.

É assim. Uma conversa no botequim, uma piada de si mesmo, um grito no silêncio, falar sozinho no banheiro, uma proeza anônima. Ficou mais de três minutos embaixo da água e não tinha ninguém pra contar; jogou uma bituca de cigarro e ela caiu em pé e não tinha ninguém pra contar; matou cinco bolas de sinuca em uma tacada na hora em que todos estavam no balcão; fez uma sesta do meio da quadra no final do treino onde todos estavam no vestiário; Encontrou um ídolo internacional, você e ele, sem fotos; resolveu um quebra cabeças de 3 mil peças em duas horas; depilou a axila inteira com uma pinça e sem nenhum machucado..... Rimos sozinhos, vibramos como aquela criança que morreu dentro de nós. Ela quer sair, te faz sorrir, fazer um “yes!!” soltar um grito abafado. Depois ela volta pra dentro de você, de onde nunca deveria ter saído... e adormece. Viva as crianças, as que matamos, as que sobreviveram, as que ainda estão por vim e as que podem sobreviver. É assim, como num curto tempo é assim. Como as rugas que carregará, é assim. Como a estrada que constrói conforme anda. É assim, mas poderia não ser. Deveria não ser.

O lado de dentro...sublime

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