Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

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24 de novembro de 2009

A triste história de Marcos Whraiter

Como se fosse verdade, Marcos Whraiter era um homem de coração bom, negro, de beiços salientes, cabeça ovalada e grande, ligeiramente gordo, sorriso largo e gargalhadas rarariantes. Bom de papo, boa gente, honrado como aprendera a ser, divertido e gozador como quis ser. Como se fosse verdade, tinha uma bela casa num bairro nobre de uma cidade pobre. Pobre de almas. Uma cidade de gente feia. Uma cidade estranha, sem propósito, habitada por pessoas sem propósito. Uma cidade pequena, no coração de algumas quase-montanhas, o suficiente para que deus não a visse, embora cintilasse no topo do morro uma cruz de neon azul, que se podia ver de outros morros nas noites de paz. Uma cidade onde, diziam os romeiros, o diabo fazia seu laboratório. Uma cidade na qual as leis pouco se faziam valer.
Como se fosse verdade, Marcos estava ali sob o marco do acaso. Sua mãe, dona de casa, seu pai, um policial aposentado que, talvez como todo policial aposentado, escolhera num classificado do jornal uma cidade pequena para descansar e criar sua prole. Talvez, se o jornal não tivesse publicado; talvez, se lesse outro jornal; talvez, se seu pai não fosse policial, nem estivesse aposentado; talvez, se sua mãe não fosse dona de casa, estariam em outro lugar. Talvez, mas estavam ali. Como se fosse verdade, Marcos estudou em uma boa escola, como essas de cidades pequenas, como essas de gente que vinha do sítio, como essas de professores que conheciam cada aluno como seus vizinhos. Marcos não tinha tino para estudos, aproveitou muito bem a escola para fazer amizades, arrumar brigas, pular o muro para comprar cigarro. Talvez, se Marcos não tivesse uma família tão autoritária, teria tino para estudo. Talvez sua facilidade para amizades não o fizesse conhecer Caio e Olavo. Cúmplices e parceiros. Talvez outras amizades o fizessem caminhar para outro lado, talvez não pulasse o muro para iniciar sua vida alcoólica. Talvez.
Como se fosse verdade, certo dia na aula de sociologia, Marcos escrevera de coração aberto aos seus colegas tudo aquilo que sentia, disse que amava, que adorava, elogiou, demonstrou inveja em alguns momentos e certamente surpreendeu a todos com seu testemunho de bondade. Há quem diga que houve ali um esguicho de liberdade por entre as grades de seu coração. Uma rara ocasião. Talvez por estar no 3° ano, prestes a ganhar o mundo daquela cidade pequena, Marcos se permitira.
Se estivesse em outra cidade que não naquela encravada em montes de terra e pedra, ele poderia ver horizonte em sua vida e planejar um futuro. Talvez não entrasse nos escuros dos becos da periferia com Caio e Olavo. Talvez não pisasse nas plantações de maconha, nem se inebriasse com a cachaça. Talvez não se apaixonasse.
Nada como uma mulher para colocar nos trilhos a vida de um homem sem horizontes. Mariana era bonita, um troféu, como diziam, algo para deixar destemido qualquer homem, ainda mais um homem de posses apegadas como Marcos. Talvez, se Marcos não a tivesse conhecido, não teria se sentido mais homem do que era, talvez não brigasse com Olavo, talvez não ficasse paranóico, muito menos roubasse a arma do pai e tentasse matar Olavo no meio da praça central. Talvez, se não estivesse naquela cidade, nem seu pai tivesse uma arma, ele não teria estampado a capa do jornal naquele ano. Ruim de tiro, como nunca fora sua habilidade, não matou ninguém, nem Olavo, mas feriu transeuntes. Talvez não perdesse o amigo nem a mulher nem a liberdade.
Como se fosse verdade, Marcos não teve apoio de sua família. Seu pai, acostumado a prender bandidos, se sentiu roubado duas vezes. Pela arma e pelo filho. Como se fosse verdade, ele caíra nas mãos dos débeis, entregara sua consciência ao carcereiro. Sua razão não era tão forte nem pesada, por isso voou para longe. Talvez, se tivesse um ombro para se apoiar, não a deixaria escapar, assim não precisaria visitar o lar das pessoas sem lucidez. Como se fosse verdade, o fio de bondade que restara em Marcos virou pedra. E com uma pedra e com a lucidez de poucos, deferiu golpes na cabeça do vigia do hospício, roubando a vida dele em troca da alforria.
Como se fosse verdade, Marcos perambulou maltrapilho, sem casa, sem amigos e sem mulher. Mas seu universo se restringia àquela cidade encravada num monte de terra e ali revisitou as grades algumas vezes. Talvez, se seu universo não fosse aquela cidade, Marcos estaria em outra vida. Talvez, se Marcos não tivesse conhecido Caio e Olavo, não estaria completamente drogado e bêbado naquela noite de setembro. Talvez, se não tivesse conhecido Caio, este não pararia diante daquele quase-ser naquela noite. E se Caio não tivesse uma namorada que conhecera naquela cidade no meio do nada, nem se não estivesse voltando da casa dela naquele horário, talvez não encontraria Marcos. Talvez, se fizesse um outro caminho ou morasse em outro lugar, não encontraria seu amigo jogado na calçada. Talvez, se Marcos tivesse de volta um lar, não estaria bêbado nem com aquela fome de dois dias. Talvez, se não tivesse fome, não pediria para Caio lhe comprar comida às seis da manhã. Talvez, se Caio não tivesse achado uma nota de dois reais segundos antes numa rua que não costuma passar, não compraria um pão com mortadela nem alimentaria aquele quase-ser que mal conseguia falar. Talvez, se não fosse verdade, Marcos não teria morrido engasgado com o pão, jogado na calçada de uma cidade onde talvez não morasse, com a fome dos sem família e na companhia da sua frágil mente incapaz de mastigar um pão. Talvez... talvez ... e ainda há quem creia que não seja verdade.

10 de novembro de 2009

João da Britadeira

João,

Tinha problemas de tremedeira.

Mas sempre teve os pés no chão


Nunca faltou com seu dever

Nunca fez brincadeira

Nunca demonstrou emoção.


Chegava no trabalho adiantado

Encarava nos olhos a massa de cimento

E ligava sua britadeira.


Era caco pulando, cortando a mão

Uniforme cinza, olho atento

Dentes a mostra... rosto esticado.


De chão ele conhecia;

Alisava, batia, cheirava

Ouvia o eco do batimento.


Chegou em casa certo dia

Sentou no sofá como de costume

Mas seus pés estavam balançando.


Sua mulher não tinha tino de escrava

Espalhou seu perfume em casa

Fugiu pro outro lado do morro


E agora, o chão que João construiu

Alto e imponente na favela

Só servia pra pedir socorro.


Pra quem tanto conhecia

Nem sabia onde punha os pés

E onde amarrava seu gado


“Mas essa coisa de saudade

Parece até água benta

Amolece até cajado”


E é à saudade que se afivela

Que João mandou um recado.


“Chão de polenta ainda não existe

E não vou ficar mais triste

Prefiro o chão azulado”

O lado de dentro...sublime

O lado de dentro...sublime