Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

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7 de dezembro de 2011

Vida de boneca

I

Em uma praça vazia, uma boneca perdida quer chorar mas não consegue.
A boneca sorri, sorri para sempre, ou para todo o seu sempre
enquanto lhe restarem as maçãs soerguidas sorrirá.
Forjada na fina porcelana o artesão lhe pôs os brilhos vítreos mais vívidos nos olhos para que ela faça feliz uma criança.
Sozinha ela sorri.
Sua vida é puro riso, e há curvas em branco atrás daquele riso, daquele vidro.
E atras daquele olhar há o nada...o ar
E adiante daquele olhar há o nada... a indelével realidade.
Mas é no olhar e precisamente no meio do caminho, no olhar que há a vontade de chorar.
Na superfície translúcida daquele olhos que muito já viram
e de tanto ver os sorrisos das crianças implorou diluir-se


Quando chega em casa o colecionador percebe que perdera uma boneca.
Sua dúvida entretanto se estende entre o deslize e a pressa, e talvez resida nos dois
Colecionadores de bonecas são como colecionadores de outras coisas quaisquer.
Amam funebremente seus brilhos e suas maçãs pelo fato destes serem muitos seus....somente seus, diferentes e....e muitos.
Quanto mais melhor.
Perder uma peça é perder um pedaço de si depositado nas brancas curvas de uma porcelana
Ela era mais uma entre tantas, chegou a pensar...e era mesmo
De uma prateleira de muitas, intactas, todas um dia pertenceram a uma criança


Na praça, uma criança chora, e chora porque pode fazê-lo,
Por que é a única e mais verdadeira expressão do que sente e não conhece
Perdeu sua boneca, perdeu-se de seu pai, perdeu-se de sua irmã...e sem os três não é nada.
Perdeu-se.
Se um estranho lhe aproxima, lhe toca os ombros ela meneia de canto e chora mais
Quisera o estranho poder ajudar, quisera o estranho chegar perto de entender a dor daquela menina
seu soluço seus berros não podem ser compreendidos por um estranho que passou a vida toda olhando no fundo de olhos de vidro e emoldurando sorrisos puros.


Um pai que esquece a filha poderia chorar, mas não o faz.
Uma boneca, um passeio, um olhar esvaído.
Chacolha um berço de bebe como um de boneca, sem lhe olhar, sem se importar
Como um pendulo que balança sem saber porque.
Seu olhar é de quem perdeu o sopro e, sem vida foi pendulando berços e deixando que se percam as criaturas todas
E ele, a criatura mais perdida que uma boneca na praça, se escorre para o solilóquio de relógio impassível

II

Há de certo que a boneca se encontrada ou não envelhecerá.
Lhe cairão os fios suplantados,
A opacidade lhe virá ao vidro como as cataratas das velhas que vivem
A cor rúbia de sua pele desbotará e, embora o sorriso lhes seja a única arma para conseguir afeto
nem as crianças nem os colecionadores terão um afago para lhe confortar.
Estar perdida prenuncia seu futuro cárcere e dor, por não chorar

Há de certo que à criança lágrimas lhe faltarão....
No gosto amargo da memória e no sintoma prematuro da perda haverá aprendizado.
E ela não envelhecerá, far-se-á nova a cada lágrima, mas cada uma dessas lhe trará o desalento.
De tantas e tantas águas não haverá mais bonecas,
Da perda de antes o mais verdadeiro humanismo, que nenhum adulto, ou pai, ou colecionador conseguira ter, lhe fez sofrer a culpa sobrepor a dor
Eterna criança.
Desvencilha-se dos fiapos de sopros futuros para mimetizar-se como uma boneca e manter dentro dela uma chama juvenil de existência.
E sorri na vida, embora queira chorar.

III

Ela para à beira da praça para a qual o próximo passo lhe tira do lugar de antes
Ele para à beira da praça para o qual o próximo passo abrigará uma angústia anônima
Se o mundo lhe abre ante os pés fugir é o próximo passo
Mas, para onde fogem os que estão perdidos? Para qualquer lugar?
De perda em perda? De lugar perdido para outro lugar perdido?
Perdida em um lugar perdido e perdido em uma praça perdida.

Se o chão do tempo se abrisse poderia não perder a boneca
Poderia não perder a filha;
Poderia não perder a vida;
Poderia não perder o choro,
nem o impávido relevo branco do nada.

Se ela tivesse se encontrado em outro sorriso
poderia se fazer mulher;
Poderia lhe fazer mulher;
Poderia esquecer o colecionador.

Se ele não a perdesse, não se perderia no nada do seu dentro.
No badalo mudo do tempo que não passa
Uma filha, uma boneca, tanto faz.
Poderia lhes dar vida

Colecionadores perdem-se na enormidade das peças
Bonecas perdem-se na enormidade de sorrisos
pais perdem-se na enormidade de culpas
Crianças perdem-se na enormidade das lágrimas

Encontrar-se-ão talvez jamais?
Fugirão sempre?
Entrelaçados no infinito deles mesmos
sozinhos ou não estarão perdidos.

Na prateleira lustrada do colecionador o vidro se gastará
no berço vazio do pai uma boneca caberá
No sorriso aberto da criança-mulher um pai faltará
Na lágrima fantasma de todos uma boneca sorrirá.

O lado de dentro...sublime

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