Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

7 de dezembro de 2011

Vida de boneca

I

Em uma praça vazia, uma boneca perdida quer chorar mas não consegue.
A boneca sorri, sorri para sempre, ou para todo o seu sempre
enquanto lhe restarem as maçãs soerguidas sorrirá.
Forjada na fina porcelana o artesão lhe pôs os brilhos vítreos mais vívidos nos olhos para que ela faça feliz uma criança.
Sozinha ela sorri.
Sua vida é puro riso, e há curvas em branco atrás daquele riso, daquele vidro.
E atras daquele olhar há o nada...o ar
E adiante daquele olhar há o nada... a indelével realidade.
Mas é no olhar e precisamente no meio do caminho, no olhar que há a vontade de chorar.
Na superfície translúcida daquele olhos que muito já viram
e de tanto ver os sorrisos das crianças implorou diluir-se


Quando chega em casa o colecionador percebe que perdera uma boneca.
Sua dúvida entretanto se estende entre o deslize e a pressa, e talvez resida nos dois
Colecionadores de bonecas são como colecionadores de outras coisas quaisquer.
Amam funebremente seus brilhos e suas maçãs pelo fato destes serem muitos seus....somente seus, diferentes e....e muitos.
Quanto mais melhor.
Perder uma peça é perder um pedaço de si depositado nas brancas curvas de uma porcelana
Ela era mais uma entre tantas, chegou a pensar...e era mesmo
De uma prateleira de muitas, intactas, todas um dia pertenceram a uma criança


Na praça, uma criança chora, e chora porque pode fazê-lo,
Por que é a única e mais verdadeira expressão do que sente e não conhece
Perdeu sua boneca, perdeu-se de seu pai, perdeu-se de sua irmã...e sem os três não é nada.
Perdeu-se.
Se um estranho lhe aproxima, lhe toca os ombros ela meneia de canto e chora mais
Quisera o estranho poder ajudar, quisera o estranho chegar perto de entender a dor daquela menina
seu soluço seus berros não podem ser compreendidos por um estranho que passou a vida toda olhando no fundo de olhos de vidro e emoldurando sorrisos puros.


Um pai que esquece a filha poderia chorar, mas não o faz.
Uma boneca, um passeio, um olhar esvaído.
Chacolha um berço de bebe como um de boneca, sem lhe olhar, sem se importar
Como um pendulo que balança sem saber porque.
Seu olhar é de quem perdeu o sopro e, sem vida foi pendulando berços e deixando que se percam as criaturas todas
E ele, a criatura mais perdida que uma boneca na praça, se escorre para o solilóquio de relógio impassível

II

Há de certo que a boneca se encontrada ou não envelhecerá.
Lhe cairão os fios suplantados,
A opacidade lhe virá ao vidro como as cataratas das velhas que vivem
A cor rúbia de sua pele desbotará e, embora o sorriso lhes seja a única arma para conseguir afeto
nem as crianças nem os colecionadores terão um afago para lhe confortar.
Estar perdida prenuncia seu futuro cárcere e dor, por não chorar

Há de certo que à criança lágrimas lhe faltarão....
No gosto amargo da memória e no sintoma prematuro da perda haverá aprendizado.
E ela não envelhecerá, far-se-á nova a cada lágrima, mas cada uma dessas lhe trará o desalento.
De tantas e tantas águas não haverá mais bonecas,
Da perda de antes o mais verdadeiro humanismo, que nenhum adulto, ou pai, ou colecionador conseguira ter, lhe fez sofrer a culpa sobrepor a dor
Eterna criança.
Desvencilha-se dos fiapos de sopros futuros para mimetizar-se como uma boneca e manter dentro dela uma chama juvenil de existência.
E sorri na vida, embora queira chorar.

III

Ela para à beira da praça para a qual o próximo passo lhe tira do lugar de antes
Ele para à beira da praça para o qual o próximo passo abrigará uma angústia anônima
Se o mundo lhe abre ante os pés fugir é o próximo passo
Mas, para onde fogem os que estão perdidos? Para qualquer lugar?
De perda em perda? De lugar perdido para outro lugar perdido?
Perdida em um lugar perdido e perdido em uma praça perdida.

Se o chão do tempo se abrisse poderia não perder a boneca
Poderia não perder a filha;
Poderia não perder a vida;
Poderia não perder o choro,
nem o impávido relevo branco do nada.

Se ela tivesse se encontrado em outro sorriso
poderia se fazer mulher;
Poderia lhe fazer mulher;
Poderia esquecer o colecionador.

Se ele não a perdesse, não se perderia no nada do seu dentro.
No badalo mudo do tempo que não passa
Uma filha, uma boneca, tanto faz.
Poderia lhes dar vida

Colecionadores perdem-se na enormidade das peças
Bonecas perdem-se na enormidade de sorrisos
pais perdem-se na enormidade de culpas
Crianças perdem-se na enormidade das lágrimas

Encontrar-se-ão talvez jamais?
Fugirão sempre?
Entrelaçados no infinito deles mesmos
sozinhos ou não estarão perdidos.

Na prateleira lustrada do colecionador o vidro se gastará
no berço vazio do pai uma boneca caberá
No sorriso aberto da criança-mulher um pai faltará
Na lágrima fantasma de todos uma boneca sorrirá.

23 de novembro de 2011

Um Belo Monte de incoerências

Como o debate a cerca da construção da usina de Belo Monte tem deflagrado um retrato do atual perfil das discussões de interesses nacionais, pessoais e manifestações infladas. Apelo popular, redes sociais, atores globais, índios e consórcios revelam o que afinal? Um retrocesso do debate democrático ou uma manifestação da moderna “democracia-egoposicionada”?


Uns dizem: “coitados dos índios que ali residem”; outros dizem: “ a matriz energética do Brasil é uma das mais limpas do planeta”; outrem dizem: “mas e os ecossistemas e o impacto ambiental?”; outros revidam: “o Brasil precisa de energia, temos que preparar o país para seu posto de economia mundial”; outros ainda: “sou contra, isso é um absurdo!”; outros porém: “temos que fazer”.
Quem são estes tantos outros? Somos nós. Sim, claro, uma multiplicidade peculiar e salutar, mas todo debate inflamado deve ser visto de soslaio.
O Brasil ostenta uma posição de certa forma privilegiada quanto aos créditos de carbono – uma moeda de poluição da natureza que é vendida e comprada de acordo com aquelas que devem ou dispõem de tal – sua matriz energética é considerada uma das mais limpas do mundo. 80%, aproximadamente composta por hidrelétricas. Ao todo são 403 Usinas em Operação, 25 em construção, além dos 3500 registros para possíveis construções (dados do sistema de informação do potencial hidrelétrico Brasileiro). Na região norte, das bacias do Amazonas, Negro, Madeira, tocantins e Araguaia já são várias em operação (como mostra o mapa) cujas áreas alagadas em suas construções são exorbitantes, dado o relevo do planalto amazônico. Diante de tal enormidade de usinas, de um consenso que as fontes de energia brasileiras são limpas, da já atestada incompetência do Conselho Nacional de Pesquisas Energéticas (CNPE) que aprovou a construção das hidrelétricas e da completa inanição da população diante das obras, por qual razão a comoção agora se deu com a Usina de Belo Monte, maior obra do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento)?


Desde dos idos tempos da ditadura, aquela região de Belo monte (que muitos juram ser em Minas Gerais) no alto do rio Xingu no sudeste do Pará, tem projetos de hidrelétricas exatamente pela sua peculiaridade geológica de ter um declive de 90 metros em 140 km (enquanto o Amazonas tem 80m em 3000km). Naquela época porém, a tecnologia e engenharia tinha um layout de hidrelétrica que armazena água e utiliza turbinas Francis (específicas para reservatórios de acumulação) o que levaria ao alagamento de uma área do tamanho do estado de Sergipe.
O projeto foi engavetado após a repercussão internacional do Primeiro encontro dos povos da floresta, em 1989, que reuniu 3000 pessoas (sendo 650 índios). O retorno atual da obra para o aproveitamento do potencial energético daquela área trouxe uma série de reformulações no tipo de produção e na área alagada. O consórcio NorteEnergia, ganhador do leilão de licitação disponibiliza em sua página vídeos sobre a construção e os detalhes tecnicos-ambientais do empreendimento. (http://www.blogbelomonte.com.br/ ). Vale a pena assistir antes de tomar partido. Dentre eles, a diminuição em 50% da área alagada e nenhuma área indígena afetada. Porém os problemas de antigamente persistem.
Recentemente, um movimento chamado Gota D'água (http://movimentogotadagua.com.br ) ganhou notoriedade e ampla divulgação na mídia e nas redes sociais por defender a suspensão das obras de Belo Monte. Há, no endereço acima, um abaixo-assinado popular para esta causa. O movimento que se define como “uma ponte entre o corpo técnico das organizações dedicadas às causas socioambientais e os artistas ativistas” já angariou até este momento (23:55 do dia 22 de Novembro), 1017688 assinaturas. Com campanha encabeçada por atores globais (os que aparecem no vídeo) o movimento lança alguns argumentos incipientes contra a construção da Usina, mas sem dúvida conseguiu apelo popular e grande repercussão.
Um contraponto ao novo projeto pode ser lido na reportagem intitulada “O caso da usina Belo Monte” da publicação Le monde diplomatique Brasil de março deste ano (http://diplomatique.uol.com.br/artigo.php?id=884 ). Vale a pena ler antes de tomar partido. Neste artigo se descortina a história e se coloca os problemas de forma mais consistente que na campanha. Dentre eles estão, o desvio do leito do rio deixará 100km do rio Xingu com 20% da capacidade e neste trecho uma comunidade indígena e muitas ribeirinhas totalizando cerca de 20 mil pessoas que dependem do rio para sua sobrevivência. Além do rio não ter sua capacidade de geração de energia atendida por conta da variação pluviométrica do rio ao longo do ano.
O panorama hoje é: o consórcio (formado por empresas públicas) tem a autorização e laudos para construir, algumas minutas ainda faltam ser aprovadas e os movimentos se mobilizam para frear o empreendimento.
Agora, postos os fatos, se me permitem, caros leitores, preciso tomar a primeira pessoa para discutir outras coisas ainda não apareceram nos debates sobre o tema na mídia. Me pergunto, porque devemos construir usinas? Para gerar energia, óbvio. Mas para quê gerar energia? Porque precisamos. E é aí, quando respondemos “porque” ao invés do “para que” estamos já não respondendo corretamente.
Precisamos gerar energia para sustentar o modo de vida e o desenvolvimento do país. O gráfico abaixo é curioso. Nele podemos ver o quanto de energia cada ser humano do planeta gasta em média por dia, de acordo com o estado de desenvolvimento da nação.


Note que os países ditos de primeiro mundo têm um gasto de energia quatro vezes maior que o da revolução industrial. Sim, nós, o Brasil que se manifesta na internet e não o Brasil ribeirinho ou o Brasil indígena, precisa de energia para abastecer seus carros, para fabricar os infinitos e inúteis bens de consumo. Precisamos de energia para nossas geladeiras, máquinas de lavar, secar, para iluminar nossas casas, ligar nossos Iphones ou smartphones ou ainda alimentar a máquina com a qual escrevemos nossas indignações contra os brasileiros que não somos nós.
Não sei se somos bonzinhos demais em defender aqueles que não tem o que temos de uma usina que irá possibilitar a continuação do que temos sem apagões, ou se somos de fato ingênuos em não olhar para o modo de vida ao qual nos inserirmos e não balizar quantos e quantos quilômetros de áreas foram alagadas para que tomássemos um banho quente; quantos quilômetros de montanhas dizimadas para cederem o concreto no qual habitamos; quantos e quantos rios poluídos por receberem nossos dejetos e de todas as indústrias que produzem aquilo que “precisamos”. Há quem justifique em todos os lados, certos os que querem defender causas ambientais, certo o governo que ambiciona estrutura para seu povo. Errados aqueles que não olham para si como pulverizadores de diferenças sociais. Errado o governo que frauda laudos ambientais em nome da estrutura visada.
O saldo positivo das manifestações na rede é a prova de que podemos abraçar causas e nos aproximar de reivindicações estruturais rumo a uma nova democracia participativa. Assinar abaixo assinados para votos abertos no legislativo, financiamento público de campanhas, urgência na votação de projetos populares e diminuição no número de assinaturas para tais (hoje são um milhão), entre tantas outras coisas que podem desobscurecer o labirinto da opinião pública. O saldo negativo em minha opinião, é ver como há uma suscetibilidade com artistas das novelas, e como se passa adiante aquilo que não foi discutido, Estes artistas, corretos em sua manifestação, sabem que podem muito mais e que seus rostos valem mais do que o edital de licitação das usinas. Encantados pelo alarido dos famosos militamos no conforto dos nossos lares, repletos de bens de consumo.
Exatamente a um ano atras, nesta mesma revista, em um texto de natal, falava eu da mesma coisa: o consumo. Um ano depois, cercado de um debate amplo e de interesse nacional, profícuo para todas estas discussões, regresso ao mesmo ponto. E agora? Enquanto compramos os presentes de natal aumentamos o gargalo energético do país que precisa de mais e mais e mais. E se não tiver, em época de crise energética quem sofrerá? Os artistas deixarão de usufruir de suas hidromassagens? Suas casas de campo e de praia? Suas atuações televisivas ou faixadas luminosas? Não, talvez façam campanha, como fizeram anteriormente, para que você ou eu desliguemos a TV da tomada para que aquela luzinha não consuma mais. Certamente não pedirão para que desliguemos a TV no horário da novela. E nós, aturdidos pelo assombro, assim o faremos. Ou não. Enquanto isso os ribeirinhos existem e os índios também. Ou não. Não sei. O que você acha?

31 de outubro de 2011

A igreja de Nossa Senhora de Aparecida.

Rubrica - Uma única atriz, seis cadeiras em círculo de terapia coletiva. Cada passagem a atriz fala em uma cadeira diferente. Personagens com expressões, formas de falar e postura diferentes.

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I

[melancólica]

- Oi, boa noite. Meu nome é Clarice. Hoje faz 5 anos que eu deixei a prisão. ….. Fiquei em presidente Bernardes por 4 anos condenada por abandono de incapaz..... Me acusaram de deixar meu filho recém-nascido em um banco na praça sete de setembro lá em Aparecida do Norte. Eu acho aquela igreja muito bonita. Sinto uma paz muito grande quando vou lá. Apesar de ter sido ela que me condenou. Me contaram que o juiz era de uma ordem religiosa da igreja e, abandonar o filho diante da imagem santa ...foi mais que um crime. Mas eu não abandonei ninguém.


II

[Ingênua]

- Olá... bom, Meu nome é Carla. Não sei muito bem por onde começar. Eu acho que minha história é triste, mas também acho que existem muitas outras piores que a minha. Eu cresci sem mãe. Nunca me falaram nada sobre minha família. Nem pai, nem tio, nem vó..... talvez por isso me apeguei muito a igreja e a Deus. Eu ia sempre na igreja de Nossa senhora de Aparecida. Eu nasci lá, dizem. Quando eu ia lá gostava de de ver Deus falando, pela voz do padre. De tanto ir lá, mesmo sem ter família ou pais casados na igreja, consegui que o padre Júlio me aceitasse pra fazer a catequese e a crisma. Passei muito tempo na igreja nessa época. Um dia o padre Júlio me falou que lembrava de mim da época que eu comecei a ir lá, que lembrava do jeito devoto que eu o olhava todos os dias. Disse que eu tinha muita fé em meu coração e que eu poderia levar uma vida de devoção a cristo e se eu quisesse poderia ir mais lá fora dos horários para me encontrar mais com Deus. Assim eu fiz. Mas teve um dia que aconteceu uma coisa estranha. Na sala de espera, eu estava deitada de olho fechado rezando e senti uma mão deslizando no meio das minhas pernas. Era o padre Júlio. Eu era muito nova, não lembro se tinha 15 ou 16 anos, mas eu não tinha maldade...... não entendi aquilo. Ele tirou minha roupa ee.....e.......tirou a roupa dele. E doeu. Eu saí correndo depois daquilo...fiquei curando minha dor em um banco da praça sete de setembro ali perto. Depois de um tempo descobri que estava grávida.


III

[Segura]

- Boa tarde a todos!!! meu nome é Cristina, eu sou escritora de romances já algum tempo. Meu primeiro livro, o que me lançou no mercado foi uma história de uma paixão entre uma freira com um restaurador da igreja nossa senhora de aparecida. Que..tinham o hábito de se entreolharem sob afresco da capela. E o resto eu não posso contar porque eu quero que vocês comprem o livro..... Bom, mas não sei se ele foi bem escrito na verdade, ou se de fato é um bom livro, mas eu tenho a impressão que a vivacidade da minha memória pode ter me ajudado a dar mais vida aos personagens. É isso.


IV

[aérea]

- É...oi..rs. Bom, eu não sei muito bem por que eu to aqui. Ahh descupa, esqueci de me apresentar. Meu nome é Catarina, por que em grego significa pura, pelo menos foi o que o padre me disse. Ele que me colocou aqui. Disse que eu sou especial e tenho que ser tratada por pessoas que sabem tratar pessoas especiais. Que se eu ficar lá fora posso me machucar ou ficar vivendo outras vidas. Ele disse que minha cabeça tem muita gente, que eu crio elas, todas mulheres com nomes que começam com a letra C, por que o meu nome começa com C. Catarina meu nome. Eu gosto daqui, a dona Conceição cuida bem de mim, conversa comigo. Eu acho o nome dela engraçado. Mas eu também tenho amigas, a Cíntia e a Claudia.


V

[tímida]

- Bom dia, Meu nome é Carmelita e.... sou um pouco tímida. Confesso que, no meio destas lembranças não sei se minha história merece algum tipo de compaixão.

Eu pequei. Quando eu era freira conheci um homem chamado Carlos. Ele era restaurador. Tinha ido com a equipe para restaurar um afresco no santuário de nossa senhora aparecida. Ele me olhava de um jeito muito estranho, penetrante. Um dia ficamos um tempo sob o afresco conversando. Ele sabia muita história e, apesar de não ser religioso, entendia muito de religião. Alguma coisa entre aquilo que ele falava e seu jeito de ser fez eu me importar menos com minha condição. Íamos todos os dias no mesmo horário no afresco pra ver como estava ficando a imagem. Um dia ele me beijou de surpresa. Foi como se uma antiga sensação me invadisse, minhas pernas arquearam, eu não resisti. Ficamos ali mesmo e uma estranha sensação no fundo da memória me fez retrair. Não consegui me libertar....mesmo querendo.....eu queria sim....chorei...Ele se assustou. O padre entrou nesse momento e me viu abaixo dele chorando....ele foi preso. E eu nunca mais esqueci ele, abandonei a igreja....minha cabeça não estava boa....passei por períodos horríveis em lugares estranhos...mas hoje estou aqui.


VI

[leve]

- Boa noite, meu nome é Carol. Eu descobri a dramaturgia cedo, nos grupos de tetro bíblico do catecismo lá na cidade de Aparecida do Norte. Acho que eu sempre me identifiquei. Já encenei muitas peças de muitos autores diferentes. Já fui de tudo, já fui prostituta, louca, intelectual, freira..até detenta. Talvez eu tivesse sido mesmo. Quando a gente interpreta ou escreve uma personagem vive ela, empresta nossa vida e nossa voz. E muito do nosso passado, nossa história de vida ajuda a tornar aquilo real. E eu já vivi tanta coisa...mas não gosto de lembrar disso. Acho que eu redescobri a dramaturgia como forma de fugir de mim em outros, mas todos os outros que faço, no fundo são eu mesmo. Mas tem outras coisas que ouço e aprendo. Tinha uma senhorinha lá em aparecida que me contava cada história que já se passou ali, ela achava que aquilo tudo era pra acontecer ali mesmo. Não lembro direito o nome dela....Clara?, Clélia?....era com C, tenho certeza. Mas enfim, não importa....O importante é que eu estou aqui. Sou uma atriz, e amo o que eu faço. Obrigada.

15 de outubro de 2011

Sol

Um por de sol
um sopor...
Uma gota se desprendendo.
Enquanto cai, uma surpresa...
Um raio de luz
um leque de cor.

Um arco de íris,
um bigo...
Um feixe de céu.
Sol pode ser amigo.
Um banco esquentado,
um brilho querido

Uma pele corada.
uma brancura...
Uma curva caindo.
Sol pode ser secura.
Um lençol dobrado,
uma beleza pura.

12 de setembro de 2011

Criança cria herança

É assim. Uma sacola plástica sendo chacoalhada e ela rindo à gargalhada. Sem dente, careca ou com escaços fiozinhos ela nasce assim, conhece o mundo com a boca. Clips, tampas, comidas, sujeiras, ela experimenta e prova de tudo até saber o que pode ou não comer. Depois para de provar. É assim. Os primeiros passos, tenros, frágeis, desequilibrados mas de uma força vital avassaladora, de um sorriso dos pais próximo ao êxtase. E andando vai, andando cai, levanta, anda e segue, e corre...corre para a vida. E fala a vida, assim meio desconexa, meio complexa, paralelepípedo, Pindamonhamgaba, circunflexa.

É assim. Pipa, bicicleta, bonecos, bonecas, esconde-esconde, roupas sujas. Na festa de aniversário muitos brinquedos, modernos, sofisticados, agradam mais aos pais que ela, que em pouco tempo está chutando latinha e fazendo castelos na areia suja. E chora se seu castelo desmorona. A vida, embora seja um playground, mostra como as coisas podem ser ao cair de um castelo. Futebol, queimada, corrida, piscina, praia, festa, amigos. Por quê? Por que o céu é azul papai? Por que não posso mexer nisso mamãe? Por que isso é só de criança? Por que as crianças crescem? Por que fez isso filho? Por que o tempo não para? Por que as crianças deixam de ser crianças? Por que tantos porquês? Por que estas perguntas te farão ser homem ou mulher? Por quê?

É assim. Vinícius de Moraes ao ver sua filha nascer escreveu: “fique assim, meu amor, sem crescer. Porque o mundo é ruim, é ruim e você vai sofrer nessa vida uma desilusão, porque a vida somente é seu bicho papão”. Há aqueles cuja vida se torna um eterno brinquedo. Experimento de sorrisos, sensações, intensidade de olhares, gozo, aventura. Estes são ditos “fugazes”, “irresponsáveis”. Há aqueles cuja alma de criança permanece e o ar da surpresa presenteia cada esquina, espanto, assombro. Estes são ditos ingênuos, doidos. Lhe são aconselhados psiquiatras e terapeutas. À criança resta a “pureza” que se perderá em cada censura dos pais a lhes dizerem o que é certo e errado, em cada sala de aula a lhes ensinarem a doutrina; em cada nova experiencia a lhe ensinar a dor de não ser mais criança. Por quê?

É assim. Uma paixão, uma arte com sua companheira à quarenta anos. O neto no parque, a boca suja, o dedão machucado, as cicatrizes da liberdade. Tememos que as crianças cresçam e a vida lhe subtraia o encanto. Tememos que elas não cresçam e que a vida lhe seja perene, sem dor, sem morte, sem vida. Tememos, sobretudo.... temos medo. Medo do mundo que ela terá de enfrentar assim que lhe vierem os primeiros pelos. Tememos pois sabemos como o mundo é. Tememos intimamente por nos sabermos participantes do mundo e construtores do nosso medo. Quase nunca tememos pelas crianças que deixaremos para este mundo. As escondemos: “o mundo é mal e você terá de aprender a lidar com ele” ao invés de: “o mundo é o mundo e você o constrói conforme brinca, faz de seu mundo o amigo fiel, faz de seu amigo um mundo bom”.

É assim. O medo rouba a infância e a melhor herança. O medo dos ditos adultos, inteligentes, sapientes. A criança aprende o medo dos outros, vai caindo, tomando pra si o que não deveria tomar. Vai pensando demais, refletindo demais os sentimentos impensáveis. Enrugando e enrijecendo a cada lágrima. A criança lava louça, paga contas, corta a grama, troca o disjuntor, pensa o mundo, teoriza conceitos, faz sexo, amor, ou se casa. Corre atrás de dinheiro, trabalha, se preocupa, gasta suor, sangue, sorriso em troca daquilo que jamais quis ser enquanto pulava corda ou tomava banho de chuva. Quando pelada não se preocupava com os olhares alheios senão com uma banheira rasa num dia de céu claro e calor intenso.

É assim. Uma conversa no botequim, uma piada de si mesmo, um grito no silêncio, falar sozinho no banheiro, uma proeza anônima. Ficou mais de três minutos embaixo da água e não tinha ninguém pra contar; jogou uma bituca de cigarro e ela caiu em pé e não tinha ninguém pra contar; matou cinco bolas de sinuca em uma tacada na hora em que todos estavam no balcão; fez uma sesta do meio da quadra no final do treino onde todos estavam no vestiário; Encontrou um ídolo internacional, você e ele, sem fotos; resolveu um quebra cabeças de 3 mil peças em duas horas; depilou a axila inteira com uma pinça e sem nenhum machucado..... Rimos sozinhos, vibramos como aquela criança que morreu dentro de nós. Ela quer sair, te faz sorrir, fazer um “yes!!” soltar um grito abafado. Depois ela volta pra dentro de você, de onde nunca deveria ter saído... e adormece. Viva as crianças, as que matamos, as que sobreviveram, as que ainda estão por vim e as que podem sobreviver. É assim, como num curto tempo é assim. Como as rugas que carregará, é assim. Como a estrada que constrói conforme anda. É assim, mas poderia não ser. Deveria não ser.

28 de agosto de 2011

Soneto do Amor & Sexo


Dizeis se é vil a carne nua.
Se assombra o fel do amor
quando amando vem-te o temor
de que o sexo a ti destrua.

Se teu leito freme de calor,
o fogo invade a coxa tua.
E tentas esconder na rua
um pobre peito pecador

No amor não há intimo mistério.
Ternura emanando de um amplexo.
O sorriso tem na alma seu reflexo
e na carne tem seu necrotério.

E se ela roubar do amor seu nexo,
lhe deixará somente um critério:
Que amor sem sexo é caso sério
e sexo sem amor é um bom sexo.

22 de agosto de 2011

Para quê? Para guai

César amava Robles. Robles tinha 21 anos, um ar juvenil e despojado, gostava de se fingir de morto no rio Paraguai. Até que alguém vinha e ele sorria. Um fanfarrão. César tinha 46 anos e era professor de Filosofia em uma universidade mais ou menos qualquer coisa. Grande, com cabelo que Salvador Dali invejaria, um óculos que Jô soares invejaria e um jeito pegajosos que ninguém jamais invejaria. Robles gostava de César, “entre quatro paredes esse menino se liberta” dizia César com comichões. Porém, Robles namorava a prima de César, uma senhoura de 55 anos, olhos verdes e muitas rugas pelo rosto. Poderiam julgar que ela era vó de Robles. Augustina, tinha um charme, é verdade, tolerava bem a bebida, simpática. Um triangulo amoroso, ou não, muito peculiar. Isso com todos sóbrios quando a cevada entrava e a cumbia subia, tudo ficava mais libertino.

Estávamos eu e Terry andando pela praça Coronel Tavares, depois de sair de um espetáculo de cabaré com uma simpática espanhola que gozava dos outros. E uma pianista jazzista magra como Carolina em seus tempos de anorexia. De graça na rua Estiarribia. No meio da apresentação a atriz chamou um cara para fazer um papel de macho que tinha ciúmes dela com um outro cara. O cidadão foi rebolando ao palco, se apresentou como “Moa”, mas se ouvia “Moah”, e completou.....Moacir. Uma flor daquela chamar Moacir é uma injustiça, coitado. Obviamente ele não conseguiu fazer o papel de macho, mas nos deu boas risadas. Saímos e fomos a um pub velho com arquitetura diferente, uma lage um espaço externo cheio de mesas e tocos de madeira. Um balcão minúsculo dentro com um monte de gente tomando uma Pilsen e fumando. Atendentes simpáticas mas as quais eu não conseguia compreender muito, senão pelo sorriso. Tomamos umas ervas nativas, alguns baldes de cerveja e mesmo no frio cortante daquele lugar, Terry disse que queria ir a um bar de karaokê que havíamos visto naquela tarde. Passando no meio da praça, dezenas de barracas de plástico preto. Imaginávamos o frio daquelas pessoas ali. Era uma mistura de praça da sé com acampamento cigano. Chegamos na rua Palma para descobrir que o karaokê já estava fechado, e era apenas 01:30 da manhã. Resolvemos perambular para achar algo de se beber. Passando em umas transversais ouvimos o som, a música inconfundível de Cúmbia. Terry se animou, fomos até o local. Era um porãozinho de nome “soundclub” um som alto, lotado de gente. Fomos entrando com alguns olhando e podíamos ler o pensamento deles. Essas pessoas não são daqui. O garçon banguelo e careca fez gesto que não. Não sabia se estava fechando, se não tinha mesa ou se não queriam a gente lá. Fiz que ia sair, Terry voltou e me puxou pelo braço. Entramos e nem perceberam. No balcão, uma senhora simpática dançava ardentemente com o seu companheiro, ou amigo, ou namorado, mais novo. A julgar pela intimidade deviam ter um caso. Pedimos cerveja e logo começou a tocar as músicas que tocam em qualquer lugar. Meio Jovem pan, as paradas de sucesso, e as músicas de qualquer baile...beeges, essas coisas. Na nossa frente, uma mesa com um rapaz de lábio leporino e cara de índio dançava com uma mulher de oncinha, gordinha, e ela fazia uma dança que podia ser tudo menos sexy. O rapaz gostava. Na mesa ainda estavam César, Robles e Augustina . No Balcão, nos animamos quando a Cumbia voltou. Começamos a dançar e logo veio César com seu jeito tresloucado dançar conosco. Quando vimos, estávamos conversando, dançando. César com aquele 1,85 metros, uma saliência considerável na barriga, as roupas justas, o cabelo de Dali e o óculos do Jô Soares descia até o chão, mas não ganhava da moça da onça em termos de cenas horríveis de se ver. Robles cambaleava e Augustina parecia sóbria. Fui no banheiro e quando voltei tinha uma senhora com um vestido vermelho e um ar de luto, impassível em meio a bagunça do local e sentada ao lado do meu lugar no balcão. Terry lançou-me um olhar do tipo, “chega nela!”. Dei uma encostada de cotovelos na mesa, uma olhadela de lado, topei com aquele olhar de velório com batom vermelho e desviei pra ver Terry rindo da minha cara. Qué isso? Logo César já puxou Terry e tagarelava mais que a boca. Descobriu que éramos brasileiros e quis falar um português desastroso. César estava contando – não sei por qual motivo – o caso dele e do garoto. Que era muito difícil ser maricón naquele país...e aquela coisa toda. Ele a abraçava, virava o copo de Terry e dizia que isso era sinal de respeito. Aonde? Na minha terra isso aí risca a faca no chão. Xingue minha mãe mas não toque na minha bebida. O bar foi esvaziando, o banguela expulsou a gente e o casal do balcão acho que já estava no bem bom. Na rua, Casar falou par irmos ao Rústico, um bar aberto as 04:00. dissemos em uníssono “no tengo plata!!”. Tudo bem. Lá fomos nós, no meio do caminho, César abraça Terry e Robles. Augustina olha pra mim com um olhar sedutor escondido nas rugas. Digo a ela “de onde és?”. “De Argentina”... “usted son pares?” ela sorri e não responde. Na esquina, Robles pegou César e lhe deu um beijo...que o senhor ficou sem graça. Depois beijou Augustina. César quis abraçar Terry de novo, mas ela já se esquivava. Robles veio falar comigo que gostava de Chico Buarque e começou a cantar. Cantamos meia música até ele não ver o hidrante e cair com a cara no Chão. No rustico, a moça de onça e o índio fanho nos esperavam. Era um outro Karaokê, com gente jovem, mais bonita. Umas luzes rosas e até um mezanino. Tomamos a cerveja deles. Quando o papo virou para ir pra casa de alguém, pensei “vai dar merda”. Acho que Terry também...desconversamos e saímos do bar. Umas 05:30. Depois de uma caminhada no quarto coletivo em que ficamos Terry notou que tinha um gringo novo em uma das camas.

Tinha uma cara parecidíssima com o pequeno príncipe. De tarde quando acordamos, só deu tempo de sair e almoçar depois comprar uns vinhos para a noite, antes de sair novamente. Tarry ia convidar o Príncipe para tomar conosco. Íamos depois ao pub da noite anterior pois uma das atendentes estava simpática além da conta comigo. De noite, numa mesinha de frio eu fumava meu cigarro, Terry servia o vinho e o príncipe estava do outro lado da parede em um computador. Terry saiu decidida a chamar o moço, passou no quarto pra tomar coragem, mas quando voltou tinha alguém com o gringo. Ela não segurava a risada. Era o Moah. Chamamos todos à mesa, mas aí começou o problema. O príncipe era alemão, e além da língua dele só falava francês e inglês. Terry mandava bem no inglês e no espanhol. Moa era brasileiro, falava francês e espanhol. E eu só tinha uma boa intuição. Tomamos um vinho, o príncipe mandou buscar cervejas. Um falava francês depois em português, aí inglês, conversas paralelas traduções distorcidas. Mas deu pra se entender. O Moa era ator (mas não conseguiu fazer papel de macho) e trabalhava em Foz do Iguaçu. O alemão era grafiteiro, estava fazendo um tour pela América do sul. Mas o alemão era fajuto, primeiro porque ficou bebão – alemão que não bebe é meio estranho. Segundo, que ele mais era queria sair com o Moah. No frigir do ovos talvez o Moa conhecesse Robles e César, talvez não. Mas que foi muito peculiar, não há dúvidas. E se perguntarem, mas você foi no Paraguai para quê? Para guai.

24 de julho de 2011

O jazigo da esperança - Capítulo 5

Capítulo 5

“Olá, não sabe certamente quem eu sou. Talvez eu não saiba quem você é. Mas te vejo todas as manhãs e tenho a sensação de que estamos diante do inesperado que conduziu nossas vidas para o mesmo lugar e o mesmo tempo. Reafirmo isso toda vez que vejo seus dentes aparecerem. Eles me dizem algo. Não sei ao certo o que é, mas tenho a impressão de que seja simplesmente a paz.”

A espera é absurda, terrível na qual não se sabe qual objeto mudar de lugar, que gesto repetir, que coisa para fazer que chegue a pessoa esperada. Por fim, chega um carro. A face que se observa ilumina-se. Diante da eternidade. É ela. Afasta levemente os braços que a estreitam. Cabelos pretos, jovem, olhos esplêndidos, onde há langor, desespero, finura e crueldade. Esbelta, trajada sobriamente, um vestido de cor escura, meias de ceda preta....Sua grande frieza aparente contrasta tanto quanto possível com a recepção que lhe é peculiar. Ela ma disse seu nome, Rara, por que em bahasa é o começo da palavra esperança, e porque é um começo.

- Está devagar o movimento? - Claudio chega na loja.

- Pois é, estava lendo o livro, vou terminá-lo. Tem muitas coisas que me chamam a atenção embora, como eu disse, entendo pouco. Mas entendo o mais importante: Rara não é uma mulher comum – Chico sentia ao mesmo tempo dentro do livro lido e parte de uma história surreal.

- Acaso objetivo meu amigo.

Talvez fosse, talvez não, talvez a vida fosse um engendramento de desencontros e encontros. Talvez todas as pessoas vivessem um organismo desenfreado de fatos sobre fatos. Talvez houvesse algo místico, talvez apenas acaso. Esbarrões com o tempo e o espaço para que na história do universo viessem a existir e a estar ali, no mesmo tempo e no mesmo lugar olhando-se. Somente a força deste evento seria arrebatadora, havia mais, porém. Chico sentia, precisava conversar com Rara.

Mais um dia nublado em Pálpebus e Gomes entra no auditório sem olhar os outros. Chico espreita as sombras atrás dele. Rara está lá, com uma camisa branca e uma calça preta. Sua finura é cruel. Sozinha, dolorosamente sozinha. Chico pensava em lhe deixar um bilhete, em lhe falar na rua ou em um jeito de conseguir escrever. Entre dúvidas a resposta se mostrou na sua frente. Enzo lia algum livro na sua frente. Ao ter tal ideia não conseguia se conter em uma explosão de ansiedade e perspectiva.

- Está no livro, em Mônus as leis são diferentes das que temos aqui. Esta é uma questão central para entendermos – Gomes iniciava sua fala sem preocupação com cumprimentos – São leis diferentes porque são lugares diferentes e jeitos de vida diferentes. O mais curioso é, por que é o mesmo conselho administra tudo. Não é nada simples, mas melhor tentarmos. Como vocês já sabem o conselho é formado desde de seu estabelecimento em 2062 por presidentes de grandes corporações. Essas pessoas tem alguns interesses centrais, entre eles, continuar vendendo seus produtos, morar em uma cidade deles sem ter contato com nós, cuidar dessa cidade para que a vida se torne agradável. Lá não se arranca nenhuma árvore, se trata toda a água, entre tantas outras coisas. Quando uma pessoa vai à Mônus já tem função garantida assim como moradia. Essa forma de organização não é nova. Nas fábricas desde o século XIX homens tinham funções definidas para que tudo desse certo. De certa forma este modo de organizar a cidade reflete muito como, historicamente as pessoas formadoras dos conselhos agiam. Para que tudo funcione como uma engrenagem, precisa-se de leis, ou um código de conduta para os moradores.

Chico escrevera em um bilhete “preciso falar com você depois, aceita um café? As 13 no térreo do shopping345”.

- Quer entender Mônus entenda a história das empresas e indústrias. Poderíamos dizer no século XX, por exemplo, que os moradores de Mônus são funcionários de uma grande empresa cujo produto é a satisfação de sonhos, e o que vocês querem aqui é fazer parte desta empresa. Alguém, mais radical poderia dizer que as pessoas lá estão presas e escravizadas a uma função sendo tutelas pelo conselho da mesma maneira que negros, indios e prosioneiros foram até o século XX em diversas culturas. Sim, as duas hipóteses podem ser verdadeiras, o fato não altera a condição de quase todos quererem isso. Porém há um outro lado. O mesmo conselho designa leis para manter a perfeição de Mônus e designa outras leis aqui. Isso porque Mônus jamais existiria sem Pálpebus, sem as pessoas daqui. Para um viver bem o restante do continente garante a manutenção da ordem. Pensem em tudo nesta sala, suas roupas, seus talks, comida, cinema, tudo precisa ser comprado e eles vendem.

Chico viu o bilhete voltando abriu e leu “Você não faz meu tipo, mas aceito o café”. Não sabia se era uma gozação, ou se de fato aquilo se tratava de um erro de comunicação.

- Estímulo da competitividade, da diversidade, afrouxamento das penalidades legais entre tantas outras coisas encontradas aqui tem seu fundamento. A natureza humana, como sabemos, é selvagem, em um lugar com leis leves as pessoas menos informadas se digladiam, querem se mostrar mais capazes, ou mais bem-sucedidas, ou ricas. Isso é, em essência garantir o funcionamento de Mônus. Lá, por mais que o conselho mude conforme as cotações de poder de cada um ou compra do cargo por outros, essa lógica estará sempre unindo as duas cidades. Por motivações particulares, pessoas frustradas tentam, ao longo da história destruir Mônus ou sua forma de organização para que não exista mais esta divisão. Recentemente tivemos um bug na rede de controle social e para desconforto dos terroristas nada foi alterado em Mônus. E nada foi alterado por um motivo simples o qual alguns de vocês já devem supor. As pessoas lá, são todas educadas para viver lá. Se algo foge à regra as pessoas sabem o que fazer. A perturbação, afinal poderia afetar suas vidas e ninguém quer isso. Sempre defendi e continuo mantendo minha posição, frente ao disposto hoje, a pior forma de terrorismo é o ideológico, não adianta explodir bombas, causar medo, somente haverá mudança em algo se houver uma inversão na educação de Mônus, e isso certamente não acontecerá.

As falas de Gomes sempre eram indeléveis à Chico. Não saber de um atentado lhe causava uma insegurança. Como se vivesse de olhos vendados sem condições de juízo dos acontecimentos e estes por não serem noticiados tornavam-se fluidas estórias manipuladas....nada era certo. Quantos eventos ocorriam no mundo e sequer se sabia. Não havia forma de saber, somente estando presente no momento do evento. Por longos minutos Chico desejou sair daquele treinamento e entrar em Mônus para ter certeza das palavras de Gomes, pois ele, ali, julgava-se mais consciente, embora sua ação fosse controlada com uma bomba junto ao baço. Ao término, quase esquecendo-se do seu plano e de Rara, Chico encontrou Jorge na saída e lhe convidou para o almoço e o café.

- Tenho que tomar esse aqui sem açúcar se não dá para levar a tarde toda estudando.

- Sabe o que é bom? Mistura isso aí com coca-cola. Você ficar umas horas sem nem vestígio de sono – Chico sentiu certa frivolidade em sua frase, envergonhou-se em silêncio.

- Nossa! Mas em compensação alguma coisa ruim deve acontecer.

- Sempre quis entender porque você quer tanto ir a Mônus. O mesmo motivo de todos? Prosperar? - Chico queria entender os motivos de todos. Havia dias de inquietude nos quais ele tinha o hábito de mudar radicalmente o assunto de uma conversa.

- É simples. Pense em algo que goste muito, e você deseja fazer isso sua vida, tendo uma esposa e condições de ver seu filho crescer em um lugar limpo, sendo educado e tendo comida de verdade – disse Jorge com seus olhos puxados e longas olheiras – aqui não há isso, não poderia ter uma vida minimamente digna sem estar em um lugar minimamente digno. Esse lugar é Mônus e para entrarmos lá, temos de jogar o jogo. Isso que estou fazendo. E além disso há uma pessoa lá a minha espera, para nos casarmos, eu tenho que passar. Por isso tomo café, me dedico a tarde toda. É minha chance.

- Está aqui só pra estudar? - Chico entendia Jorge, mas se arrependeu de ter perguntado.

- Eu estou na casa de um amigo. Vim trabalhar para ser chamado agora e tenho de passar.

- Mas parece que essa pessoa te esperando te move mais do que o futuro.

- Ela está lá, fizemos um pacto. Eu aproveito pra estudar. Mulher nessas horas exige muito da gente.

- Te entendo perfeitamente. Tem uma menina linda aí no processo e eu não consigo parar de pensar nela. Sempre vem na aula do Gomes. Ela tem um olhar, uma boca, um sorriso...um mistério.

- Estou entendendo.

- Te mostro depois. Ela conversa com o Túlio. Acho que ela fica aí o dia todo. Ah olha lá o Enzo,ele vai me ajudar nessa – Enzo os viu e vinha na direção deles. Cumprimentaram-se.

Mesmo sem conhecer muito bem Enzo, Chico impressionava-se bem com o rapaz. Apesar da estatura e porte físico era simpático. Embora também não soubesse suas motivações naquele curso, sabia de seu trabalho na secretaria da estação central, algo a lhe conferir uma grande atenção naquele momento.

- Pede um café pra ti – Chico quis ser gentil.

- Na verdade eu não tomo, mas pego outra coisa.

Chico colocou Enzo a par da História com Rara. Conversando com Jorge, cada um contou alguma história de suas vidas. Jorge contou como conheceu a mulher a quem ele iria encontrar em Mônus. Na zona interiorana HI7 em uma feira de tecnologia médica. Sua mãe estava à época com cancro crônico e somente alguns nanorobos poderia fazer uma intervenção interna, mas aquele era um procedimento arriscado, Jorge aproveitou a feira para conhecer melhor. Na estante de uma marca havia uma mulher atendendo, era ela. Posteriormente sua mãe foi curada, mas veio a falacer em um acidante quatro anos depois. Enzo contou que morava com uma mulher – para certo alívio de Chico – há um ano. Paixão de infância. Chico quis saber como aquela paixão havia surgido pela primeira vez. Enzo não conseguiu explicar, era novo, havia admiração, ternura, mas nenhum tipo de marco. Chico contentou-se em não ter explicação.

- Preciso de um grande favor seu – disse Chico a Enzon e alcançou o ponto mais importante da conversa - Você trabalha na secretaria não é?

- Sim, já entendi. Você quer os contatos dela.

- Muito! Preciso falar com ela, mas não pessoalmente.

- Não posso fazer isso, mas se eu conseguir você me paga um rodízio de Ração assada depois.

“Quem é você? Não quero ter a sensação de ser observada por onde ando. Por favor, pare com isso. Não nos conhecemos e não é de fato minha intenção”

Sim, talvez não fosse o melhor tipo de resposta a tão nobre aproximação. Mesmo assim Chico sentiu um novo vento soprar. Aquela resposta configurava de certa forma uma atenção dela, uma conversa ou uma possibilidade. No dia seguinte, ao entrar na estação, figurou sobre o mezanino apenas para esperá-la. Mesmo com a grande quantidade de pessoas Chico seria capaz de encontrá-la em segundos. Enquanto a multidão fazia volume em sua retina pensou em seguir Rara e descobrir sobre sua vida. Parecia claro a repulsa diante de uma aproximação anônima. Mas havia ali medo, como forma brutal de consciência, Chico não desejaria se expor àquele olhar penetrante sem proteção. Algum lugar no fundo dos olhos de Rara parecia ser perigoso e estonteante. Chico precisava convencer-se de tudo o que não sabia. Não sabia sobre Mônus, não sabia sobre seu pai, não sabia quem era a mulher que lhe roubara os pensamentos, não sabia de nenhuma notícia a não ser as da central jornalística de seus sentidos. Aterrorizava-se por isso e encoraja-se equipotencialmente. Saber o movia e pensando sobre o alto de cabeças andantes Chico não quis saber. Resolveu, mesmo sem a amistosidade de Rara, continuar-lhe escrevendo. Ela precisava saber dos eventos ocorridos dentro do universo vertiginoso da cabeça dele. As pessoas precisam saber que os acasos encerrados entre todos desemboca em encontros e desencontros e, quando o encantamento é eminente no mínimo se torna honesto a pessoa encantadora se saber assim para com Chico. Continuaria escrevendo, lhe contaria como chegou àquele ponto, continuaria anônimo, resguardado pela sua insignificância. Enquanto felicitava-se por tal decisão foi invadido por ela. Subindo as escadas sem olhar os degraus. Sua firmeza e delicadeza preenchiam aquele hall nas fendas mais sutis das colunas de mármore. Mais uma vez sua roupa simples escondia algo. Chico não sabia. Contentou-se em vela aguardar os elevadores e foi, ainda recolhido ele próprio para a fila.

A tarde chegou escura, densa, o ar espesso. Ao mergulhar as escadas da plataforma para ir ao à loja Chico viu à oeste uma nuvem de explosão assustadoramente grande. Sua forma tampava o sol, dava à rua pior aspecto frente ao já sujo dia da Pálpebus. Parecia um monstro da escuridão carregando-a, avançava tomando o céu e espalhando medo. As pessoas olhavam para cima boquiabertas. Pouco se falava. Se via e Chico sabia somente o que seus olhos viam e o nó de sua garganta atava. Alguma coisa aconteceu em algum lugar. Quem saberá dizer? Dentre os sites, pessoas, agendas, comunidades e órgãos representantes do Conselho administrativo parecia a Chico que a única fonte de informação mais confiável seria seu pai. Não sabia se ele estava em casa, mas decidiu passar lá após o trabalho. Talvez estivesse diante de uma revolução ou uma dizimação, não sabia. A vida parecia assim, a linha limítrofe entre o concreto e o transposto. Naquele momento, com a explosão ao oeste de seu corpo e ao centro de sua cabeça Chico sentiu um aroma radical de mudança. Só não sabia o quê.

Há uma extraordinária beleza no caos, sutilmente escondida nas pequenas coisas, em nós. Como um lírio em um canto úmido e sujo dum esgoto.

Basta que você ande na rua e note quantas pessoas passam diante de ti, mas não são pessoas, são vidas, são histórias, são aventuras, são experiências, são alegrias e tristezas, são amores, são artistas, são loucos. Cada ser que te passa aos olhos é um mundo, uma descoberta. E então porque não vivê-los? Porque nos controlarmos? Porque não seguir a nossa vontade? De beijar fervorosamente alguém sem que conheçamos, de gritar qualquer coisa aos quatro ventos, de viver intensamente o olhar de um mendigo? Porque não se aventurar? Porque não sair andando sem rumo? Quantas vozes dentro de um trem para serem ouvidas, quantos perfumes a serem sentidos, quantos corações a serem afagados. Às vezes o grande amor de nossas vidas estava sentado no banco e traz coletivo, ou passando apressado do nosso lado na calçada, ou te vendendo um talk, uma ração, ou dirigindo um táxi, ou do ouro lado da rua esperando o semáforo abrir, ou carpindo um terreno no caminho de casa, ou em qualquer outro lugar do mundo... Ele existe... É. Ele existe... Mas... Como saber?

Infinitos grandes amores pairam soltos, e nossa razão consciente não nos permite enxergá-los, prová-los. É preciso abandonar a responsabilidade e agir inconscientemente, e amar com força aquilo que o acaso determinar.

Assim o faço: amo alguém que está neste momento em algum lugar diante de um computador, tão longe e, entretanto aqui do meu lado. E amo acima de tudo alguém que anseia por liberdade.

O lado de dentro...sublime

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