Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

28 de agosto de 2007

A última consulta


- Sim, e como você se sente?
- Como assim?
- Como você se sente, como pretende assimilar isso? São poucas as pessoas que conseguem chegar aonde você chegou.
- Não sei ainda, estou com medo doutor.
- Medo de quê?
- Não sei, minha cabeça nunca foi boa, você é a prova disso, cuidando dela todo este tempo.
- Sim, não há nada demais com sua cabeça.
- Agora não há mesmo.
- Isso.
- Tudo vai mudar doutor, tudo. Como é bom saber disso.
- Está se sentindo bem?
- Se estou me sentido bem? Claro que estou. Anos e anos com estes tormentos na minha cabeça e pela primeira vez vou conseguir me livrar disso. Muito obrigado doutor.
- Não precisa agradecer, você pagou por isso.
- Acho que a primeira coisa que vou fazer é falar para Márcia, ela precisa saber.
- Sim.
- Como será que ela vai receber isso?
- Se você souber contar, ela vai ficar feliz. Entenda, a cabeça de uma mãe que perde o filho nunca mais é a mesma.
- A gente nunca mais conseguiu transar doutor.
- Sempre te disse que é necessário um tempo para que se supere o trauma.
- São três anos já.
- Não fique aflito.
- Não, não estou. Quando eu contar isso para Márcia ela vai entender. Assim como o senhor fez comigo.
- Vá com calma.
- Se não fosse você para me ajudar, para me fazer entender esses tormentos.
- Eu não ajudo, muito pelo contrário.
- Claro que ajuda, você me fez entender. É uma imagem, eu tenho certeza, não tem como meu filho vir falar comigo.
- Este é um momento delicado.
- Eu gostava, chorava quando ele vinha com aquele rosto liso na minha direção, sorriso aberto.....e quando ele ia era duro, duro demais suportar a verdade.
- Isso não vai mais acontecer.
- A Márcia disse que o viu ontem, será que ele nunca mais virá falar comigo?
- Não, não vai.
- Mas.....e agora?
- Você deve se acostumar.
- Mas eu quero vê-lo de novo, doutor.
- Lamento, você acabou de cumprir a última etapa do processo. Quando sair daqui, terá um mundo cheio de possibilidades. Sua vida não será mais a mesma.
- Desfaça isso, quero ver meu filho.
- Existem coisas indissociáveis meu caro. Quando me procurou, disse que queria acabar com os tormentos, voltar a viver normalmente. É isso que estou te proporcionando hoje. Quanto ao seu filho, era o único meio de evitar a dor que tanto o atormentava. Seu sofrimento era fruto da realidade se confrontando com uma ilusão, uma destas partes deve não mais existir para que se restabeleça a normalidade.
- Obrigado por me dar a realidade. Sei que será duro, mas temos que passar por cima disso. Márcia vai entender.
- Pode ser que sim, pode ser que não.
- Vou tentar.
- Isso, tente.
- Muito obrigado, doutor.
- Não agradeça rapaz, fiz somente o que me pediu. Agora, se me permite, tenho que fazer uma visita e estou atrasado.
- O senhor vai para onde? Quem sabe posso te dar uma carona.
- Vou ver meu filho, não se preocupe, estou de carro.
- Sim. Deve ser estranho para o senhor ir conversar com seu filho com tantos casos de perdas que você atende.
- Não é não. Meu filho morreu há vinte anos, eu estou indo para o cemitério na verdade.
- Mas............
- É isso mesmo jovem. É uma pena que tenha escolhido a ilusão. Eu quis a realidade, por mais dolorosa que seja, cada um tem sua escolha. Acredito que existem dores que não podem nem devem ser apagadas....nunca. Adeus meu caro, siga seu futuro.

21 de agosto de 2007

Um chopp, um elástico e uma raiva

Ele sentou no balcão do Pub sozinho, com sua discrição executiva e cansaço nas sobrancelhas, colocou o paletó no colo e abriu um botão da camisa:
- Um chopp claro por favor.
Ela estava do outro lado do balcão. Sorriso tímido, cabelos bem presos, óculos aprumados, de roupas sóbrias, papo descontraído com amiga e aparelhos nos dois jogos de dentes com um elástico prendendo os dois
- Olha só que homem lindo acabou de sentar do outro lado – a amiga logo viu.
- É mesmo, bonito ele. – “nunca que eu consigo sair com um homem deste” pensamento pessimista.
“ainda tenho que pegar esse transito para ir embora” e ele dava goles profundos no chopp. Ficava olhando as pessoas, como elas conversavam, seus trejeitos, seus sorrisos. Aquilo era realmente desestressante. Luzes baixas, madeira, música agradável e mais um chopp.
- Amiga, vou ali e já volto.
Ela ficou sozinha no balcão e, como que por impulso, não parava de olhar para ele, às vezes perdia o pensamento, quase sempre voltava à tona e ficava envergonhada de si mesma. Então um gole no seu copinho de chopp dava uma certa espairecida. Mas aqueles elásticos eram horríveis, mal ela abria a boca, os elásticos puxavam de volta. Para beber o chopp ela levava o copo até a boca, fazia um biquinho de peixe, encostava o copo, uma leve erguida, uma chupadinha e lá vai o chopp mais espumante do que veio. Claro que todo procedimento era devidamente verificado para que as pessoas não percebessem, caso contrário ela ficaria extremamente sem jeito. Naquela altura do campeonato, tomada pelo furor daquele homem lindo e pelos copos que ela havia tomado, se esqueceu do procedimento e bebeu como se sua boca estivesse livre, leve e solta. Até que não foi tão desastroso, ela percebeu que era plenamente possível abandonar toda cerimônia.
“Hmm, ela não percebeu que ficou com bigodão de espuma, será que ninguém vai avisá-la?”. Aquilo realmente o incomodou, os garçons passavam de lá pra cá, os atendentes dentro do balcão também e nada. Ela estava com um sorrisinho e olhava descontraída para os lados, olhadinha rápida para ele e desvio do olhar. Torneira, camiseta do garçom...ele...desvia rapidinho. Quadro na parede, loira passando, ele...desvia rapidinho. TV, copo, gole, mais bigode, ele. “Acho que eu olhei demais pra ela, ela não pára de olhar para mim” e ele não se segurava, olhava o fundo do copo, a bunda da loira, o bigode...desvia rapidinho. Fundo do copo, bunda da loira, bigode...desvia rapidinho. Fundo do copo, a loira foi embora, bigode. “Ih, ele ta olhando pra mim, ai meu deus, postura”. Deu uma erguida no ombro, mais chopp e bigode. Os olhares se encontravam volta e meia e rapidinho desviavam. “Não vai ter jeito, tenho que avisar”. Olhou para ela, ela viu, a mão dele do lado do copo deu uma erguida, acenou. “Ai! Será que é comigo?”. Ela olhou para trás, não havia ninguém, olhou de novo para ele e o viu apontando para a boca dele e dando uma lambida na parte de cima dos lábios. “Ããhh. Não acredito, ele tá dando em cima de mim!! Ai meu deus e agora, isso nunca me aconteceu antes”. Ela ficou rubra, olhou pra baixo, mas sabia que aquela era uma chance única. Endireitou-se na cadeira, soltou o cabelo, deu uma chacoalhada no pescoço, jogou-o para trás, cotovelos na mesma inchando o decote, olhar fixo nele, passou o dedo indicador na borda do copo, deu uma fechadinha de leve nos olhos e o sorriso mais sensual que podia dar. “Puta que o pariu, ela não entendeu, que que eu faço? esquece, não olha, não olha”. Não tinha como, olhou de relance e viu ela com aquele bigode cada vez mais volumoso dar uma piscadela com a cabeça inclinada. Uma gota de suor desceu de sua costeleta, ele ficou vermelho, arregaçou a manga da camisa e fixou-se no copo. “Que merda que eu fui fazer. Não olha mais, pronto”. Virou-se para o outro lado, o garçom passou, ele teve uma idéia. Interceptou-o, pegou um papel, uma caneta, rabiscou algumas palavras, devolveu, disse algumas coisas no ouvido do rapaz. “Ele escreveu um recado para mim, não acredito, ai! O garçom ta vindo pra cá”. Conforme esperado, bilhete entregue, ela abriu avidamente, leu e arregalou os olhos. “Gente!! É pra eu me limpar....como ele sabe disso, nossa, que homem”. Ele continuava de costas para o balcão, aguardou uns minutos, virou-se e a viu debruçada escrevendo algo, mas com um belo bigode. “Tá de brincadeira essa menina. Será que não consegue entender?”. Ele desistiu, pediu a conta e quando esta veio, veio junto um bilhete. Ele abriu, leu. “Ela num entendeu nada, não é possível”. A raiva se apossou do discreto moço, saiu a passos largos em direção ao caixa. Não conseguia ao menos tirar o dinheiro da carteira. Pagou. Estava saindo quando parou e muito sem pensar caminhou firmemente, virou, foi ao lado do balcão, agarrou a moça, deu-lhe um beijo de arrancar o bigode, afastou a cabeça, olhou....ahhhh pronto, não estava mais lá...adeus bigode. Ela, sem nenhuma reação, olhos bem abertos, boca mais ainda, viu ele abrir um grande sorriso, virar-se e ir embora.

13 de agosto de 2007

A magia Clara - Final

Clara gritava e balançava os braços desesperadamente. O carro não diminuiu o farol e veio devagar. Clara se levantou, foi dar seu primeiro passo quando viu que o carro não ia parar. Era uma caminhonete vermelha, passou como se não os percebesse. Clara pôde ver que um homem dirigia. Quando a caminhonete passou, viu uma corda amarrada na traseira e atrás da corda o Fiat 66 sendo rebocado com uma mulher guiando. Os braços de Clara pararam no ar, apenas o rosto acompanhou a ida dos dois carros e, acima deles, no horizonte, o dia raiando. Ela não emitiu um som, não gritou, não esbravejou. Apenas olhou para Rodrigo desacordado, ou dormindo....decidiu, colocou sua jaqueta em cima dele e começou a caminhar em direção à cidade. Seus joelhos sentiam o peso do corpo mais do que sentiriam normalmente. Os pés doíam, o corpo amolecia...ela não estava mais ali. O rosto sem expressão galgava passos cambaleantes...ela seguiu. Encontrou, por fim, um bar quando o sol já se mostrava.
Chegou e seu corpo se deixou cair no balcão em cima dos cartões promocionais. As poucas pessoas que lá estavam pararam de mastigar seus pães de queijo...apenas olhavam o estado deplorável da jovem. O dono do bar se aproximou, deu uma tocada no ombro dela – moça...ei moça..que que aconteceu? Clara ergueu len-ta-men-te o rosto, se olhou e, antes que pudesse responder, viu grudado em sua mão o folheto do restaurante de sua amiga...parou, olhou e virou para o dono:
- Telefone - Foi o que conseguiu dizer. O homem apontou para o orelhão ao lado do caixa.
Ela foi, ligou a cobrar, trocou rápidas palavras com quem estava na linha, desligou e saiu cambaleando. As poucas pessoas que estavam no bar se olharam e voltaram a mastigar seus pães de queijo. Clara esperou Alice chegar no posto ao lado. Não demorou muito e uma buzina. Era Alice:
- Meu deus do céu menina, que que te aconteceu? – Alice ergueu pelo queixo o rosto pálido de Clara e jogou seu cabelo para trás. Clara fracamente pronunciou:
- Depois te explico...temos que pegar uma pessoa na estrada.
Alice ajudou Clara a entrar em seu carro, entraram na estrada e em pouco tempo viram o corpo de Rodrigo estendido no mesmo lugar em que estava. Rodrigo não conseguia se mexer, apenas seus olhos semi-abertos puderam acompanhar o carro, as pernas e seu corpo sendo erguido. Com esforço, Alice conseguiu colocá-lo no carro. Seus olhos viram os de Clara e os dois se fecharam juntos.


* * *


Rodrigo abriu os olhos, estava num quarto bem decorado, de moletom, limpo e desnorteado. Colocou-se na beira da cama, passou a mão no rosto, voltou ao mundo, levantou, foi até a janela e viu um bonito jardim. Ouviu vozes vindo da sala, saiu do quarto e, seguindo o som pela longa casa, entrou na sala:
- Olha que está aí – falou uma mulher que ele desconhecia. Jovem, loira e bonita.
Clara estava com ela no sofá da sala. Bem vestida, arrumada e aparentemente saudável. Clara levantou feliz e deu-lhe um abraço:
- Como você se sente?
- Bem
- Que bom, essa é a Alice, amiga de quem eu lhe falei. Foi ela quem nos resgatou.
- Nossa, não lembro de nada.
- Tudo bem – interveio Alice – o que importa é que estamos todos bem. Vamos tomar café.
- Que dia é hoje? - perguntou Rodrigo. Era um bonito dia.
- Hoje é quarta e são oito da manhã...você dormiu a terça inteira e ficou só no soro, tá na hora de comer alguma coisa – disse Alice com seu jeito divertido.
Comeram uns biscoitos, uma frutas, café, leite, tudo estava muito bom.
- Rodrigo, Clara me contou um pouco dessa história de vocês...que loucura hein, mas pode ficar tranqüilo que tenho uma vaga pra você lá no restaurante e, por enquanto, você pode ficar por aqui enquanto não arruma um lugar para ficar – Alice era uma ótima pessoa.
- E você Clara? – perguntou Rodrigo um pouco triste.
- Bom, eu vou embora.
- Pra onde?
- Primeiro, pra rodoviária – disse rindo e passando a mão no rosto dele – você vai ficar bem, tenho certeza.
Rodrigo não respondeu, acreditava no fundo que pudessem ser felizes em uma casinha no interior do Mato Grosso. Queria a companhia de Clara, mas esqueceu de compartilhar com ela. A comida desceu arduamente, ele olhava Clara com um brilho diferente nos olhos e um sorriso que não vira há muito. Curtiu o momento daqueles dentes a mostra. Ela parecia tão dona de si...Rodrigo desejava ser daquele jeito...desejava aprender a ser daquele jeito...mas continuou calado.
- Bom gente, tenho que ir ao restaurante. Clara, não posso te levar na rodoviária, mas te deixo no ponto de ônibus, tudo bem? E Rodrigo, tem umas roupas lá em cima para você. Vista uma delas e vamos comigo, já vou te mostrar algumas coisas do seu novo emprego.
Eles entraram no carro, Rodrigo em silêncio, as moças conversando. Logo estavam no ponto de ônibus. Um aperto desolador comprimiu o peito de Rodrigo, o acaso que o fizera conhecer aquela pessoa, que o fizera apaixonar-se, que o trouxera àquele lugar e lhe dera uma vida diferente agora escorria pelas mãos com uma naturalidade incrível. Desceram do carro. Clara deu um longo abraço em Alice, trocaram palavras, Clara agradeceu por tudo. Depois virou em direção a Rodrigo, ele estava paralisado...queria falar, queria segurá-la. Um longo abraço nele:
- Se cuida viu! – ele esperava muito mais
- Tá! Pode deixar...Obrigado por tudo. Você é uma pessoa maravilhosa...vou te ver ainda..pode ter certeza...não vai ser fácil ficar sem você.
Clara sorriu, passou a mão no seu rosto.
- Fica tranqüilo...tchal.
Ela deu sinal para o ônibus, subiu e acenou se afastando...não teve beijo...não teve choro...apenas o fim daquilo tudo.



* * *



Clara não desceu na Rodoviária, parou no primeiro posto da rodovia. Caminhou a passos lentos e olhar distante. Entrou na lanchonete do posto, pediu uma água e começou a bebê-la. Ouviu então uma voz feminina atrás dela:
- Corajosa você hein moça...levou a cabo o prometido.
Clara continuou olhando pra frente, deu um gole da água e depois um leve riso.
- Corajosa? Eu? Que é isso...eu não tenho a coragem de comer bolacha Maria de calcinha e sutiã na varanda do apartamento – e se virou.
Estava lá... Judite, com aquele corpo esbelto...abriu um sorriso e sentou-se à mesa.
- Onde esta seu namorado? Perguntou Clara olhando para fora.
- Olha ele lá entrando – apontou Judite para a porta.
Clara virou novamente e viu a figura altiva do homem caminhando levemente com uma cerveja na mão. Ele chegou, sentou do lado de Judite, deu lhe um beijo:
- E ae Clarinha! Tudo bem? Que sufoco hein! Exclamou o homem.
- Tudo foi só um momento de dificuldade, mas você está muito bem para um homem morto Dudu – falou Clara rindo.
- Pois é, não foi fácil não, achei que não conseguiríamos.
- Você me ensinou bem a atirar na cartucheira...fiquei com medo de verdade de você não ter trocado as balas.
- Relaxa, deu tudo certo no fim das contas.
- E agora, o que vão fazer? – perguntou Clara – Vai dizer que vocês vão pro interior do Recife...quase ri com essa.
- Vamos pra Bahia, acho lá é um lugar bom, podemos nos ajeitar lá com esse dinheirinho da Judite. E você?
- Ainda não sei...essa história de Recife me fez pensar...acho que vou pra lá, mas não agora.
Eles se levantaram, saíram e caminharam até os carros. Dudu foi até a caminhonete vermelha, abriu a porta, tirou a bolsa já conhecida de dentro e entregou-a a Clara. Ela deu uma olhada, viu as notas de cem reluzentes:
- Obrigado pela carona ontem viu – disse Clara colocando a bolsa de volta no carro.
- Por nada! O mérito foi todo seu disso tudo. Sabe, eu ficava me perguntando que magia que essa menina tem que consegue cativar as pessoas. O rapaz ficou louco por você.
- É, apesar de eu ter me tornado mais astuta, continuo como antes! Disse Clara, sem jeito – Então, até Dudu, boa sorte pra ti...e vê se da próxima vez não fala para os fugitivos me ligarem – deu uma boa risada.
- Só se for por uma causa nobre.
Eles se despediram. Dudu entrou com Judite no Fiat 66. Clara entrou na caminhonete, colocou um óculos escuro, ligou o som, o carro... buzinaram um para o outro e seguiram em direções contrárias, cortando suas próprias estradas.

FIM

Clique aqui e ouça a música "Capitu" para o fim. Depois comente por favor o que achou da história.
Muito obrigado aos meus seis leitores.
Abraços

7 de agosto de 2007

A magia Clara (VII) - Loucura

- Meu deus do céu, como que eu fui deixar o dinheiro no carro... puta que o pariu, como eu sô burro...e agora? – Rodrigo praguejava dando chutes no pneu do carro.
O medo, a dúvida e o desespero dominavam todo e qualquer ar que invadia os pulmões. Há pouco, estavam Clara e Rodrigo em um quarto de hotel num lugar inóspito, fugindo de quem os procurava e deles mesmos. Não tinha como alguém saber daquilo, a menos que estivessem sendo seguidos desde muito tempo. E por que então a pessoa – maldita que a seja – que roubara o dinheiro do porta-malas não os matara? A menos que esta queira vê-los vivos por algum motivo. Será que estava por ali ainda? Ou será que, por descuido, alguém vira uma mala suspeita na hora em que entraram no hotel? Nada poderia se concluir naquele momento, senão que estavam perdidos e quase sem nenhum dinheiro.
- A gente não sabe o que aconteceu Rodrigo, mas não adianta se desesperar...quem quer que seja levou esse dinheiro, não nos fez nada e ainda temos o carro... nada aconteceu com a gente...esse dinheiro foi o grande causador de toda essa história, às vezes acontecem coisas que são sinais para nos ajudar.
- É fácil falar isso, essa coisa era a única garantia que eu tinha de viver tranqüilo por um tempo. Tem alguém aqui fora que veio buscar isso e não vão deixar barato por eu ter roubado esse dinheiro.
- Tá, mas não tem ninguém aqui, vamos pra cidade e podemos vender o carro, você pega esse dinheiro e fica um tempo escondido..não vai mudar nada...isso era um fardo....vamos embora daqui.
Rodrigo com a cabeça baixa no capô do carro apenas ouvia.
- Vai, entra, eu dirijo, vamos embora.
Ele entrou sem dizer uma palavra sequer, extremamente transtornado. Clara, antes de ligar o carro, olhou piedosamente para o rapaz, deu-lhe um beijo carinhoso na bochecha colocando a mão em seu rosto:
- Calma...fica calmo – virou-se para o volante, ligou o carro e arrancou.
O percurso do hotel para a cidade foi denso como lama. Nada se falou, nada podia ser dito. Adentraram na frieza das casas simples que cercavam a rua e nos olhos dos transeuntes, curiosos e famintos, a sugar o calor dos corpos. Logo veio o asfalto, alguns prédios, comércio, jovens rindo, velhas andando. Clara parou o carro na frente de uma concessionária de veículos – já volto – falou seca e preocupada.
De dentro do carro, Rodrigo pôde ver e moça gesticulando com o homem que parecia ser o dono do estabelecimento. Ela apontava para o carro e falava com veemência. O homem de rosto fechado olhava de longe...cara descrente. Quem iria querer um carro daqueles...tolice acreditar que conseguiriam vendê-lo. Não demorou muito e Clara voltou desolada, colocou a cabeça na janela do carro:
- Sem possibilidades. Ele disse que vai ser difícil a gente vender isso aqui...bom, a gente não tem tempo pra esperar. Quanto sobrou do troco do hotel? A gente come alguma coisinha baratinha e abastece – ela deu a volta, sentou ao volante, olhou a situação do tanque, não era das boas, afinal andaram muito de São Paulo para Pontaporã.
Ela sabia que não daria para encher o tanque nem para chegar à cidade encontrar sua amiga...não queria a lucidez daquela conclusão...preferiu não compartilhar o drama com Rodrigo. Olhou para ele.
- Trinta e um reais e sessenta centavos – falou Rodrigo, com a mão curva e o dinheiro amassado – mais um maço de cigarro e um isqueiro.
Clara continuou olhando com o rosto perdido. Ligou o carro, saiu...cidade...casas..pessoas...estrada...mato...rodovia e parou no posto da saída.
- Coloca trinta reais para mim por favor – pegou o dinheiro da mão de Rodrigo que mantinha o olhar perdido na frente segurando o puta-que-o-pariu – vou pegar alguma coisa pra comer.
Pagou o frentista, foi à loja e voltou com um salgadinho. Entrou no carro, colocou-o no colo de Rodrigo e partiram.
Avançaram estrada adentro...haviam dormido até tarde, estavam descansados, mas a noite começara a mostrar sua cara. Clara não quis interromper os pensamentos de Rodrigo, mas colocou a fita da Rita Lee e seguiram viagem noite adentro. A estrada estava deserta. De repente, Rodrigo começou a dar risada, começou tímido, mas logo gargalhadas.
- Ai ai ai quer saber..foda-se esse dinheiro...você tem razão. Às vezes acontece um monte de coisa boa e a gente não curte porque está muito preocupado. Sabe, vai ser legal trabalhar num restaurante...uhhhuuuu!! gritou e aumentou o volume do rádio...“Um belo dia resolvi mudar e fazer tudo que eu queria fazer”. Rita Lee cantava...uhuuuu!! repetiu Clara.
Selaram um beijinho e balançaram a cabeça. Um momento de euforia...o ponteiro da gasolina estava piscando e estavam num caminho alternativo sem iluminação e sem casas. Não demorou muito e o carro deu sinais da seca, foi parando..apesar disso, estavam bem humorados:
- Acabou a gasolina – falou virando o pescoço.
- Hiii – a lucidez não visitava Rodrigo há muito – falta muito?
- Mais uns quarenta e cinco minutos no ritmo que a gente estava.
- Vamos a pé...depois a gente vê o que faz.
- Tá.
Parecia loucura, mas estavam em comunhão dela. Pegaram a lanterna, blusas – fazia frio e acabara de chover – fecharam a porta, deram as costas ao carro. A noite, apesar de sombria, trazia as nuvens nas poças d’água passando rapidamente na frente da lua, mas os passos cegos faziam chacoalhar toda imagem. Caminharam bem e descontraídos por uma hora e meia, fumando e conversando. Depois disso...silêncio...dores nas pernas...bolhas nos pés molhados...cansaço e começaram a cair grossos pingos do céu anunciando uma tempestade. Foi-se todo resquício de loucura...a chuva veio forte...só tinha mato, nada de árvores, nada de casas...nada. O frio cortava o rosto dos dois e fazia trincar o músculo de suas pernas...raios estouravam no horizonte e iluminavam o tamanho do percurso. Meia hora de tormenta e Rodrigo cai no chão desmaiado. Não tinha comido nada e recusara o salgadinho. Clara, com o cabelo ensopado no rosto, agachou do lado dele. Os músculos da coxa retraíram...ela deu um grito, sentou-se segurando a dor, voltou-se para o rosto dele:
- Rodrigo!!Rodrigo...acorda – tentava fazer sua voz ser audível diante da chuva e dava uns tapas em seu rosto.
Rodrigo voltou a si. Muito fraco...respiração ofegante...ele não ia conseguir. Faltavam ainda uns trinta minutos para chegarem ao começo da cidade. Clara deitou-se do lado dele, virou o seu rosto para que conseguisse respirar, passou um lado da jaqueta em volta de seu tórax e repousou. Logo que a chuva parou, Clara foi incomodada por uma luz. Não, não era o dia amanhecendo. Um farol alto de um veículo vinha na estrada em direção aos dois. Clara, com esforço acenou.
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Continua...........último capítulo semana que vem.

O lado de dentro...sublime

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