Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

24 de janeiro de 2008

Jilin, China, 03 de janeiro de 2003

Meu irmão,

Choro de dor por ler suas palavras. Enquanto sorvo o sofrimento de nosso pai, você goza desse mundo vil como se sua liberdade se encontrasse realmente na morte do nosso pai. Você fala de uma forma que desconheço, mal engoliu a poeira de minha ida e desatou a pilhérias e mudanças. Não as condeno, acho sim que de fato esqueceu de onde veio e qual é sua honra. Antes de sermos comerciantes, somos herdeiros de nosso sangue.
Você está se deixando levar pelo que esse ocidente podre te oferece, prazeres vazios, acha que assim honrará nossa família como último homem dela?
É uma ofensa questionar os ensinamentos de nosso pai e, se você não os aprendeu, questione seus princípios.... És ou não um Li? Não é o que me parece, mas vejo que na primeira oportunidade que tiver, inventarás um apelido de cinema americano para que as putas loiras daquele lugar possam te chamar e você vai acreditar piamente que é realmente uma pessoa importante. O que fez então na virada do ano? Comemorou como um cidadão americano os fogos estourando no céu? Se fez isso, admirou a melhor competência deles....pois de fogos eles entendem. Fizeram da nossa descoberta o caminho para a morte....você se lembrou disso? Não.

Não me estenderei mais, sofro por você.

Lao Peng Li

14 de janeiro de 2008

É um prazer conhecê-lo!

- Ok! Como você chegou até mim?
- Alguém para o qual você já havia trabalhado me indicou.
- Quem? Carlos?
O homem hesitou, seu nervosismo fazia aparecer a veia no pescoço apertado pela gravata. No apartamento sujo e pouco iluminado perto da Avenida 9 de julho, era possível àquele homem ver um mural repleto de fotos com pessoas sorrindo, outras sérias, outras ainda lamuriosas, fotos de todos os tipos.
- Você deve estar se perguntando se aquelas fotos são de pessoas que eu já matei – sentenciou o gordo por trás da luz branca voltada para a mesa que os separava. Em cima da mesa, um cinzeiro cheio de bitucas e uma lata de Budweiser.
O nervosismo do homem fez-lhe correr grossos fios de suor pelas têmporas. A pele vermelha salpicava de gotículas. Ele tirou um lenço do paletó e limpou seu rosto ainda com o olhar fixo no mural, ao mesmo tempo que sentia o olhar penetrante da figura atrás da mesa. Não era possível ver seu rosto, mas ele tinha certeza de que não conseguiria encarar aquele homem.
- Não quero te deixar nervoso – falou o gordo, dando um trago profundo em seu cigarro – mas todas aquelas fotos são sim de pessoas que eu já matei, como você supõe, e acredito que você não deva estar com medo, senão não estaria aqui. Podemos falar delas se quiser, mas quero saber o que te trouxe aqui, ou melhor, quem?
O homem limpou mais uma vez o rosto, se ajeitou na poltrona de molas tortas e, do bolso da camisa, tirou uma foto e a entregou ao gordo.
A mão do gordo apareceu na luz branca e apanhou a foto com força. Ele a olhou um instante e deu duas batidas com o dedo do meio.
- Quem é ele? O que ele faz? E por que quer matá-lo?
- Não quero dar muitas informações além das necessárias.
O gordo se encurvou de sua poltrona e mostrou sua face na luz. Olhos negros, um maior do que o outro, barba rala e narinas largas.
- Em primeiro lugar – começou, cerrando os olhos – esse é o meu negócio e você não tem nada que querer enquanto EU não souber o que tenho que saber e, em segundo lugar, você não tem a menor capacidade de saber quais são as informações necessárias. Não quero ser indelicado – acalmou a voz –, vem aqui um pouquinho.
Foram até a janela.
- Tá vendo esse monte de janela? Esse monte de apartamento?
- Sim.
- Quantos mortos você acha que tem nesse prédio da frente?
- Acho que nenhum – falou tímido, constrangido com a pergunta.
- Eu digo a você, existem muitos mortos nesse prédio, dezenas – falou sério, olhando para frente – São pessoas mortas, esquecidas por alguém ou por algo. Você conhece alguém chamado Ezequiel? – virou o rosto.
O homem sentia-se perfurado pelo olhar do gordo e confuso com aquela conversa.
- Nn não.
- Você acredita que exista alguém com esse nome?
- Sim, claro!
- Você sabe me dizer se esta pessoa está viva ou morta?
- Viva, não é isso?
- Como você sabe se não a conhece? Você supõe a existência de uma pessoa com esse nome, mas se você não a conhece, ela não existe para você. Pode existir para outras pessoas, mas para você ela está morta...tanto faz, entendeu? Como você quer que eu mate uma pessoa que está morta para mim? Você precisa dar vida a esse cara – apontou para a foto – para que eu possa matá-lo. Não é difícil. Tá vendo aquela loira ali – apontou para o mural? Mandaram matá-la por indeferir um processo contra um assassino. Este aqui foi uma mãe que me mandou matar porque ele levava droga ao filho dela na clínica e este aqui porque matou o filho de um fazendeiro numa invasão de terra. Eu não me importo com os motivos, todos têm explicações quando desejam a morte de uma pessoa. Eu executo porque sou pago para isso...e bem pago. Agora me conte por que você quer matar esse homem.
Sentaram-se novamente. O homem recobrou seus sentidos.
- Ele me traiu.
- Sim, e o que mais?
- Ele não tinha nada quando o conheci, dei estudos, formação, depois a gerência de uma unidade importante do grupo. Quando ele assumiu, me deu um golpe que vim a descobrir há pouco tempo. Desvio de recurso para uma conta fora.
- Sei, não precisa de mais detalhes. Por que você não o denuncia? Acredita mesmo que matar seja a melhor solução? Você acha que assim arranjaria a senha da conta para pegar de volta o dinheiro? Ou é orgulho?
- Ele me traiu!
- O orgulho é um sentimento selvagem. Não sei se percebeu, mas gosto de pensar nestes casos extremos que levam as pessoas a procurarem uma pessoa como eu e posso dizer que o orgulho é o mais primitivo, vil dos sentimentos que movem a gente. É uma mistura de indignação própria e culpa que sempre é jogada em cima de alguma coisa.
Silêncio e desconforto atingiram o estômago do homem. O gordo continuou.
- Eu sempre pergunto nesses casos de traição: porque você mesmo não o mata?
- Tenho um nome a zelar.
- Está sugerindo que eu não tenho um nome a zelar? Ok, são trinta mil e você escolhe como. Enforcado, queimado, tiro, afogamento, veneno...Fique a vontade.
- Tanto faz, só o quero morto.
Mais uma vez, um desconfortável silêncio na sala. O gordo foi até o sofá do homem.
- Você sabe que a culpa é sua, não sabe?
- Como assim?
- Você o criou, quis subverter a ordem das coisas. Adestrou um leão e acreditou tanto no seu poder que o colocou para dormir em seu quarto. Você mostrou a este homem o quão injusto e filho da puta é você e o mundo.
- Você não está entendendo, eu ajudei aquele homem, não sou culpado.
- Esperava que dissesse isso mesmo... é uma questão de ponto de vista. Esqueça isso – o gordo caminhou com o homem até a porta – traga o dinheiro amanhã e as informações de rotina para o serviço.
- Ok, trarei no mesmo horário.
O gordo abriu a porta e estendeu a mão. Mais estendido ainda foi seu olhar para os olhos do homem.
- Gostaria de pedir também que trouxesse uma foto sua – leve sorriso. Foi um prazer conhecê-lo.
A frase veio com peso e a estranha sensação de que ele teria que voltar lá no outro dia. O homem desceu as escadas atordoado com aquela situação enquanto o gordo perdia seu olhar na arrumação do mural.

O lado de dentro...sublime

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