Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

24 de maio de 2007

Conto - O 44, o 45 e a Ponte.

O 44, o 45 e a Ponte

Pedro deu um beijo selado na namorada, olhou com compaixão para aqueles olhos azuis, aquele rosto rubro, pro pijama colorido, ajeitou sua jaqueta com as duas mãos no zíper, deu um tranco e se foi. Desceu as escadas e saiu pra rua. Estava um ventinho chato no centro de São Paulo. Ele arquejou os ombros, acendeu um Minister, e com os olhos semi-cerrados andou dando profundos tragos e soltando a fumaça demoradamente. Dobrou a Avenida Passalaqua, chegou a Rui Barbosa, foi direto para seu flat. Silencioso abriu a porta do apartamento 44 e antes de entrar deu uma arquejada de cabeça para cumprimentar a dona Lúcia que todas as manhãs deixava seu apartamento habitável – bom dia! Virou e entrou. Olhou pra baixo e notou algumas correspondências. Estranhou, pois sempre entregavam as cartas na portaria, mas como ele não havia dormido em casa aquela noite, simplesmente abaixou e apanhou as cartas, descalçou o sapato, sentou na cama e começou a abri-las. Uma fatura do cartão de crédito, um cartão postal da sua filha que estava nas ilhas Fiji estudando arqueologia. Leu com o rosto sério e ao terminar deu uma entortada nos lábios, suspirou profundamente, balançou a foto e colocou na gaveta do criado mudo. Algumas promoções inconvenientes e no fim da pilha estranhou uma carta parda, sem pensar abriu e começou a ler:
“Querido,estou ansiosa por te encontrar finalmente, tenho passado muitas noites esperando por este momento, cada vez que leio suas cartas, afundo minha cabeça no travesseiro e compreendo o quão ínfimos somos todos perto daquilo que nos move. Você despertou em mim aquilo que eu havia desistido depois que o Lucas morreu, suas cartas são o conforto que permite meu sono. Mas amanhã deixarei de projetar, e poderei diante de você me encontrar. Chega de palavras soltas, chega de sonho, quero sua magia me preenchendo para ter certeza que existe saída. Grande beijo e até.
Ass. Patrícia
Obs. Troquei de celular, meu novo número é 7144-4534, me liga”

Pedro franziu a sobrancelha tentando supor que raios se tratava aquela carta. Ele a pegou, virou e viu que estava endereçada ao apartamento 45, com o nome de Luis Augusto. Ficou extremamente desconcertado, acabara de ler algo importante que não era para ele. Quis imediatamente entrega-la ao dono, mas não foi. Começou a pensar no rapaz, por volta de vinte e cinco anos, extremamente quieto, não falava com ninguém, vivia cabisbaixo pelos corredores, quando se encontravam, uma figura misteriosa. “Como essa cidade é cheia de histórias anônimas” concluiu com felicidade. Deitou e ficou relendo a carta com atenção, pensou também em Patrícia que encontrou naquele cara uma saída de sabe-se lá que problema. Ele desceu o elevador, foi até o orelhão e ligou. A situação era extremamente instigante, um homem de quarenta e um anos, sozinho, com uma vida pacata, viu ali a oportunidade de uma aventura sem limites.
- Alô, falou uma voz doce do outro lado.
- Oi, recebi sua carta, respondeu seco;
- Oi Lu, que bom que você ligou, eu adiantei meu vôo, vou chegar hoje, vamos nos ver mais cedo, ai, eu to tão nervosa.
- Que horas você vai chegar? Perguntou.
- As seis, em congonhas.
- Ok, te pego lá, estarei de calça dins, uma camisa listrada de vermelho e cinza e um sobretudo bege.
- Eu vou de jaqueta roxa.
- Tá certo, até breve então Patrícia. Beijo.
Desligou o telefone e se sentiu um menino arteiro, deu um riso e subiu pelas escadas até o apartamento, ainda deu uma olhada para o 45, pensou qualquer coisa e entrou. Passou o dia inteiro ensaiando um romantismo que a muito não tinha. Perto das quatro da tarde tomou um banho, pôs a roupa escolhida e pegou o ônibus para o aeroporto. Chegando lá, sem saber da onde vinha o vôo apenas esperou Patrícia na saída, não demorou muito e surgiu uma mulher, ruiva, aparentemente uns 34 anos, algumas sardas no rosto, linda, muito linda. Olhos vividos, sorriso fácil, deslizava mesmo com a mala, ela o viu de longe e a passos firmes foi em sua direção como quem vê o pai que já morreu a muito tempo vivo, ali. Ele sorriu, abriu os braços e recebeu Patrícia, que estava com os olhos lagrimejados, olhou fixamente para ela, passou o dedão na maçã do rosto, colheu o choro e deu um longo e sublime beijo nela. Eles foram para um bar e sem notar se entenderam, parecia que as coisas que ela dizia faziam sentido, ele não precisou interpretar nada, foi alguém que um dia deixara de ser. Eles conversavam por olhares, se beijavam com gosto. Foram até o apartamento dele e no elevador encontraram com Luis, abatido, olhar distante. Ela com a cabeça em seu peito e ele com a cabeça no acaso que os juntaram. Olhou como um pai para o rapaz ao seu lado, sem nenhuma preocupação com aquela alma moribunda. Eles desceram juntos, um entrou no 45 e fechou a porta, o casal entrou no 44 e ela imediatamente perguntou se o apartamento não era o 45, ele sem notar o erro que acabara de cometer, inventou que havia mudado recentemente para o da frente devido a umas goteiras. Contornou a situação sem problemas. Eles se amaram por toda noite, se entregaram, se encontraram um no outro, se consumaram.
Foi questão de tempo para que ele se apaixonasse perdidamente por Patrícia, uma paixão devastadora, fortalecida todos os dias quando acordava e via aquele rosto angelical dormindo ao seu lado. A namorada de Pedro estava desesperada atrás dele. Foi algumas vezes ao apartamento, mas ele se esquivava. Queria esquecer o Pedro que fora, queria esquecer sua história, queria se esquecer. Ela sumiu, ele também.
Um dia, ao chegar do trabalho Pedro encontrou Luis no sofá da recepção do flat lendo um livro. Ficou olhando aquela figura, sentiu-se intimamente intrigado, pensou em como seria a vida daquele ser. Um misto de angústia e culpa inundaram seu peito. Ele se aproximou, passou a mão na barba rala, sentou do lado do moço:
- Opa, que você está lendo? Perguntou meio displiscente.
O rapaz olhou por cima dos óculos, acanhado, respondeu com uma voz tímida:
- O estrangeiro, Albert Camus.
- Nossa!, eu adoro Camus, esse livro é bom pra caramba. Faz pensar muito sobre a vida, o jeito que ele fala sobre o sofrimento é destruidor. Faz um tempão que eu li, mas num esqueço não. Puta livro!
Luis abriu um sorriso verdadeiro, apaixonado. Eles começaram a conversar sobre o livro e rapidamente mudaram de assunto, falaram de um monte de coisas, estenderam a curva do rio, dobraram fugacidades, calaram o silencio...se gostaram. Ele subiu o elevador encantado com o conhecimento e a riqueza que guardava aquele baú daquele moço. Ao abrir a porta encontrou Patrícia com a toalha no corpo penteando os cabelos em frente ao espelho, deu um beijo nela e deitou na cama. Eles conversaram banalidades e foram dormir. Ficou religioso, todos os dias quando Pedro chegava do serviço estava lá Luis no sofá como que esperando para liberar conversas, e assim eles faziam. Luis era estudante de filosofia na usp, morava em Ribeirão Preto e veio bancado pelos pais estudar em São Paulo. Religiosa também era sua rotina ao chegar em casa, um beijo, banalidades, amor e juras. No meio da noite, ele levantava nu, acendia um cigarro, ia até a sacada onde via os carros passando, apenas tragava o cigarro pensando na vida que não era dele, no sofrimento que existia na noite do quarto da frente. Olhava a mulher que nunca fora da sua vida deitada na cama e desejava ardentemente que fosse... se ele tivesse uma vida. Olhava sua imagem refletida no espelho do outro lado da sala e via uma massa sem nexo. Uma lágrima involuntária sempre lhe escapava aos olhos neste momento. Um nó apertava seu peito, o sofrimento do quarto da frente escorria pelo corredor e o afogava. A que ponto chegou aquela história, porque cargas d’água colocaram aquela carta no seu apartamento?
Todos os dias ele sorvia o lírico das palavras de Luis e o desaguava dentro de Patrícia. Tornou-se uma ponte que une e separa dois destinos. Uma ponte sem nome, sem corrimão, sem caminho, sem imagem. Uma ponte edificada entre apartamento 44 e o 45. Nada que fizesse o libertaria deste poço que cavara.
Era uma quinta feira de vento chato no centro de São Paulo, Pedro chegou no flat, olhou para o lado e não encontrou Luis. Surpreendido, subiu para o apartamento e, antes de chegar ao 44 encontrou um pedaço de papel no meio do corredor, as portas dos dois apartamentos estavam abertas. Ele agachou, tomou o papel nas mãos já trêmulas, leu com voracidade, ergueu a cabeça, largou a maleta, e saiu em disparada para as escadas. Começou a subir desesperadamente os degraus, subiu, subiu e num golpe só empurrou a porta de acesso para o topo do prédio, olhou e viu Luis e Patrícia parados um de frente para o outro em silêncio. Um iceberg se chocou contra seu estômago. Começou a tremer, suas pernas arquejaram, ele se deixou cair de joelhos, as mãos no rosto em prantos, ergueu a cabeça e as palmas para o céu. AHHHHHHHH, emitiu o grito mais alto, mais sôfrego, mais desesperador de toda cidade, a única coisa que conseguia descrever o que se passava naquela mente.
Patrícia e Luis olharam ao mesmo tempo para o lado, viram o retrato de um sofrimento indizível até mesmo para Camus e não entenderam absolutamente nada.

Um comentário:

Unknown disse...

nem comecei direito a ler esse teu blog destilado....
e afirmo...
Caro simpatizante da boa e velha loucura,
sua expressão para o mundo literal
realmente é exteriorizada pelo seu cotidiano..
linguagem com leve pitada de científico com poesia em prosa.

O lado de dentro...sublime

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