Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

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5 de agosto de 2015

Índio de short não é índio, e brasileiro nu o que é?



Moacir veio de uma família pobre do interior de São Paulo. Mãe descendente de portugueses e italianos do oeste paulista, pai “cafuzo” como aprendeu na escola. “Mistura” de negro com índio migrados de Pernambuco. Moacir na capital paulista trabalhou de muitas coisas e por fim conseguiu um emprego em uma indústria seguindo a liturgia diária sem falta galgou ascensão e hoje desfruta de boas condições financeiras. Moacir consome notícias regularmente e adora novela, quando chega em casa com sua esposa, a quem muito ama. Quando a discussão sobre Belo Monte eclodiu, Moacir assistiu a uma propaganda com uma constelação de artistas da Globo, questionando o projeto, os impactos ambientais e o que fariam com os índios. “Para mim, índio quer morar na cidade” dizia Murilo Benício com uma interrogação entre as sobrancelhas e o vídeo prosseguia com outros atores revezando-se no jogral “Tomar antibiótico. Educação? Conforto? Índio! Ainda tem índio? Será que os índios são ouvidos?”. E Moacir compadeceu-se, pensou, coitados dos índios que lhe tomarão os meios de sobrevivência. O justo seria arrumar uma reserva para eles manterem seu modo de vida. E ele pega seu notebook, digita o termo Xingu no google, lê reportagens, vai no google imagens e vê várias, mais tem uma que se destaca[1]. Ele se incomoda um pouco. Mas índio de havaianas? Aquele ali da esquerda é muito branco, é meio gordinho. O outro tem luzes no cabelo. O outro tem cabelo crespo. Pochete? Sapatênis? Todos de short, de bermuda jeans. A reportagem do G1 fala em fechamento de pista e uma imagem vem à cabeça de Moacir: manifestações por moradia deixaram ele no trânsito duas horas na sexta-feira. E ele pensa que não são índios de verdade. Talvez oportunistas que querem chamar a atenção. Os índios mesmo já devem ter saído de lá para continuar sua subsistência sem depender do homem branco. E no dia seguinte a vida continua para Moacir. Uma mãe com uma criança pede ajuda no farol do Pari e ele reconhece tratar-se de uma boliviana. Está compadecido. Tira uma nota da carteira, abre um sorriso e sem compreender o que ela fala, mas sim o gesto, entrega-lhe a nota e pensa “que bebê bonitinho... nem parece boliviano”.
Contam as anedotas do cinema que Wood Allen em uma de suas coletivas diante de uma pergunta sobre a receptividade do filme entre os judeus, devolveu a pergunta ao jornalista: Judeus? Mas de qual judeu você está falando? Meu primo Isaac ou meu irmão Jacob? Por aqui, em terras “tupiniquins”, a manchete nacional escreveu recentemente: “Índios brasileiros têm genes próximos aos dos aborígenes australianos[2]”. Parafraseando Allen e certamente interessado no conteúdo, um “índio” poderia perguntar ao distinto editor: mas de qual índio você está falando? Eu? Os mais de 30 mil Yanomami entre Roraima e Venezuela? Ou de alguns entre eles? Dos quase nove mil Kayapós do planalto central? Dos seis mil entre os 16 povos do Xingu na Amazônia central? (Os afetados por Belo Monte, mas que também têm o direito de usar eletricidade). Dos mais de 50 mil Ticunas entre Amazônia, Colômbia e Peru? Os tupiniquim da costa capixaba nas cidades? Os Guarani do Rio Grande do Sul? Os Araweté? Ou algum outro índio dos quase 1 milhão que vivem hoje em território nacional em 273 etnias diferentes e mais de 150 línguas e dialetos, que o programa de edição de texto sublinha de vermelho como palavra desconhecida?[3]
            Moacir, o jornalista, nosso estimado editor e provavelmente eu e você leitor somos frutos de uma formação que nos ensina desde cedo a pintar o rosto no dia do índio, o dia da abolição da escravatura e que nos inculca a imagem de que o Brasil é um país mestiço que uniu índios, negros, portugueses e imigrantes em uma nação acolhedora, sem preconceito de um povo alegre. Uma pesquisa espontânea[4] mostrará que 60% da população brasileira sente orgulho de ser brasileira pela natureza, o caráter do povo, o esporte, a música e o carnaval ou ao menos um destes motivos. Esta identidade nacional reflete um processo de construção feito deliberadamente para que houvesse entre nós uma unidade. A identidade nacional brasileira foi forjada por governantes, jornalistas e livros didáticos no último século e é até hoje constantemente reforçada, alterada e perpetuada. Mas existe de fato uma identidade nacional brasileira? Para responder à questão temos que recorrer à história e à antropologia além de voltar no tempo. 50 mil anos atrás, período da polêmica envolvendo a manchete do jornal supracitada. A teoria amplamente aceita para a presença humana no continente americano é de uma passagem pelo estreito de Bering e posteriormente a ocupação do continente. Semelhanças genéticas e o fundo cultural comum entre os povos originários do continente americano do Alasca à terra do fogo com os originários siberianos confirmam esta teoria. A recente polêmica se dá em função de terem sido verificados traços genéticos entre os Aimorés (somente esta etnia e não todos os índios) e as etnias de índios da polinésia, como aborígenes australianos. Não se trata de uma nova forma de chegada às américas, mas que de alguma forma houve contato entre algumas culturas humanas antes da ocupação da américa. O fato é que estando aqui espalharam-se por todo continente fundando línguas, costumes e cosmologias próprias embora com algo semelhante.
Enquanto isso, do outro lado do atlântico, conhecemos bem a história pois não sem razão nos ensinam mais do que a nossa própria. Mesopotâmia, Pérsia, Nórdicos, África, Egito, Alexandria, Grécia, “filosofia”, Império Romano, invasões bárbaras, cristianismo, Constantino, a Idade Média e o renascimento. Este pronto da história precede o encontro de europeus e americanos (embora neste período da história não houvessem europeus e americanos, mas moradores de continentes distintos). Abundam do lado lá, nesta época, narrativas sobre a existência de um paraíso na Terra. Tal qual o da bíblia em Isaias. Terra que aliás era o centro do universo, criada por um deus onipresente em sete dias. As chamadas “ilhas afortunadas” tinham o apelido fenício de “Braaz” e entre os monges irlandeses de “Hy Brazil”[5]. Em 1325 já se incluí na cartografia da época ao sul dos açores a “insula de Brazil”. Este mito será um dos muitos fundantes do Brazil, de modo que ao chegar a esquadra portuguesa os relatos remetem a esta noção de paraíso. “Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é gracioso que, querendo-se aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem. [...] Andavam [os índios] todos tão dispostos, tão bem-feitos e galantes com suas tinturas, que pareciam bem. [...]Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença.”[6]. Mas decorrerá pouco tempo para que este imaginário do Paraíso na Terra mude e a igreja comece a adotar suas costumeiras práticas violentas por aqui.
O antropólogo carioca Eduardo Viveiros de castro, foi a fundo no estudo das diferenças de pensamento entre estes dois polos do encontro de modo a descortinar a profundidade ontológica da diferença chegando ao que hoje se conhece como “perspectivismo ameríndio”. O que Viveiros mostrará é como que a “racionalidade” – para usar o termo ocidental – é radicalmente distinta entre ameríndios e o mundo ocidental. Quando aqui aportaram, nos primeiros anos ainda figuravam as impressões do paraíso, mas o contato diário entre as culturas asseverou seus conhecimentos recíprocos. Não raro, os tupinambá matavam portugueses para verificar empiricamente se aquele corpo “vivo” apodrecia. Já os portugueses, diante do contato, submetiam os índios a estudos empíricos para verificar se aqueles corpos possuíam alma. Notadamente tratam-se de experimentos com pressupostos distintos. A lógica ocidental, que advém de Aristóteles toma o princípio da identidade[7] e o objetivismo pressupondo que o existente no mundo são objetos, corpos, animais e somente o ser humano é nutrido de  espírito, anima ou alma. De modo que ao encontrar um corpo parecido com o humano deve-se verificar se aquele corpo é ou não humano, ou se possuí alma. Já para os ameríndios, Castro mostrará[8] que para a grande maioria dos indígenas brasileiros existe uma estrutura de costumes e cosmologia inversa.
No início o Deus Jaguar (onça) criou o pai (Sol) e a mãe (Lua). O sol gerou os primeiros índios que mataram todos os animais. Mas o Sol e a Lua oferecem a festa dos mortos e outros animais surgem nesta festa. Assim, tudo o que existe é um substrato de gente, dos primeiros índios. E tudo se transforma de modo que a relação dos seres é dada pela alimentação. Os predadores (onça) e os espíritos veem os humanos como animais de presa. As presas veem os humanos como espíritos[9] ou predadores. Os animais e espíritos se veem como humanos. Quando está em suas próprias casas, ou tocas, ou aldeias, uma onça vê o sangue como mandioca, um urubu vê o verme como peixe, etc. Tudo, inclusive as plantas e os espíritos, é gente em perspectiva e se vê como gente. Na relação com os outros eles vestem roupas como a raposa veste-se de raposa, mas quando estão somente com outras raposas todos tiram a roupa e são gente. O mundo é transformacional. Os índios também se transformam, passam por uma reclusão pubertária, marcando o nascimento do adulto. Enquanto a antropologia ocidental vê a humanidade erguida em bases animais e somos, no fundo animais, o referencial indígena conclui que os seres do cosmo continuam humanos mesmo que de forma não evidente. O que há são sujeitos fragmentados em corpos de diferentes tipos[10] Assim, diante do contato com um ser vivente – e portanto gente – os índios precisavam saber se aquele ser era espírito ou não. Ou se apodrecia. A máxima cartesiana, “penso, logo existo”, diz o antropólogo, para um índio brasileiro, não se aplica. Aqui, provavelmente seria revista como, “se existe, logo pensa”. O perspectivismo ameríndio opõe essencialmente a noção de sujeito e objeto ocidental e indígena. A ideia central é a concepção de muitos povos do continente de que o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não-humanas que o apreendem sob pontos de vista distintos. Essa distinção é essencial para compreender o contato entre as culturas e suas consequências.
No contato inicial dos portugueses com os índios, passada a euforia do paraíso eles logo perceberam que não com tanta facilidade os índios se converteriam ao catolicismo. Eles rapidamente se adaptavam ao cristianismo, mas sem razão aparente esqueciam ou regressavam às suas práticas. Assim, foram tidos como sujeitos de pouca memória e de alma inconstante. “São inconstantes e de memória fraca” diziam os portugueses. O padre Antônio Vieira clarificou esta dificuldade no exemplo da moita e do mármore[11], dizendo que fazer uma escultura no mármore era trabalhoso, mas uma vez feito, ela permanecia intacta. Fazer uma escultura em um arbusto é muito fácil, mas constantemente lhe saem galhos e a escultura nunca fica pronta. Referia-se, o padre, à catequização dos índios. Catequisar o europeu era um processo que permanecia, mas o mesmo não ocorria com os índios. O que havia era uma profunda diferença na perspectiva sociofisiológica dos índios da costa. Os tupinambá têm na dinâmica relacional com os seres o seu socius, ou seja, o exterior é constantemente interiorizado. Não há totalidade. “O outro não é um espelho, mas um destino”. Assim, compreende-se por que os outros (no caso os europeus invasores) são uma solução antes de serem um problema. Tal constatação também se lança sobre o falso argumento de que os índios aceitavam qualquer coisa por um punhado de anzóis, atribuindo uma certa superioridade tecnológica dos artefatos portugueses nas trocas. Para os índios, os brancos eram como “idiotas” de quem se podia obter objetos maravilhosos e úteis em troca de adesão verbal ou gestos. Ademais, os artefatos europeus eram, para os índios, signos dos poderes da exterioridade.
Quando chegaram os portugueses imediatamente contaminaram milhares de índios com microrganismos para os quais eles não tinham mecanismos de defesa. Assim, diante a morte inexplicável, a ideia de imortalidade parece uma boa sugestão para uma aproximação à catequese. Contudo, relata Eduardo, sistematicamente, os índios em diferentes tribos perceberam que a pia batismal, poderoso fator patogênico, era a causa da morte. Com isso, afastavam-se das ideias e se aproximavam dos objetos. O trabalho catequético tornou-se cada vez mais difícil de modo que foi necessária então a intervenção violenta a qual os padres já estavam acostumados. Eles foram além, fizeram uma guerra aos índios e empreenderam uns contra os outros, assim domesticaram a guerra dos índios[12], cujo caráter social fora perdido. Assim, os índios perderam a guerra duas vezes. Na sua dizimação física e na diluição da tradição e memória social. Nos séculos seguintes e até os dias de hoje a expansão territorial deu conta de dizimar os milhões de índios do território nacional aos números que temos hoje.
Mas isso estava acontecendo aqui com os peões do tabuleiro descobrindo a verdade. Do outro lado do Atlântico, as narrativas eram outras. Não se narram os infortúnios da missão assim sobressaem-se o que sempre vigorou nas navegações, ou seja, a utilidade à terra nova, exploração e dizimação dos nativos. O que isso nos deixa de lição? Primeiro: o fato inexorável dos portugueses colocarem-se no centro do mundo e julgar os hábitos e costumes do outro a luz do seu. Assim os índios foram reduzidos a selvagens sem cultura, sem lei, sem rei. Inferiorizados em relação ao europeu e aos poucos esquecidos. Mantiveram-se no discurso propositalmente do relato de caminha, as qualidades naturais do Brasil. Um slogan[13]. Produziu-se uma visão mítica do país-jardim do verde de nossa bandeira mas justificou-se com as teorias possíveis a inferioridade dos índios para referendar a colonização. Os nativos são juridicamente inferiores e devem ser mandados pelos superiores naturais, o conquistador-colonizador. Por outro lado, graças à teoria do direito de Natureza subjetivo, diz-se que alguém é sujeito de direito quando está na plena posse da vontade, da razão e dos bens necessários à vida - seu corpo, suas propriedades móveis e imóveis e sua liberdade. Vontade e razão são conceitos metafísicos dos ocidentais. Em outras palavras, a vida, o corpo e a liberdade são concebidos como propriedades naturais que pertencem ao sujeito de direito racional e voluntário. Ora, dizem os teóricos, considerando-se o estado selvagem (ou de brutos que não exercem a razão), os índios não podem ser tidos como sujeitos de direito e, como tais, são escravos naturais.[14] Vieram então a escravização dos índios e negros e a exploração dos recursos aqui disponíveis. Mas era preciso dar a este lugar uma história. Padre Vieira, no século XVII narra a História do Futuro ou do quinto império do mundo e as esperanças de Portugal, na qual relaciona as profecias bíblicas, sobretudo de Isaias, com a nova terra. Dá conta de que nossa história já é escrita cabendo completa-la no tempo[15]. O mito ganhava formas de tempos antigos e recônditos. Mas ao discurso incluir o governo. O estado absolutista figurava na Europa sob a tutela do direito divino dos reis. Este direito fazia valer em todas as colônias o mando do monarca e precisava ser fortemente fomentado em todas as terras. As capitanias dividiram o Brasil conforme as nobrezas da metrópole.
Os séculos XVIII e XIX marcaram profundas transformações no mundo e o surgimento pela primeira vez das ideias de pátria e nação. Antes deste processo político a palavra “povo” se referia a uma organização de pessoas que compartilhavam as mesmas normas. Nação (natio = nascido) significava uma descendência e se referia a estrangeiros, por isso ainda hoje se fala em “nações indígenas” mesmo os índios estando no Brasil.[16] E pátria (pater = pai) emergiu com as revoluções do século XVIII que buscavam romper com os poderes absolutos dos reis. Um fato deve ficar marcado não como história, mas da nossa vivência cotidiana. Sempre que existe um inimigo poderoso em comum, há de certa maneira uma união de partes diferentes do outro lado. Aquilo que Hobsbawm chamou de “A era das revoluções” tinham um inimigo comum e precisavam de união. A pátria significa um território cujo senhor é o povo unia as pessoas contra os regimes. Foi em torno de 1830 que o termo nação começou a vigorar no vocabulário político. O Brasil alcançava sua “independência” da colônia embora mantivesse a monarquia. E a ideia de uma nação começava a se constituir em todo o mundo. O princípio da nacionalidade vinculava a nação em torno do território. O Brasil era um “Império”. Na virada do século XIV para o XX, com a proclamação da república era natura a discussão sobre os direitos e falava-se em uma “ideia nacional” pois além de território deve se considerar a língua, a religião e a raça. A nação emerge como uma forma de unificar as classes sociais. Já até os anos 1960 a nação foi definida por um conjunto de lealdades políticas. Desde 1830 até os dias de hoje é que a ideia de uma identidade nacional foi construída ideologicamente. Na ideologia de um “caráter nacional” a nação é formada pela mistura de três raças – índios, negros e brancos – e a sociedade mestiça desconhece o preconceito racial.[17] O índio trouxe ao brasileiro o espírito e a valentia, os negros o labor e a força, e os brancos a inteligência. O romantismo de José de Alencar colocou a índia Iracema em uma paixão por um homem branco mostrando a mistura dos povos. Getúlio Vargas e Carmem Miranda mostravam o samba e o carnaval como símbolos dessa miscigenação. Era instrumentos para a veiculação de uma unidade. Os movimentos integralistas e a marcha contra o comunismo que corroborou com o golpe militar de 1964 era tomada por um sentimento patriótico e ufanista. A ideia de nação é ainda hoje retomada e muito bem-vinda aos movimentos conservadores pois lhes é comum e prático arvorar-se de uma fala união para almejar seus interesses.
Assim, depois de um longo processo, devemos nos perguntar? Existe uma identidade nacional? A resposta notadamente é não! Esta construção sempre serviu aos interesses dos governantes e ainda hoje serve bastando olhar as propagandas eleitorais para se ter uma ideia daquilo que atinge a população. Com isso não devemos negar que não compartilhamos hábitos e idiomas. Sim, mas são muitos não existe hierarquia entre eles a não ser as estabelecidas politicamente de forma preconceituosa. Então o que faz com que nos reconheçamos como brasileiros? Bem, na sociedade de hoje em plena globalização a noção de identidade nacional pode não ser tão importante para nós, a não ser os governantes como sempre fora.[18] Mas eu arriscaria com uma ideia de Eduardo Viveiros de Castro que disse em uma palestra. Eu reconheço que sou brasileiro quando me dou conta que moro em um país com as maiores desigualdades sociais do mundo, que dizima sistematicamente seus povos originários, que tem a educação tratada da forma que é, que a mídia detém o poder de manipulação que detém. É uma posição reativa, verdade, mas necessária alternativa ao povo acolhedor.
Mas se não existe uma identidade nacional, existirá talvez a ideia de identidade? Uma vez mais a resposta é não! O perspectivismo ameríndio ou mesmo o relativismo filosófico mostram que não existe só uma forma de pensar no mundo. O ocidente tem a sua, baseada na razão, na ciência, no estado e no mercado. Sabemos a que estes pilares nos conduziram. Tudo na lógica ocidental se define como fronteiras que separam um conceito de outro, um objeto do outro, demarcando seus limites pela epistemologia e ciência. Uma vez mais, Viveiros de Castro nos traz uma reflexão nova acerca da noção de identidade (tal qual os sociólogos pretendem tratar) para os índios. Se a identidade for concebida, não como uma fronteira a ser definida, e sim como um nexo de relações e transações no qual o sujeito está ativamente comprometido?”[19] Neste caso, as narrativas são mais complexas e menos lineares do que a simples pergunta “o que é identidade nacional?”. Tal quadro é fundante em muitas culturas ameríndias, para as quais sempre se associou a mutação, a metamorfose e a troca de peles à um processo natural da vida, da longevidade e eventualmente da imortalidade. Neste sentido o caráter de mudança é uma condição necessária para estes povos e ao deparar-se com o europeu, diferente destes últimos, cuja identidade pretendia se sobrepor a outrem, os índios viam na troca de identidade o valor fundamental. No lugar da identidade substancial, a afinidade relacional era o valor a ser firmado.
Assim, se não existe identidade e nem identidade nacional por que tanto trabalho em discuti-las? Pois é estudando que podemos entender melhor nossa história, nossos hábitos e até nossos preconceitos. Moacir ao compadecer-se dos índios e ter-lhes negado a identidade escondeu nos recônditos da alma um preconceito velado fruto deste engendramento histórico e formativo que passa pelas famílias, professoras, livros, romances, filmes, propaganda e discursos dos mais diversos níveis. Todos em certa medida somos Moacir, um nome do tronco tupi que significa dolorido, magoado. Os índios dizimados e invisíveis nas ruas certamente são Moacir. Mas o fato de sermos o que somos, educados de tal forma e frutos de um processo perverso de discurso nos exime de algum preconceito? Jamais! Nenhum preconceito é justificado. Por isso estudamos identidade. Se um índio de shorts não é índio, brasileiro pelado o que é? Um Moacir? Ele tirou passaporte italiano no ano passado, ele se sente ou é italiano e não brasileiro? Não sabemos, e nem há como julgar. Para as finalidades públicas em 2004 (mais de quinhentos anos após a ocupação) o estatuto do índio diz que índio é aquele que se reconhece como índio e é reconhecido como tal. Não importa seu DNA, sua roupa, se assiste TV, fala ao celular ou tinge o cabelo? Nem a um nascido brasileiro que tira passaporte europeu pela descendência. Estamos no mesmo barco, uns na popa, uns na proa, pouquíssimos no comando e a maioria no porão.


Referências
CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a El-Rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil. In: Aguiar, Flávio .rg.). Com palmos medida. Terra, trabalho e coriflito na literatura brasileira. Editora Fundação Perseu Abramo/Boitempo, São Paulo, 1999
CHAUÍ, Marilena. Brasil. Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000
HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro, DP&A Editora, 1997.
VIVEIROS de CASTRO, E. B. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naify. 2008



[3] Para consultar sobre as etnias indígenas no território brasileiro, seus grupos linguísticos, costumes, cosmologia, astronomia, localização e informações http://pib.socioambiental.org/pt
[4] Chauí, Marilena (2001, pg. 4)
[5] Ibidem pg. 59
[6] CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a El-Rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil.
[7] O princípio da identidade é reconhecido como “aquilo que é, é”;
[8] VIVEIROD de CASTRO, 2008. Sobre o perspectivismo e seu desenvolvimento consultar o capítulo 1, “Esboço da cosmologia Yawalapíti” [pg 25 - 87]; o Capítulo 3, “O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem” [pg 181 - 264]; e o capítulo 7, “perspectivismo e multinaturalismo na América indígena” [pg 345 - 400].
[9]Espíritos também são os mortos, predadores da vida
[10] Ibdem pg. 382
[11] Sermão do Espírito Santo (apud Castro, pg 183)
[12] A guerra indígena tem um valor de manter a memória e a relação entre as etnias. É honroso morrer na guerra. Ela é um mecanismo de interação e variabilidade genética também.
[13] No Brasil não tem terremoto, furacão, tsunami, invernos rigorosos nem calores escaldantes. Há frutos em abundância, animais, grandes florestas e um litoral extenso.
[14] Chauí, Marilena (2001 pg 65)
[15] Chauí, Marilena (2001 pg 81)
[16] Ibidem pg 12
[17] Ibidem pg 21
[18] HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro, DP&A Editora, 1997.
[19] Viveiros de Castro, Eduardo (2008 pg, 206)

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