O vento erguia levemente os cabelos de Clara. Os canaviais se estendiam no horizonte e dançavam como ondas refletindo o sol daquele domingo. Conforme o carro avançava na estrada, as canas passavam tão rápido que os olhos não podiam acompanhar. Clara semi-cerrou os olhos e sentiu a brisa. Um brilho diferente acendera seus pensamentos e a invadira. Ela se viu vislumbrando o passado. Sentiu-se de novo no bote descendo o riacho calmo que ficava do outro lado das pedras tortas, depois do morro, quase divisa com a fazenda Damião. Os dedos tateando a superfície turva e gélida da água tentando pegá-la. Com a mão em concha ela olhava aquela poça e ficava intrigada, tentando pensar porque a água no rio era escura e na mão era transparente, nunca chegava a conclusão nenhuma, mas sempre achava mágico tirar a cor da água apenas com a mão. Então se cansava de olhar e jogava arteiramente o líquido nas costas de Dudu, o primo da roça que guiava o bote. Ria com os dentes para o céu da irritação comedida do moço. Clara deu um leve riso com a memória e aumentou o Jetrho Tull no som do carro. Ela estava novamente no bote, o bote do tempo. Rumando para um deságüe longínquo e desconhecido, depois de amassar e jogar para cima sua antiga rotina, sem sequer pegar os documentos em casa e apenas com uma sacola de roupas recém comprada. Colocara uma outra vida no bote ou estava de carona no bote de Rodrigo, quem sabe. O que Clara sabia era que estava indo ao encontro de suas lembranças. A fazenda do avô era um ótimo lugar para passarem uma semana em sigilo e abaixarem a poeira. Ademais, após a morte dele, ela estava vazia, com os pobres cuidados do caseiro, seu Ademar, pai de Dudu. Até lá, a estrada era o trilho e o vento o combustível das divagações.
- O que você pretendia fazer com o dinheiro quando pensou no golpe? Perguntou Clara sem tirar o rosto da janela.
- Eu ia pagar as dívidas minhas e do meu velho como casa, carro...essas coisas, e com o restante ia para Las Vegas, ou Punta, ou Bahamas, um lugar que eu não tinha decidido ainda para fazer carreira no jogo – respondeu sem tirar os olhos da estrada.
- Como assim “fazer carreira”?
- É...ser um jogador bem sucedido, viver disso, ter uma boa casa...cachorros e por aí vai...afinal é a única coisa que eu sei fazer.
- E agora, você ainda tem esses planos?
- Não sei, acho que sim, mas preciso fugir primeiro...em breve vão dar um jeito de encontrar a casa do meu pai, preciso avisa-lo.
- E eu preciso ligar para casa, pra despistar minha família, senão a primeira coisa que vão ver é se eu fui para a fazenda do meu vô.
- Tem um posto logo ali.
O posto era daqueles modernos que reinavam no meio do nada. Eles pegaram algumas coisas para comer, uma cerveja, Rodrigo ligou para o pai e deu o cartão a Clara para que fizesse o mesmo. Ela ligou...ninguém atendeu...secretária eletrônica: “Alô, mãe...eh...mãe, eu vou passar um tempo fora com uns amigos, estamos indo lá pro nordeste, não sei quando eu volto..mas eu to bem, desculpe não ter avisado..eu num tava me sentindo muito feliz em casa...de qualquer forma é isso..tchal tchal..beijo”. Desligou o telefone, tirou o cartão e foi em direção a Rodrigo, que estava no banco, olhando o horizonte e tomando uma cerveja. Ela sentou-se do seu lado, sem desfazer o silêncio que pairava, ele estendeu a latinha a ela mantendo o olhar fixo e pensamento distante. Ela que não era muito de beber cerveja, bebeu despreocupada. Eles se levantaram e seguiram viagem.
Já tinham avançado muito na noite quando a primeira placa mostrou: “Pontaporã – a 34km”. Estavam próximos, pois na verdade a fazenda ficava um pouco antes da cidade.
- Entre ali – Clara apontou para uma saída de terra batida do lado direito.
Entraram na estradinha e andaram um bom tempo cercados pelas arvores que pareciam estreitar o caminho. O mato estava dominando a estrada, a impressão é que fazia tempo que ninguém andava por lá. Enfim chagaram na porteira e a suspeita se confirmou, quando o farol do carro iluminou a entrada, puderam ver a trinca enferrujada e a placa da propriedade caída. A casa do caseiro estava aparentemente sem ninguém. Clara tirou a trinca, esperou o carro passar, fechou e foram até a casa. De longe Rodrigo já pôde ver, erguendo-se imponente no breu o casarão antigo, também sem nenhuma iluminação. Pararam em frente...era verdadeiramente grande aquilo tudo. Clara desceu e Rodrigo seguiu em seu encalço, pegou a lanterna no porta mala:
- Parece que ninguém vem aqui desde que meu vô morreu! – disse Clara com um pouco de medo – até a casa do caseiro está abandonada.
- Pelo menos podemos ficar tranqüilos por aqui – falou Rodrigo iluminando de pé a pé a extensão da fachada.
- Eu não teria tanta certeza – exclamou Clara para ela, sem que Rodrigo pudesse ouvi-la.
A porta estava aberta, eles entraram. Havia muita poeira, e os móveis estavam todos no mesmo lugar, sem nenhuma alteração, senão a do tempo, a toalha estava na mesa de jantar ainda com algumas velas derretidas nos castiçais. Na cozinha, havia panelas no fogão a lenha. Rodrigo achava tudo aquilo bonito e assustador:
- Aqui – disse Clara apontando para uma porta – vamos pegar os lampiões lá no porão.
Eles desceram, passando por muitas coisas velhas, peças de máquina, ferramentas, quadros, móveis velhos e na prateleira do fundo estavam cinco lampiões a óleo. Eles os pegaram, foram até a cozinha, acenderam e colocaram distribuídos pela sala. Quando os lampiões iluminaram toda a sala, Rodrigo pode ter uma noção do tamanho do cômodo, era extremamente alto, forro de madeira, um tapete de onça em frente a lareira, parecia coisa de filme, algumas armas antigas penduradas na parede e até uma jaguatirica empalhada que mesmo morta, brilhava os olhos quando a lanterna os varria. Eles pegaram tudo que tinha para pegar no carro, trouxeram para a sala e já ajeitaram as camas para dormir. Embora houvesse muitos dormitórios na casa, preferiram dormir na sala...havia bastante espaço. Comeram, beberam e ficaram conversando a respeito da casa. Rodrigo estava exausto e caiu no sono rapidamente. Clara ficou ali olhando a carranca do outro lado da sala, acendeu um cigarro, levantou e apagou os lampiões. Ficou em silêncio, pensando nas coisas que ocorreram, na sua fuga, na história louca daquele rapaz, na sua própria superação em sair sem medo...era muito para ela pensar no fim do dia, também estava demasiadamente cansada. Apagou o cigarro, deitou e, antes de fechar os olhos ouviu o ranger vagaroso de passos no assoalho...seu coração disparou.
.
.
continua na página acima
Cada vez que recruto minhas loucuras, viagens e anseios com a experiência de qualquer coisa que não tenho, extraio disso uma destilação surreal. Escrevendo, sublimo essa coisa pelo ralo. A vagar por bueiros, ela encontra todo tipo de destilados da cidade, dos santos aos psicopatas. A amálgama humana se mistura, formando o mais intenso e real do pensamento e vai à superfície buscar as narinas dos transeuntes, mas são retidas pelas tampas dos bueiros que friamente censuram o regresso das idéias.
Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..
9 de julho de 2007
A magia Clara (III) - Estrada para o passado
Postado por
Vitor Machado
Enviar por e-mailPostar no blog!Compartilhar no XCompartilhar no FacebookCompartilhar com o Pinterest
Assinar:
Postar comentários (Atom)
2 comentários:
Olá, primeira vez no teu blog,
gostei da tematica do soneto "os olhos" e dessa historia!
flw
aiai... quem será q é??
hehe, mto corajosa essa jovem... mas bem q seria mto loco sair assim da rotina...
...
Postar um comentário