Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

12 de outubro de 2009

A-mulher-que-não-conseguia-se-entender




"Monge
- Mestre, minha mente não tem paz. Por favor, pacifique minha mente.
Mestre Zen - Traga sua mente perante a mim e eu a pacificarei.
Monge - Mas quando busco minha própria mente não posso encontrá-la.
Mestre Zen - Pronto, pacifiquei sua mente."
(koan zen budista)





Ela não conseguia. Toda vez que que os ventos de suas lembranças lhe sopravam ouvia as fábulas saltarem da boca da professora e lhe invadirem com furor. Via suas próprias mãos tecendo palavras corridas no seu diário. Sentia o frio no estomago ao toque despretensioso daquele jovenzinho da sexta série, cujo nome ela não lembrava, mas o sorriso jamais esquecera. Via os lânguidos beijos dos atores no cinema. Sentia na ponta do lábio seu primeiro beijo atrás da escola. Sentia também como se fosse ontem seus dedos descobrindo o colo e a sensação nova que aquilo lhe causava. Lembrou-se de José e de como ele descobriu seu corpo enquanto este crescia, e de como fora boba ao brigar com ele por tantas besteiras. Lembrava-se com clareza de como José representou uma mudança em sua vida e aquela raiva por ele fez com ela temesse sofrer novamente. Lembrava de seus pequenos casos e como ela acabara tentando mais entender a si do que se levar pela sua libido. Via também suas discussões calorosas com Marcela e Gabriela, amigas até hoje, mas que nunca a entenderam de verdade. Lembrava-se do exato dia em que conheceu casualmente a psicóloga da escola e que teve uma certeza irrefutável de que era isso que queria ser. E de como a obstinação do futuro fez os anos correrem velozmente para ela. Como Antônio também curvou os trilhos de sua vida por mais de três anos até um dia ir embora. E toda vez que lembrava-se de Antônio tinha uma vontade enorme de revê-lo, de poder tomar uns drinks e falar da condição humana como outrora ou falar sobre o que um sentia pelo outro fumando um cigarro após o sexo naquela casa suja.
Ainda assim ela não conseguia. Não conseguia entender como foi engravidar de um homem tão vazio, ainda que em suas longas reflexões chegou a pensar que era premeditado. Que ela precisava de uma companhia ou algo a que desse sentido para continuar a vida, indiferente de quem fosse o progenitor. E soube mais tarde que pensou mais em si que em seu filho, mas ele estava adulto e criando seus próprios trilhos. Às vezes ela se sentia absurdamente nociva quando tecia conclusões às suas pacientes. Sua vertente para os estudos lhe conferiu um leque enorme de teorias psicanalíticas e inúmeras técnicas para entender a mente humana. Seu hábito de leitura a tornou em uma excelente oradora, de modo que até errada conseguia parecer correta. Sua garra para criar o filho sozinha a tornou mais rija, forte a ponto de conseguir entrar nos olhos de quem conversava sem esforço e fazer com que este falasse sobre sua vida. Ela não tinha dúvida que estas qualidades a trouxeram para sua condição de profissional respeitadíssima e muito valorizada. Mas mesmo assim ela não conseguia ainda entender sua vida, sua cabeça e o sentido que deveria haver para aquilo tudo. Passava horas lendo literaturas e encarnava aqueles personagens com ânsia. Concluiu depois de muito tempo que não sabia o que ela era e o que queria, sua vida era a dos outros, ela era o outro.
Como um daqueles dias normais de sua tediosa rotina estava ela dirigindo seu carro a caminho do consultório quando as nuvens tomaram corpo no céu. Negras, densas e fúnebres. Uma tarde de verão em São Paulo virou noite. A Marginal de repente estava parada. Carros a toda volta com pessoas temerosas sem conseguir sair do lugar, presas por uma condição do meio. E ela se sentiu encarcerada como nunca antes. A chuva começou a cair com fortes ventos e uma força inexplicável. Não era possível ver o carro a frente e, sozinha dentro do seu automóvel, o sentimento de prisão foi sufocando-a. O suor corria-lhe o busso. Ela estava presa sem possibilidades de sair, desesperada, coração palpitando quando um vulto passou ao seu lado em meio a tempestade. Um homem a passos lentos, descalço, sujo e com uma pipa de plástico na mão. Ela forçou a vista para entender aquela situação, viu que de fato era uma imagem real, havia mesmo um homem na tempestade. Como se uma pedra acertasse sua cabeça com violenta força percebeu em todos os anos de sua vida não havia se dado conta. A prisão estava dentro dela. Uma fortaleza edificada a duras penas pelas suas tênues lembranças. Um choque de clareza invadiu seu peito. Viu o pino da porta alí, inofensivo, tão pequeno. Ergueu-o e sentiu vívido o pingo gelado da chuva e o cheiro putrefeito do rio Pinheiros. Ela sorriu como criança e correu como criança, como a fábula que ouvira, como o filme ou como aquilo que ela nunca fora. Ao encontro do mendigo, empinou pipa no meio da marginal frente aos olhos dos desesperados. Embora o mendigo não falasse uma palavra sequer ela sentia o sorriso contido dele. Ambos saíram correndo em meios aos carros e a pipa pairava soberana por cima de todos, dançando e dando voltas como um espírito brincalhão.
Ela foi embora a pé, chegou em casa, tomou um banho e decidiu escrever. Passou dias, sobre o mesmo efeito, escrevendo com obsessão sobre as amarras da vida, sobre as mensagens ocultas que devemos ler, sobre a condição humana, sobre a tristeza e a felicidade, sobre quem somos, sobre a edificação da nossa personalidade. Refutou teóricos, abandonou técnicas e criou seu próprio código de conduta. Talvez tivesse escrito mais se soubesse que naquele mesmo dia, muitas pessoas morreram na marginal impossibilitadas sair dos seus carros, ou não queriam, ou foram impedidos de avançar pela enorme quantidade de carros abandonados na pista.
Seu consultório não tinha mais a ornamentação de antes, suas pacientes da casse média paulistana se encantavam cada dia mais com esta nova forma de ver o mundo. Sem perceber a infeliz mulher transbordava de prazer impelindo as pessoas pelos caminhos que ela nunca teve coragem de seguir. Muitas dessas também abdicaram da vida confortável e se lançaram de cabeça no mundo. Seus dias de escrita renderam livros, best-sellers, durante anos os mais vendidos em todo país e em questão de tempo sua doutrina era traduzida e ganhava adeptos no mundo inteiro
Sem perceber, esta mulher, ou aquele mendigo transformaram o modo de pensar de uma geração de pessoas. Fazendo-as experimentar a vida em todas suas intensidades e vertentes. Seguidores e continuadores desta doutrina perpetuam até hoje estes princípios. Após sua morte, repentina por pneumonia, seu nome foi reconhecido. Ganhou prêmios e sua imensa fortuna foi doada a fundações destinadas a prosperar a vida livre.
Muitos historiadores, sociólogos e filósofos denotam àquela mulher uma nova fase histórica de humanismo contemporâneo refletido no modo de consumo, na economia e nas políticas públicas da sociedade. Outros, recentemente tem destacado a história de vida daquela mulher pontuando-a como infeliz e manipuladora. Estes consideram-na como uma escritora de auto-ajuda para mentes frágeis e passíveis de manipulação. Dentre seus oponentes, o famoso sociólogo José Antônio ficou mundialmente conhecido por expor a todos as verdadeiras faces daquela mulher. Por convencer com uma vivacidade a construção ideológica como filha da história de vida dos seres humanos. José Antônio usava sua própria vida para justificar a teoria. Tivera uma infância dura e indiferente e sozinho teve de galgar o mundo, conhecendo a duras penas e sendo um resultado disso. O que ninguém sabia e tampouco descobriram era que José Antônio era filho daquela mulher. A qual ele preferia chamar de a-mulher-que-não-conseguia-se-entender.

O lado de dentro...sublime

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