Ela saiu do banheiro sem se secar, nua, a passos trêmulos, cabelo chanel cobrindo os olhos, viu a silhueta de alguém andando no outro lado do quarto, parou, olhou e se aproximou do espelho observando a estranha figura. Corpo magro, seios pequenos, quadril reto, parou a um metro da superfície, olhou a massa parda do outro lado e ergueu o braço lentamente até que seus dedos encontrassem os dedos que vinham de lá. Entre os fios úmidos no rosto lágrimas surgiram no lado de cá sem serem notadas. Mal sabia ela porque, águas vinham e iam sempre.
- Clara venha jantar, estamos esperando.
Sem muito pensar ela foi ao armário, pescou as primeiras peças do pijama, enxugou o cabelo e os olhos, deu uma sacudida na cabeça e foi para a sala. Estavam todos lá, pai, mãe, avó tia e primo.
- Oi, oi gente.
- Oi Clara, que cara é essa minha querida. Você está muito diferente hein. Sentenciou a tia.
Sem respostas, todos à mesa comeram e falaram besteiras sem sentido, do vô que morrera a pouco, do Sanches que estava com algum problema e iria morrer a qualquer momento, sob observação no veterinário.
- Ele era tão companheiro – falou a mãe de Clara com a voz um pouco embargada.
Nada do que diziam parava por um instante na cabeça dela. Pensamento escuro, perdido naquilo que ela não sabia o que era. Toda a família, a cena, a peça eram de fato um zunido para aqueles ouvidos. Sem mais uma vez falar, ela se levantou, levou sua louça para a cozinha, lavou olhando para as luzes dos prédios a frente, uns pertos, outros longínquos, outros não dava pra ver. Voltou, deu boa noite e sem resposta foi para o quarto. Trinca passada, pijama tirado, ligou o som programado no CD do Colle Potter, pegou o cigarro escondido na gaveta, acendeu, ligou o computador e foi para a janela.
Talvez a hora mais gostosa do dia, o vento que batia na janela do quarto, gelava sua pele e a fazia sentir a fumaça invadindo os pulmões e saindo como o próprio pensamento. Olhava a escuridão pontualmente iluminada de tantas janelas e tantos lares sem se importar com sua pobre nudez.
Pluuup! O mesenger chamou alguém, ela foi. "OI Clá", "Olá Moço". Rodrigo era um amigo que pouco conhecia, um outro que não fazia nada no sábado à noite. Conversas bobas, vazias, nada que arrancasse um sorriso daqueles lábios petrificados. Saiu, deixou o moço só, deitou no puf ao pé da janela, mais um cigarro, o corpo relaxado. Recostou a mão sobre o peito, acariciou o busto com delicadeza. O piano no som ecoava no ambiente e seus dedos tímidos descobriram a umidade do colo. Em silêncio contorcido, mais um arfar se abafava no vento da rua. O corpo amoleceu estendido e logo se encolheu. As mãos antes fortes se voltaram para o rosto, o pranto desceu vertiginosamente, soluçante Clara adormeceu.
O dia nublou na pele de Clara, nublou no capô sujo dos carros, nublou nas sacolas de feira das senhoras, nublou no cigarro do taxista, nublou no topo dos edifícios, no cabelo das crianças. Nublou, e entretanto fazia um bonito sol. O vento fez com que ela acordasse para fechar a janela. Ela meio tonta levantou e fechou de um golpe só o vidro, apoiou a testa, varreu os prédios cinzas e viu bem de fronte, um andar acima, uma mulher de calcinha e sutiã na sacada, com uma xícara na mão e algumas bolachas Maria na outra. Olhava fixamente para o quarto de Clara, os olhos se encontraram, nenhuma das duas figuras desviava o olhar até que um homem de bermuda veio de dentro do apartamento colocando-se do lado da mulher. No mesmo instante o telefone tocou.
- Oi Clá! É o Rodrigo, eu to aqui na frente do seu prédio, preciso falar com você.
Clara colocou um conjunto de moletom, um chinelo e mesmo descabelada e com sono saiu. Todos estavam dormindo na casa, na ponta dos pés ela foi.
Rodrigo estava encostado no carro, eles se cumprimentaram, Clara já perguntando o que acontecera.
- Entra no carro, já te explico.
Eles entraram no carro, ela já com medo e ele muito nervoso.
- Clá, preciso da sua ajuda.
- Que foi? Que que aconteceu?
- Eu...eu – ele tremia – eu fiz uma cagada e não sei o que faço.
- Mas o que que você fez meu deus?
Fez-se uma pausa, ele estava muito tenso, olhou pra ela com os olhos vermelhos:
- Eu matei um cara Clá! Eu descumpri o trato, o grupo veio falar comigo, eles me ameaçaram, eu fiquei com medo, num sei, saí com tudo e passei por cima do Rômulo, agora eles tão atrás de mim, eu preciso de ajuda.
Ela nem respondeu na hora, ficou apenas confusa, não tinha a menor idéia que aquele sujeito meigo, que volta e meia conversava com ela na internet pudesse matar uma pessoa. E o que era esse grupo? O tal do Rômulo? Trato? As coisas estavam muito sombrias, incógnitas, não era possível naquele momento tirar nenhum tipo de conclusão palpável.
Durante um tempo o silêncio reinou no carro que andava devagar. Clara conteve o desespero, não conseguiu pensar em nada. Pelas conversas que tivera com o rapaz tinha a nítida impressão de ser um bom sujeito, carinhoso, inteligente e bem humorado. A situação ainda estava semi-exposta, algo muito grave acontecera e por algum motivo o peso do futuro do moço quase desconhecido caíra em suas mãos. Independente do caso ou qualquer veracidade apresentada, naquele instante ela era a pessoa que podia ajuda-lo. Sabe-se lá por que motivo ele a procurara, sabe-se lá porque motivo eles se conheceram, ou porque estavam vagando num carro velho, a única coisa que ela sabia era que havia de encontrar uma solução. Uma gostosa sensação de perigo tomou conta de Clara. Algo tão inesperado, alguém tão desconhecido, uma vida tão monótona.
- Vire a esquerda aqui – ela cortou o silêncio – tive uma idéia.
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