Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

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19 de agosto de 2008

A seleção dos Feijões

- Bom meu filho, deixe-me ver... Ora, você está ótimo. Você será um dos feijões mais saborosos de um possível prato tropeiro. Estou orgulhoso disso.

O saco de feijão tipo 1, série BR3257, estava dentro do armário e, enquanto A-Mão não o abrisse, a vida continuaria normalmente. As aulas na escola dos feijõezinhos, a vigília ostensiva, o controle de fungos e bichos, e toda a rotina daquela comunidade 3257. Desde todos os tempos fora assim; antes, porém, as comunidades eram maiores, sacas de trinta ou quarenta quilos. Os feijões aprenderam a lidar com a seleção. Feios, podres, manchados, enrugados e divididos sabiam que enfrentariam problemas com A-Mão. Isso sem mencionar o apartheid natural das sacas. Feijões brancos, negros e marrons não se misturavam e quando algum estava perdido por acaso em sacas diferentes, era rechaçado e desprezado.

- Você não acha que esta mancha aqui pode me causar problemas? – perguntou, receoso, o filho, apontando para uma mancha no cotilédone direito.
- Imagina! Não admitiria isso – no fundo, papai feijão já sabia que as chances do pobre menino eram poucas – Além do mais, a situação não anda bem para Os-donos-das-mãos; isso significa que a seletividade diminui. Mas isso é coisa para feijões mais maduros. Quando terminar o colégio, vai entender as leis do mercado granular.
- Minha professora de História já falou disso pra gente. Que um tal de Vage, Varge, Vargas... não lembro direito... que ele provocou o maior genocídio dos primos cafés.

Enquanto o menino tecia suas peripécias escolares com a maior empolgação, o pai feijão ouviu o som de uma chinela se aproximando e uma melodia baixa acompanhando o som. Em toda comunidade de feijões ensacados esse barulho representa um sinal de atenção. Os passos cessaram. A luz invadiu o armário, A-Mão agarrou firme o saco de feijão. Era chegada a hora. O pai, apesar de encorajar seu filho às grandes virtudes de ser um bom prato, estava agoniado. As criancinhas feijão aprendiam desde pequenuxas, nas aulas de religião, que a salvação só viria quando eles estivessem integrando uma refeição dos Donos-das-Mãos. Mas, naquele momento, o pai teve vontade de não crer neste final. Ele se aproximou do filho, engoliu seco e disse:

- É mesmo filho? E o que mais você viu na escola hoje?
- Ahh, adorei a aula de Literatura. A professora disse que, se não estivéssemos em comunidades, poderíamos ser tão grandes quanto o pé em que João subiu. A de Geografia explicou por que no Rio de Janeiro a maioria das séries são de feijões pretos e a tia...

De repente, houve um momento de inquietude. O saco fora aberto. O pai interrompeu o filho.

- Olha filho, você pode ser um lindo pé igual ao do João. Eu acredito nisso e gostaria que você acreditasse também. Aquela que você está vendo ali em cima é A-Mão, ela irá fazer a seleção agora – o pai atropelava as palavras – Lembre-se do que você aprendeu, vamos ficar longe dos enrugados e escuros... Eles chamam a atenção dos olhos e podemos ser excluídos junto com eles.

O filho, sem palavras, apenas olhava para cima e admirava A-Mão. Um objeto estranho, disforme, com partes alongadas. Ela estava lá, com dedos gordos e dobras largas. A-Mão virou o saco e espalhou os feijões na mesa.

- Fique comigo, filho – estavam a três corpos de distância.
- “Longe dos meus olhos e tão pertos do meu coração!” – a Dona-da-Mão cantarolava.
- Pai!!!
- Sai filho, atrás de você! – havia um grande feijão idoso, enrugado e manchado atrás dele.
- Sai daqui, seu velho! – desespero – Sai!!!
- Filho!!! Cuidado!

Tarde demais, a mão distraída e ágil separou o menino e o velho num canto escondido. Um simples gesto, um simples canto... talvez, para a Dona-daquelas-Mãos. Mais que isso, um machado deferindo golpes secos e rompendo laços fortes de dois feijões. Não há dor, não deveria haver dor, mas isso ainda não fora bem ensinado àquele grão... que sofria.
O pranto era a única resposta aos dois naquele momento. Eram solitários, entretanto, em meio ao fulgor e a alegria daqueles escolhidos. Ao lado da desolação, o corpo de feijões machucados, leprosos, idosos e descartados aumentava. Todos silenciosos, impassíveis.

- Você vai brotar, meu filho! – esganava o pai de dentro do pote onde os bonitos jaziam felizes a caminho da panela.

Em pouco tempo tudo estava terminado. Os feijões bonitos mergulhavam sorridentes na panela. Os descartados, por sua vez, foram rapidamente despejados no lixo em meio a raízes de alface, cascas de batata, ovos podres e pele de frango.
O menino silenciara-se. Um dia ouvira falar do que aconteceria àqueles que não alcançassem a salvação. O desprezo, a podridão, a feiúra dos imprestáveis. Neste ambiente haveria bichos, fungos, pragas, mares tóxicos e gases venenosos. O medo dominava o pobre menino diante das imagens que ele mesmo criara. Onde ele caíra não havia nada, mas ele sofria ao imaginar o caminho que rumaria.

- Sabia que existe uma lenda antiga que não ensinam em escola nenhuma? – o velho feijão estava novamente ao seu lado.
- Como assim?

O feijão idoso tinha crostas em quase toda pele, o que lhe conferia um ar de constante tristeza. Sua frieza e tranqüilidade encontraram o desespero do jovem grão.

- Dizem que, para além do mundo dos pratos bonitos, os feijões descartados como nós vão para lugares gigantescos. E que é possível encontrar lá a verdadeira liberdade; mas, para isso, temos que abdicar de tudo o que aprendemos e conviver com os mortos. Dizem que lá também existe A-Mão, aliás muitas Mãos, mas elas são diferentes daquela que há pouco você viu. Elas são mais feias, muito mais feias, são magras, cheias de fendas fedorentas e micoses, elas são enrugadas, muito sujas; elas tremem e não tenha dúvidas de que elas escolheriam muitos dos que aqui estão.
- Você espera ser livre agora? – frêmito na fala do menino.
- Já estou livre desde que caí neste lixo. Ou você acha que estaria te dizendo isto lá dentro?

O lado de dentro...sublime

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