Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

19 de novembro de 2010

A história de um coração bom

Era um coração bom, de uma pessoa que gostava de fazer bom uso dele. Uma pessoa normal, afeiçoada às paixões. Um coração desses, mesmo pequeno, trabalhava bastante. Era um coração vermelho estampado em pele morena, muito bem guardado na dobra entre o quadril e a perna, num lugar quente e acolhedor, morando ao lado do sexo. Quando ela andava o coração pulsava e em noites de frêmito o coração suava. Há quem pense ser este um conflito constante para aquele bom coração. O amor e o sexo podiam caminhar lado a lado? Eram vizinhos, dividiam o mesmo corpo, mas não dividiam as mesmas coisas. A dona daquele coração bom parecia mergulhada em conflito, como a própria estampa de seu corpo estampava também sua cabeça. Talvez fosse isso o que a tornava exposta, frágil e dona de um bom coração.

Um dia seu coração lhe apontou um homem bom. Um homem que sua intuição conferiu a possibilidade de se entregar. E quando um coração bom se entrega as coisas são boas, fluidas. Aquele homem cuja parte sobre o coração escapava a muito, não se sentia responsável pelo que cativava. Mas um bom coração bom que se entrega se aperta mais, se espreme, quer ter dono, deseja ardentemente que o tomem e o ninem como criança. E ele queria sim, sentiu que podia ter seu dono. Uma ingenuidade de um coração bom que se movimenta bem. Todas as pulsações dele eram fortes, vorazes e a cada dia que passava aquele homem se sentia cada vez menos capacitado para assumir um fardo que ele não achava justo, tomar conta de um coração bom.

Cada vez mais desamparado aquele coração recorreu a algo que nunca antes recorrera. Como que em instinto de mulher o coração resolveu ser mais vaidoso. Produzia-se todo aquele corpo de mulher, buscava o plástico, o lábio bicolor, os pelos retirados, o perfume que escondia o cheiro de libido que aquele coração bebia todos os dias no calor da virilha. Mas foi um ledo engano, não era isso que tornaria aquele homem encorajado a niná-lo. Nem aquele homem sabia ao certo o que fazer. Sabia sim, de uma coisa. Não podia ser dono de nada, nem de nenhum coração. O que podia fazer era regá-lo de bons sentimentos, mas ele se assustava acima de tudo.

Como se tivesse demorando, a dona daquele coração bom mergulhou de novo no seu conflito. Seu coração se consumia em cada atrito, arfava, adorava se viciava em longas horas exposto ao ar, ao sal e á pele. Isso movia a dona daquele coração a cada vez mais se embelezar. Ao mesmo tempo aquele frágil coração se sentia desamparado, mas culpado sobretudo por um dia ter expectativas demais. Isso movia a dona daquele coração bom a ter medo, se recuar, chorar, insegurar-se. Aquela definitivamente não era uma situação boa a qual um bom coração deveria passar. De fato o conflito só podia ser resolvido com uma decisão. O coração bom decidiu se embelezar, suprimir a insegurança e substituí-la por adornos de beleza.

Uma linda mulher em dia de banho, espantando seus fantasmas pelo ralo do box num sábado de calor. Ela estava com aquele corpo a mostra de si mesma. Num preciosismo de vaidade entretanto a gilete que cortava sua virilha lhe cortou o coração. O que ela queria com aquilo, antes de se ferir? Queria que apenas afagar seu coração bom com um colo e um calor que só dois corpos podem dar. Queira se convencer do que escolhera, mas se feriu. Queria suprimir sua razão, mas se feriu pela escolha exata que fez. Naquele dia seu coração chorou sangue escorrendo pelas pernas, ferido a próprio punho e à própria escolha. Aquele choro se espalhou e aquela mulher tão linda a ponto de espalhar sofrimento se derramou. Enquanto aplicava o curativo decidiu se curar. Saiu à rua sob outros ventos.

16 de novembro de 2010

É preciso defender os fortes dos fracassados

- Sabe, outro dia ouvi um cara me falando sobre a sociedade socialista, sobre a igualdade de condições, sobre o dinheiro. Tenho certeza de que essa pessoa não sabe o que é paz de espírito. Nem deve acreditar em espírito, não se conheceu ainda, não sabe da onde vêm suas dores e por que ele ri. Nem entende por que as pessoas morrem nem a dor de uma perda. Esse cara pensa antes, prevê, discursa, contabiliza, tipo cientista, entende? Argumenta bem pra te convencer de algo ou em quem votar. O pôr do sol deve ser uma bola girando em volta de outra que ele nem sabe por que está lá, mas acredita nisso. E sabe do pior? Esses caras assim, não socialistas ou o caralho que for, esses caras de branco que olham sua língua e falam o que você tem, esses caras que sentam na sua frente, te ouvem e dizem do que você precisa, esses caras que compram calças, camisas, dão presentes, se maqueiam, juntam dinheiro pra comprar uma casa, sabe? Sua mãe deve ser assim, um desses caras. E você sabia que são esses caras que olham pra gente? São eles que botam os olhos na sua porta, eles que conversam com você sem prestar atenção no que você fala. Eles lá fora que dizem que um homem não pode desejar sua mãe, ou sua irmã, ou matar alguém, ou pegar algo que ele não tem... É foda isso, não? Você não acha? Aí eles que falam o que é certo e errado, sei lá de onde eles tiraram isso. Deve ser dos gregos, tudo tem coisa lá. Teatro, filosofia, olimpíada, é tudo invenção deles... Eles que devem ter inventado essas coisas pras pessoas pensarem e dizerem que estão certas umas pra outras. Eu fico pensando, se os gregos inventaram isso, os inimigos deles... tipo, os persas... devem ter inventado o sofrimento, ou o pôr do sol, ou o amor... pra fazer eles sofrerem eternamente. E, enquanto eles pensam de dia, sofrem de noite, vai comendo por dentro, entende?

- A gente é filho de grego.

- É, e de persa também, mas amor não ganha guerra, Gilberto. Ganha guerra quem vence...e quem vence é quem mata mais....e olha só que esses gregos também são meio estranhos porque aí quem mata mais ganha e, na rua, quem mata mais, perde. A guerra deve ser o mundo de cabeça pra baixo. Se a gente estivesse em guerra, talvez nós estaríamos lá fora. E o pior é que nós estamos mesmo e eles acham que não.

- Lá fora ou em guerra?

- Os dois, Gilberto, os dois

Daniel deixou o banco e entrou em seu quarto. Logo o enfermeiro veio lhe trazer o comprimido diário. Gilberto estava quieto, pensando profundamente nas coisas que Daniel lhe dissera. Olhos bem abertos, fixos em um ponto qualquer do infinito de sua mente. O enfermeiro olhou, passou a mão na frente do seu rosto e saiu.

A noite vinha como um silêncio fúnebre, os quartos do hospital psiquiátrico eram silenciosos, mas pungiam de milhares de vozes gritando em cada cabeça deitada no travesseiro. Pensando sobre o mundo, sobre a essência da vida, sobre o sentido da evolução, sobre o cosmo, ou o significado do universo, sobre deus. Essas vozes se perdiam no espaço invisível existente na fumaça de um cigarro ou nas vibrações inertes das paredes. Muitas conclusões sobre o mundo surgiam todos os dias, Daniel, Gilberto, Clara, Nunes, Petrônio, Nadja, Paul, Luis, Pablo, João, Raul, Elis... Todos, em seus quartos, pungiam de pensamentos, de significados sentidos para tudo.

Longe dali, o conhecimento era produzido em artigos, discutido em bares, pessoas elaboravam experimentos, olhavam através de microscópios, caçavam barcos que caçavam baleias que caçavam focas que caçavam peixes que caçavam algas que caçavam luz. Ideologias trituradas nos arpões, projetos de nação, método, ciência e livros de auto-ajuda. Nenhum deles chegava aos pés de qualquer significativa conclusão como os outros. E, entretanto, volta e meia eram acometidos por uma estranha sensação de falta, de vazio, de inconclusão. Uma inquietude triturante, que fazia o caçador desejar ardentemente ser uma baleia e nadar tranquilo nas algas, sem dar pedaços de papel para comer seu peixe. Era um vazio que o enfermeiro de plantão não entendia, suas lágrimas corriam por sua cabeça deitada. Ele não entendia, queria, mas não conseguia, seu filho chegou bêbado e ele não sabe por que o garoto se sente tão bem bebendo... Acha errado e sofre uma angústia interminável. O cara de branco atrás do microscópio chegou em casa e sua mulher não estava mais lá. Se ele entendesse mesmo o amor não estaria agora a caminho do fim. E lembrou dos ratinhos que se reproduziam tão rápido para suprir os testes. Ele quis ser um rato naquele momento para não entender o sentido de uma perda tão grande.

Na rua, as almas se encontravam e riam e brincavam e liam jornais, viam novela, desejavam um vestido ou um carro. Davam dinheiro à igreja e, entretanto, pareciam tremendo de medo e de frio. E mesmo parecendo frio esse lugar onde as pessoas vivem, ao passar por um mendigo cantando e dançando do alto de sua realeza sem a menor preocupação, as pessoas se afastam. O mais racionalista filosófico dirá que Nietzsche havia alertado que precisamos defender os fortes dos fracassados, mesmo assim chorará por ver Gaia tão distante. Esses caras pensam no fundo de suas cabeças: a que ponto pode chega o ser humano. Que estado de degradação. Talvez esse louco devesse ser internado, desintoxicado, mas com certeza sair daqui.

Talvez esse louco deva se encontrar com Daniel, Gilberto, Clara, Nunes, Petrônio, Nadja, Paul, Luis, Pablo, João, Raul, Elis e outros tantos e tantos e tantos cujas preocupações não são a de um rato nem a de uma baleia, nem a de “um desses caras”. E o que separa o quente universo fervoroso daqui do frio, distante e incompreensível mundo de lá, o mundo do conhecimento, é exatamente o conhecimento da incompreensão e a falta de compreensão do conhecimento. Uns riem, outros choram. Como nas tragédias gregas, na trágica filosofia do certo e do errado.

Os persas foram mais bem sucedidos. Lá fora todos sofrem. Sofre a moça que deseja outro vestido assim que passa pela vitrine seguinte. Sofre o cientista quando esbarra nos limites da explicação. Sofre o jovem que acaba de passar no vestibular e não sabe por que está sentado naqueles bancos centenários. Sofre o muleque da favela que sempre quis fazer faculdade de Direito. Sofre o patrão quando roubam seu 4x4 blindado. Sofre o pobre quando deseja, em silêncio, trocar o ônibus capenga pelo carro do ano. Até o mendigo, do alto de sua realeza, carrega as marcas daquilo que sofreu para abandonar esse mundo de falsas compreensões e convenções frágeis. Sofre esse que vos escreve, enquanto racionaliza isso tudo no papel. Aqui dentro, Daniel, Gilberto, Clara, Nunes, Petrônio, Nadja, Paul, Luis, Pablo, João, Raul, Elis produzem seus conhecimentos, efervescem, sorriem e quando errados nem sabem o que é o erro. Vivemos mais que todos a liberdade dos que mais pensam e não vivem.



3 de novembro de 2010

O lado de dentro...sublime

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