Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

4 de fevereiro de 2009

Privada e escalatrina

Os pés inchados dentro de sandálias furadas arrastavam-se dolorosamente na calçada. Talvez cem ou duzentos pés, a maioria com unhas grandes e grossas, enrugados e cascudos. Pés de várias cores, várias formas, vários cheiros.... pés cujo peso que carregam são maiores do que podem suportar, o peso do abandono.....e eles suportam. O primeiro da fila evitava o olhar da missionária, pegava uma maçã, um pote com canja, uma colher descartável, um suco e ia embora comer na porta do bistrot. A missionária distribuía os alimentos com os olhos piedosos de Deus ante os necessitados. Ela inclinava ligeiramente o pescoço, sorria como atendente de magazine e por trás daquele sorriso respirava....não tinha coragem de inspirar pelo nariz...o cheiro das pessoas lhe causava náuseas. E a amálgama de fedor envolvia e evoluía aquela fila crescente:
- O senhor fazia o que?..
- Eu? Eu era professor..dava aulas...
- Aí o cara achou que eu queria a privada..
- Ahhhh
- Vale deus, o minino tá só o osso de magro...
- Ah eu devolvi sim, o dinheiro não era meu.
- Se num sabe...até hoje eu sô anafabeta..mas eu se lê mão seu professor...
- Ele só chorava, não queria teta não...
- Mas o que será?
- A porra da privada tava no meio da calçada...
- Eita!
- Tem um cigarro pra arrumá?
- Brigado.
- Ah, mas o senhor vai se muito feliz, um homem sabido, vai dá aula, ensiná os outro...
- Acho que é escalatrina que eu vi no rádio...
- Ô doencinha do inferno.
- Olha o cara cortando fila ali na frente!!

No começo da fila o Negro disse:
- Respeitem meus cabelos brancos – pegou a refeição e saiu. A canja era branca também e ele respeitosamente devorou.

- Troquei a rodinha, tava arranhando...
- Depois disso o cara disse que não queria mais....que já tinha cagado trinta anos lá dentro...
- Deus te ouça, mas acho que não sou um bom professor viu....
- Se for mesmo eu levo o minino lá, eles vão te que dá os tratamento.
Falas aconteciam, histórias iam e vinham..
- O cara falou que paga R$15,00 por dia.

Como se aquela frase devesse ser dita de forma mais silenciosa, o homem que a pronunciou sentiu as pessoas silenciando ao seu redor e a leve impressão que seu novo biscate teria de ser compartilhado.
De fato as pessoas se calaram no exato instante que um avião passou no céu. Dentro dele um jovem e cuidadoso piloto sorria para as nuvens, gordos dormiam e roncavam, executivos preocupavam-se com qualquer coisa, a aeromoça chorava no banheiro por se descobrir grávida na noite anterior, velhas falavam dos parentes para pessoas desinteressadas. A neta da velha conseguiu um ótimo emprego numa gravadora musical gospel. Conhecia grande parte dos cantores e ia na casa de alguns deles no Morumbi. A neta, que neste exato momento, em algum canto da cidade acabava de se deparar com uma privada no meio da calçada, gravou o grande sucesso gospel “Deus é igual para todos”. Musica que tocava no carro do namorado do piloto enquanto este passa ao lado da fila dos pedintes e ele se deparava com conflitos morais. O ex dono da privada mal imaginava que sua filha, cujas nádegas repousaram também muito tempo naquele assento, estava grávida chorando no banheiro de um avião. O pai do bebê, gerente de uma rede de fast food, responsável pela grande obesidade daqueles que dormem e roncam no céu, não sabia da notícia e continuava atendendo as mais diversas pessoa famintas... do outro lado da cidade outras pessoas famintas viam na possibilidade de ganhar R$15,00 por dia uma excelente oportunidade.

- Como que é essa história?
- Aqui ó – tirou do bolso um papel – o moço disse que eles tão precisando de gente e pagam quinze por dia.
- Lê pra gente aí professor!
...

“O PARTIDO SOCIALISTA NACIONAL (PSN) NECESSITA DE PESSOAS PARA SEREM CABO ELEITORAL NA CAMPANHA.
DISPONIBILIDADE: O DIA TODO
R$ 15,00 POR DIA (sem benefícios)

Os interessados devem comparecer das 09:00 as 17:00 no seguinte endereço.
Rua São Francisco, 1666, Pompéia.”


- Ta tendo eleição é?
- Olha só! Eu vou!
- Mas o que que é isso de cabo? Que que a gente faz?
- Entrega panfleto do candidato, veste camisa, balança bandeira, essas coisas.
- Quinze conto pra isso? Moleza
- Mas pra que que eles qué que agente faça isso professor?
- Pra o candidato ganhar votos.
- Oxe, que coisa estranha, eu nem título tenho... e como é que os outro votam nele só de vê a camisa?
- É esse mundo tem muito mais coisas estranhas do que agente sabe.
- Ihé mesmo.
- Olha só!!!
- Que foi professor?
- O cara que ta recrutando, o Maurício Junior...ele foi meu aluno.

Palpitar em breus

Encontrei este poema perdido num caderno....rs Acredito que deva ser do final de 2006.

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Foi-se, esvai-se o mundo.....de sons
Sons paralelos aliados a mudos palpitares

PULSAR.....PULSAR.....PULSAR

Não se Perguntam por que, apenas pulsam.

A noite engole os pensamentos em breus

.... vejo ela nos olhos teus.

Negros, vis e tristes olhos de ternura.

O rosto que te envolve não é mais o mesmo...
O mesmo irradiante
O mesmo encantador e orquestrador rosto de estrelas..
Apagou-se, foi-se.

Sinto o quase-toque de suas mãos sobre as minhas
E...
No calor do corpo antes de repousar na superfície da pele abrem-se espasmos cintilantes

Os nossos olhos fecharam-se

Len-ta-men-te

Até o derradeiro encontro de almas, de nuvens, de corpos

Não somos nós!!! Somos a própria noite....o breu....o escuro e a paixão.

Somos o tudo..... e tudo se esvai.

O lado de dentro...sublime

O lado de dentro...sublime