Moacir veio de uma família pobre do
interior de São Paulo. Mãe descendente de portugueses e italianos do oeste
paulista, pai “cafuzo” como aprendeu na escola. “Mistura” de negro com índio
migrados de Pernambuco. Moacir na capital paulista trabalhou de muitas coisas e
por fim conseguiu um emprego em uma indústria seguindo a liturgia diária sem
falta galgou ascensão e hoje desfruta de boas condições financeiras. Moacir
consome notícias regularmente e adora novela, quando chega em casa com sua
esposa, a quem muito ama. Quando a discussão sobre Belo Monte eclodiu, Moacir
assistiu a uma propaganda com uma constelação de artistas da Globo,
questionando o projeto, os impactos ambientais e o que fariam com os índios. “Para mim, índio quer morar na cidade”
dizia Murilo Benício com uma interrogação entre as sobrancelhas e o vídeo
prosseguia com outros atores revezando-se no jogral “Tomar antibiótico. Educação? Conforto? Índio! Ainda tem índio? Será que
os índios são ouvidos?”. E Moacir compadeceu-se, pensou, coitados dos
índios que lhe tomarão os meios de sobrevivência. O justo seria arrumar uma
reserva para eles manterem seu modo de vida. E ele pega seu notebook, digita o
termo Xingu no google, lê reportagens, vai no google imagens e vê várias, mais
tem uma que se destaca[1].
Ele se incomoda um pouco. Mas índio de havaianas? Aquele ali da esquerda é
muito branco, é meio gordinho. O outro tem luzes no cabelo. O outro tem cabelo
crespo. Pochete? Sapatênis? Todos de short,
de bermuda jeans. A reportagem do G1
fala em fechamento de pista e uma imagem vem à cabeça de Moacir: manifestações
por moradia deixaram ele no trânsito duas horas na sexta-feira. E ele pensa que
não são índios de verdade. Talvez oportunistas que querem chamar a atenção. Os
índios mesmo já devem ter saído de lá para continuar sua subsistência sem
depender do homem branco. E no dia seguinte a vida continua para Moacir. Uma
mãe com uma criança pede ajuda no farol do Pari e ele reconhece tratar-se de
uma boliviana. Está compadecido. Tira uma nota da carteira, abre um sorriso e
sem compreender o que ela fala, mas sim o gesto, entrega-lhe a nota e pensa
“que bebê bonitinho... nem parece boliviano”.
Contam as anedotas do cinema que Wood
Allen em uma de suas coletivas diante de uma pergunta sobre a receptividade do
filme entre os judeus, devolveu a pergunta ao jornalista: Judeus? Mas de qual
judeu você está falando? Meu primo Isaac ou meu irmão Jacob? Por aqui, em
terras “tupiniquins”, a manchete nacional escreveu recentemente: “Índios brasileiros têm genes próximos aos
dos aborígenes australianos[2]”.
Parafraseando Allen e certamente interessado no conteúdo, um “índio” poderia
perguntar ao distinto editor: mas de qual índio você está falando? Eu? Os mais
de 30 mil Yanomami entre Roraima e Venezuela? Ou de alguns entre eles? Dos
quase nove mil Kayapós do planalto central? Dos seis mil entre os 16 povos do Xingu
na Amazônia central? (Os afetados por Belo Monte, mas que também têm o direito
de usar eletricidade). Dos mais de 50 mil Ticunas entre Amazônia, Colômbia e
Peru? Os tupiniquim da costa capixaba nas cidades? Os Guarani do Rio Grande do
Sul? Os Araweté? Ou algum outro índio dos quase 1 milhão que vivem hoje em
território nacional em 273 etnias diferentes e mais de 150 línguas e dialetos,
que o programa de edição de texto sublinha de vermelho como palavra
desconhecida?[3]
Moacir, o
jornalista, nosso estimado editor e provavelmente eu e você leitor somos frutos
de uma formação que nos ensina desde cedo a pintar o rosto no dia do índio, o
dia da abolição da escravatura e que nos inculca a imagem de que o Brasil é um
país mestiço que uniu índios, negros, portugueses e imigrantes em uma nação
acolhedora, sem preconceito de um povo alegre. Uma pesquisa espontânea[4]
mostrará que 60% da população brasileira sente orgulho de ser brasileira pela
natureza, o caráter do povo, o esporte, a música e o carnaval ou ao menos um
destes motivos. Esta identidade nacional reflete um processo de construção
feito deliberadamente para que houvesse entre nós uma unidade. A identidade
nacional brasileira foi forjada por governantes, jornalistas e livros didáticos
no último século e é até hoje constantemente reforçada, alterada e perpetuada.
Mas existe de fato uma identidade nacional brasileira? Para responder à questão
temos que recorrer à história e à antropologia além de voltar no tempo. 50 mil
anos atrás, período da polêmica envolvendo a manchete do jornal supracitada. A
teoria amplamente aceita para a presença humana no continente americano é de
uma passagem pelo estreito de Bering e posteriormente a ocupação do continente.
Semelhanças genéticas e o fundo cultural comum entre os povos originários do
continente americano do Alasca à terra do fogo com os originários siberianos
confirmam esta teoria. A recente polêmica se dá em função de terem sido
verificados traços genéticos entre os Aimorés (somente esta etnia e não todos
os índios) e as etnias de índios da polinésia, como aborígenes australianos.
Não se trata de uma nova forma de chegada às américas, mas que de alguma forma
houve contato entre algumas culturas humanas antes da ocupação da américa. O
fato é que estando aqui espalharam-se por todo continente fundando línguas,
costumes e cosmologias próprias embora com algo semelhante.
Enquanto isso, do outro lado do
atlântico, conhecemos bem a história pois não sem razão nos ensinam mais do que
a nossa própria. Mesopotâmia, Pérsia, Nórdicos, África, Egito, Alexandria,
Grécia, “filosofia”, Império Romano, invasões bárbaras, cristianismo,
Constantino, a Idade Média e o renascimento. Este pronto da história precede o
encontro de europeus e americanos (embora neste período da história não
houvessem europeus e americanos, mas moradores de continentes distintos).
Abundam do lado lá, nesta época, narrativas sobre a existência de um paraíso na
Terra. Tal qual o da bíblia em Isaias. Terra que aliás era o centro do
universo, criada por um deus onipresente em sete dias. As chamadas “ilhas
afortunadas” tinham o apelido fenício de “Braaz” e entre os monges irlandeses
de “Hy Brazil”[5]. Em 1325
já se incluí na cartografia da época ao sul dos açores a “insula de Brazil”. Este
mito será um dos muitos fundantes do Brazil, de modo que ao chegar a esquadra
portuguesa os relatos remetem a esta noção de paraíso. “Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é gracioso que,
querendo-se aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem. [...] Andavam
[os índios] todos tão dispostos, tão bem-feitos e galantes com suas tinturas,
que pareciam bem. [...]Parece-me gente de tal inocência que, se homem os
entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não
têm, nem entendem em nenhuma crença.”[6].
Mas decorrerá pouco tempo para que este imaginário do Paraíso na Terra mude e a
igreja comece a adotar suas costumeiras práticas violentas por aqui.
O antropólogo carioca Eduardo Viveiros
de castro, foi a fundo no estudo das diferenças de pensamento entre estes dois
polos do encontro de modo a descortinar a profundidade ontológica da diferença
chegando ao que hoje se conhece como “perspectivismo ameríndio”. O que Viveiros
mostrará é como que a “racionalidade” – para usar o termo ocidental – é
radicalmente distinta entre ameríndios e o mundo ocidental. Quando aqui
aportaram, nos primeiros anos ainda figuravam as impressões do paraíso, mas o
contato diário entre as culturas asseverou seus conhecimentos recíprocos. Não
raro, os tupinambá matavam portugueses para verificar empiricamente se aquele
corpo “vivo” apodrecia. Já os portugueses, diante do contato, submetiam os
índios a estudos empíricos para verificar se aqueles corpos possuíam alma. Notadamente
tratam-se de experimentos com pressupostos distintos. A lógica ocidental, que
advém de Aristóteles toma o princípio da identidade[7] e
o objetivismo pressupondo que o existente no mundo são objetos, corpos, animais
e somente o ser humano é nutrido de espírito,
anima ou alma. De modo que ao encontrar um corpo parecido com o humano deve-se
verificar se aquele corpo é ou não humano, ou se possuí alma. Já para os
ameríndios, Castro mostrará[8]
que para a grande maioria dos indígenas brasileiros existe uma estrutura de
costumes e cosmologia inversa.
No início o Deus Jaguar (onça) criou o
pai (Sol) e a mãe (Lua). O sol gerou os primeiros índios que mataram todos os
animais. Mas o Sol e a Lua oferecem a festa dos mortos e outros animais surgem
nesta festa. Assim, tudo o que existe é um substrato de gente, dos primeiros
índios. E tudo se transforma de modo que a relação dos seres é dada pela
alimentação. Os predadores (onça) e os espíritos veem os humanos como animais
de presa. As presas veem os humanos como espíritos[9] ou
predadores. Os animais e espíritos se veem como humanos. Quando está em suas
próprias casas, ou tocas, ou aldeias, uma onça vê o sangue como mandioca, um
urubu vê o verme como peixe, etc. Tudo, inclusive as plantas e os espíritos, é
gente em perspectiva e se vê como gente. Na relação com os outros eles vestem
roupas como a raposa veste-se de raposa, mas quando estão somente com outras
raposas todos tiram a roupa e são gente. O mundo é transformacional. Os índios
também se transformam, passam por uma reclusão pubertária, marcando o nascimento
do adulto. Enquanto a antropologia ocidental vê a humanidade erguida em bases
animais e somos, no fundo animais, o referencial indígena conclui que os seres
do cosmo continuam humanos mesmo que de forma não evidente. O que há são
sujeitos fragmentados em corpos de diferentes tipos[10]
Assim, diante do contato com um ser vivente – e portanto gente – os índios
precisavam saber se aquele ser era espírito ou não. Ou se apodrecia. A máxima
cartesiana, “penso, logo existo”, diz o antropólogo, para um índio brasileiro,
não se aplica. Aqui, provavelmente seria revista como, “se existe, logo pensa”.
O perspectivismo ameríndio opõe essencialmente a noção de sujeito e objeto
ocidental e indígena. A ideia central é a concepção de muitos povos do
continente de que o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou
pessoas, humanas e não-humanas que o apreendem sob pontos de vista distintos.
Essa distinção é essencial para compreender o contato entre as culturas e suas
consequências.
No contato inicial dos portugueses com
os índios, passada a euforia do paraíso eles logo perceberam que não com tanta
facilidade os índios se converteriam ao catolicismo. Eles rapidamente se
adaptavam ao cristianismo, mas sem razão aparente esqueciam ou regressavam às
suas práticas. Assim, foram tidos como sujeitos de pouca memória e de alma
inconstante. “São inconstantes e de
memória fraca” diziam os portugueses. O padre Antônio Vieira clarificou
esta dificuldade no exemplo da moita e do mármore[11],
dizendo que fazer uma escultura no mármore era trabalhoso, mas uma vez feito,
ela permanecia intacta. Fazer uma escultura em um arbusto é muito fácil, mas
constantemente lhe saem galhos e a escultura nunca fica pronta. Referia-se, o
padre, à catequização dos índios. Catequisar o europeu era um processo que
permanecia, mas o mesmo não ocorria com os índios. O que havia era uma profunda
diferença na perspectiva sociofisiológica dos índios da costa. Os tupinambá têm
na dinâmica relacional com os seres o seu socius,
ou seja, o exterior é constantemente interiorizado. Não há totalidade. “O outro não é um espelho, mas um destino”.
Assim, compreende-se por que os outros (no caso os europeus invasores) são uma
solução antes de serem um problema. Tal constatação também se lança sobre o
falso argumento de que os índios aceitavam qualquer coisa por um punhado de
anzóis, atribuindo uma certa superioridade tecnológica dos artefatos
portugueses nas trocas. Para os índios, os brancos eram como “idiotas” de quem
se podia obter objetos maravilhosos e úteis em troca de adesão verbal ou
gestos. Ademais, os artefatos europeus eram, para os índios, signos dos poderes
da exterioridade.
Quando chegaram os portugueses
imediatamente contaminaram milhares de índios com microrganismos para os quais
eles não tinham mecanismos de defesa. Assim, diante a morte inexplicável, a
ideia de imortalidade parece uma boa sugestão para uma aproximação à catequese.
Contudo, relata Eduardo, sistematicamente, os índios em diferentes tribos
perceberam que a pia batismal, poderoso fator patogênico, era a causa da morte.
Com isso, afastavam-se das ideias e se aproximavam dos objetos. O trabalho
catequético tornou-se cada vez mais difícil de modo que foi necessária então a
intervenção violenta a qual os padres já estavam acostumados. Eles foram além,
fizeram uma guerra aos índios e empreenderam uns contra os outros, assim
domesticaram a guerra dos índios[12],
cujo caráter social fora perdido. Assim, os índios perderam a guerra duas
vezes. Na sua dizimação física e na diluição da tradição e memória social. Nos
séculos seguintes e até os dias de hoje a expansão territorial deu conta de
dizimar os milhões de índios do território nacional aos números que temos hoje.
Mas isso estava acontecendo aqui com os
peões do tabuleiro descobrindo a verdade. Do outro lado do Atlântico, as
narrativas eram outras. Não se narram os infortúnios da missão assim
sobressaem-se o que sempre vigorou nas navegações, ou seja, a utilidade à terra
nova, exploração e dizimação dos nativos. O que isso nos deixa de lição?
Primeiro: o fato inexorável dos portugueses colocarem-se no centro do mundo e
julgar os hábitos e costumes do outro a luz do seu. Assim os índios foram
reduzidos a selvagens sem cultura, sem lei, sem rei. Inferiorizados em relação
ao europeu e aos poucos esquecidos. Mantiveram-se no discurso propositalmente
do relato de caminha, as qualidades naturais do Brasil. Um slogan[13].
Produziu-se uma visão mítica do país-jardim do verde de nossa bandeira mas
justificou-se com as teorias possíveis a inferioridade dos índios para
referendar a colonização. Os nativos são juridicamente inferiores e devem ser
mandados pelos superiores naturais, o conquistador-colonizador. Por outro lado,
graças à teoria do direito de Natureza subjetivo, diz-se que alguém é sujeito
de direito quando está na plena posse da vontade, da razão e dos bens
necessários à vida - seu corpo, suas propriedades móveis e imóveis e sua
liberdade. Vontade e razão são conceitos metafísicos dos ocidentais. Em outras
palavras, a vida, o corpo e a liberdade são concebidos como propriedades naturais
que pertencem ao sujeito de direito racional e voluntário. Ora, dizem os
teóricos, considerando-se o estado selvagem (ou de brutos que não exercem a
razão), os índios não podem ser tidos como sujeitos de direito e, como tais,
são escravos naturais.[14]
Vieram então a escravização dos índios e negros e a exploração dos recursos
aqui disponíveis. Mas era preciso dar a este lugar uma história. Padre Vieira,
no século XVII narra a História do Futuro
ou do quinto império do mundo e as esperanças de Portugal, na qual
relaciona as profecias bíblicas, sobretudo de Isaias, com a nova terra. Dá
conta de que nossa história já é escrita cabendo completa-la no tempo[15].
O mito ganhava formas de tempos antigos e recônditos. Mas ao discurso incluir o
governo. O estado absolutista figurava na Europa sob a tutela do direito divino
dos reis. Este direito fazia valer em todas as colônias o mando do monarca e
precisava ser fortemente fomentado em todas as terras. As capitanias dividiram
o Brasil conforme as nobrezas da metrópole.
Os séculos XVIII e XIX marcaram
profundas transformações no mundo e o surgimento pela primeira vez das ideias
de pátria e nação. Antes deste processo político a palavra “povo” se referia a
uma organização de pessoas que compartilhavam as mesmas normas. Nação (natio =
nascido) significava uma descendência e se referia a estrangeiros, por isso
ainda hoje se fala em “nações indígenas” mesmo os índios estando no Brasil.[16] E
pátria (pater = pai) emergiu com as revoluções do século XVIII que buscavam
romper com os poderes absolutos dos reis. Um fato deve ficar marcado não como
história, mas da nossa vivência cotidiana. Sempre que existe um inimigo
poderoso em comum, há de certa maneira uma união de partes diferentes do outro
lado. Aquilo que Hobsbawm chamou de “A era das revoluções” tinham um inimigo
comum e precisavam de união. A pátria significa um território cujo senhor é o
povo unia as pessoas contra os regimes. Foi em torno de 1830 que o termo nação
começou a vigorar no vocabulário político. O Brasil alcançava sua
“independência” da colônia embora mantivesse a monarquia. E a ideia de uma
nação começava a se constituir em todo o mundo. O princípio da nacionalidade
vinculava a nação em torno do território. O Brasil era um “Império”. Na virada
do século XIV para o XX, com a proclamação da república era natura a discussão
sobre os direitos e falava-se em uma “ideia nacional” pois além de território deve
se considerar a língua, a religião e a raça. A nação emerge como uma forma de
unificar as classes sociais. Já até os anos 1960 a nação foi definida por um
conjunto de lealdades políticas. Desde 1830 até os dias de hoje é que a ideia
de uma identidade nacional foi construída ideologicamente. Na ideologia de um
“caráter nacional” a nação é formada pela mistura de três raças – índios,
negros e brancos – e a sociedade mestiça desconhece o preconceito racial.[17] O
índio trouxe ao brasileiro o espírito e a valentia, os negros o labor e a
força, e os brancos a inteligência. O romantismo de José de Alencar colocou a
índia Iracema em uma paixão por um homem branco mostrando a mistura dos povos.
Getúlio Vargas e Carmem Miranda mostravam o samba e o carnaval como símbolos
dessa miscigenação. Era instrumentos para a veiculação de uma unidade. Os
movimentos integralistas e a marcha contra o comunismo que corroborou com o
golpe militar de 1964 era tomada por um sentimento patriótico e ufanista. A
ideia de nação é ainda hoje retomada e muito bem-vinda aos movimentos
conservadores pois lhes é comum e prático arvorar-se de uma fala união para
almejar seus interesses.
Assim, depois de um longo processo,
devemos nos perguntar? Existe uma identidade nacional? A resposta notadamente é
não! Esta construção sempre serviu aos interesses dos governantes e ainda hoje
serve bastando olhar as propagandas eleitorais para se ter uma ideia daquilo
que atinge a população. Com isso não devemos negar que não compartilhamos
hábitos e idiomas. Sim, mas são muitos não existe hierarquia entre eles a não
ser as estabelecidas politicamente de forma preconceituosa. Então o que faz com
que nos reconheçamos como brasileiros? Bem, na sociedade de hoje em plena
globalização a noção de identidade nacional pode não ser tão importante para nós,
a não ser os governantes como sempre fora.[18]
Mas eu arriscaria com uma ideia de Eduardo Viveiros de Castro que disse em uma
palestra. Eu reconheço que sou brasileiro quando me dou conta que moro em um
país com as maiores desigualdades sociais do mundo, que dizima sistematicamente
seus povos originários, que tem a educação tratada da forma que é, que a mídia
detém o poder de manipulação que detém. É uma posição reativa, verdade, mas
necessária alternativa ao povo acolhedor.
Mas se não existe uma identidade
nacional, existirá talvez a ideia de identidade? Uma vez mais a resposta é não!
O perspectivismo ameríndio ou mesmo o relativismo filosófico mostram que não
existe só uma forma de pensar no mundo. O ocidente tem a sua, baseada na razão,
na ciência, no estado e no mercado. Sabemos a que estes pilares nos conduziram.
Tudo na lógica ocidental se define como fronteiras que separam um conceito de
outro, um objeto do outro, demarcando seus limites pela epistemologia e
ciência. Uma vez mais, Viveiros de Castro nos traz uma reflexão nova acerca da
noção de identidade (tal qual os sociólogos pretendem tratar) para os índios. Se a identidade for concebida, não como uma
fronteira a ser definida, e sim como um nexo de relações e transações no qual o
sujeito está ativamente comprometido?”[19]
Neste caso, as narrativas são mais complexas e menos lineares do que a simples
pergunta “o que é identidade nacional?”. Tal quadro é fundante em muitas
culturas ameríndias, para as quais sempre se associou a mutação, a metamorfose
e a troca de peles à um processo natural da vida, da longevidade e
eventualmente da imortalidade. Neste sentido o caráter de mudança é uma
condição necessária para estes povos e ao deparar-se com o europeu, diferente
destes últimos, cuja identidade pretendia se sobrepor a outrem, os índios viam
na troca de identidade o valor fundamental. No
lugar da identidade substancial, a afinidade relacional era o valor a ser
firmado.
Assim, se não existe identidade e nem
identidade nacional por que tanto trabalho em discuti-las? Pois é estudando que
podemos entender melhor nossa história, nossos hábitos e até nossos
preconceitos. Moacir ao compadecer-se dos índios e ter-lhes negado a identidade
escondeu nos recônditos da alma um preconceito velado fruto deste engendramento
histórico e formativo que passa pelas famílias, professoras, livros, romances,
filmes, propaganda e discursos dos mais diversos níveis. Todos em certa medida
somos Moacir, um nome do tronco tupi que significa dolorido, magoado. Os índios
dizimados e invisíveis nas ruas certamente são Moacir. Mas o fato de sermos o
que somos, educados de tal forma e frutos de um processo perverso de discurso
nos exime de algum preconceito? Jamais! Nenhum preconceito é justificado. Por
isso estudamos identidade. Se um índio de shorts não é índio, brasileiro pelado
o que é? Um Moacir? Ele tirou passaporte italiano no ano passado, ele se sente
ou é italiano e não brasileiro? Não sabemos, e nem há como julgar. Para as
finalidades públicas em 2004 (mais de quinhentos anos após a ocupação) o
estatuto do índio diz que índio é aquele que se reconhece como índio e é
reconhecido como tal. Não importa seu DNA, sua roupa, se assiste TV, fala ao
celular ou tinge o cabelo? Nem a um nascido brasileiro que tira passaporte
europeu pela descendência. Estamos no mesmo barco, uns na popa, uns na proa,
pouquíssimos no comando e a maioria no porão.
Referências
CAMINHA, Pero Vaz de. Carta
a El-Rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil. In: Aguiar, Flávio .rg.).
Com palmos medida. Terra, trabalho e coriflito na literatura brasileira.
Editora Fundação Perseu Abramo/Boitempo, São Paulo, 1999
CHAUÍ, Marilena. Brasil.
Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2000
HALL, Stuart. A
identidade cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro, DP&A Editora,
1997.
VIVEIROS de CASTRO, E. B. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naify. 2008
[3] Para consultar sobre as etnias
indígenas no território brasileiro, seus grupos linguísticos, costumes,
cosmologia, astronomia, localização e informações http://pib.socioambiental.org/pt
[4] Chauí, Marilena (2001, pg. 4)
[5] Ibidem pg. 59
[6] CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a El-Rei D.
Manuel sobre o achamento do Brasil.
[7] O princípio da identidade é reconhecido
como “aquilo que é, é”;
[8] VIVEIROD de CASTRO, 2008. Sobre o
perspectivismo e seu desenvolvimento consultar o capítulo 1, “Esboço da cosmologia Yawalapíti” [pg 25
- 87]; o Capítulo 3, “O mármore e a
murta: sobre a inconstância da alma selvagem” [pg 181 - 264]; e o capítulo
7, “perspectivismo e multinaturalismo na
América indígena” [pg 345 - 400].
[9]Espíritos também são os mortos,
predadores da vida
[10] Ibdem pg. 382
[11] Sermão do Espírito
Santo (apud Castro, pg 183)
[12] A guerra indígena tem um valor de
manter a memória e a relação entre as etnias. É honroso morrer na guerra. Ela é
um mecanismo de interação e variabilidade genética também.
[13] No Brasil não tem terremoto, furacão,
tsunami, invernos rigorosos nem calores escaldantes. Há frutos em abundância,
animais, grandes florestas e um litoral extenso.
[14] Chauí, Marilena (2001 pg 65)
[15] Chauí, Marilena (2001 pg 81)
[16] Ibidem pg 12
[17] Ibidem pg 21
[18] HALL, Stuart. A identidade cultural na
Pós-Modernidade. Rio de Janeiro, DP&A Editora, 1997.
[19] Viveiros de Castro, Eduardo (2008 pg,
206)
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