O fio de cabelo era seguro
entre o polegar e o indicador. Sua espessura poderia ser comparada com a perna
de uma formiga. E antes fosse uma formiga. A possibilidade dele se desprender
por conta própria e voar pela cidade era extremamente baixa, mesmo assim era
seguro com uma força desproporcional, a ponto de deixar as pontas dos dedos
brancas. Uma espécie de mimetismo multicolor em torno do branco. Fio branco,
dedos brancos, pontas dos dedos mais brancas. Existem tantos e infinitos
brancos a ponto de haver necessidade exígua para que se fossem inventadas todas
as palavras a fim de distinguir todos eles. O branco das pontas dos dedos era
muito, mas muito distinto do branco do fio de cabelo e ainda mais do branco das
nuvens no céu. Um tanto quanto róseo, âmbar cor de pele. A nuvem por sua vez
era quase prata, uma saliência perolada de luz semi artificial.
As nuvens de algodão que povoam
o céu no inverno não parecem reais. Tamanha é sua disformidade lógica que serve
às crianças de massinha de modelar da imaginação assumindo tantos quantos forem
os nomes dos mais diversos objetos, bichos e personagens. Das jarras aos
jacarés, dos aladins aos tubarões, castelos, cavalheiros e fadas. Tudo sem que
fosse importante a natureza das coisas, tão somente suas formas e a exatidão
com a qual se descreve. Rodeia este momento um estupor explosivo ao se olhar a
nuvem e perceber a coisa vista pelo amigo e até então oculta. E na percepção da
forma, há o instante incontido no qual os amigos se olham e é como se lessem o
pensamento um do outro e conversassem em silêncio por meio de uma ideia em
comum. Cúmplices de uma conclusão. Vibram. Depois disso, por longos minutos um
só conseguirá enxergar na nuvem a forma recém-descoberta. Até que surja uma
nova ou venha a noite trazendo às crianças e ideia do tempo. A nuvem, no
entanto, apesar de todas as formas assumidas, não mudou em nada. A quantidade
de nomes recebidos seria proporcional à imaginação daqueles que a olhassem.
Podia ser quase tudo sem mudar quase nada. E, ela lá em cima vista pela cidade
inteira mal sabia como sua existência se multiplicaria. No dia seguinte ninguém
se lembraria dela, mas guardariam quem sabe a cumplicidade do olhar amigo por
mais tantas e tantas nuvens. As nuvens não podem ser reais.
Do par de olhos cuja nuvem
figurava via-se o fio de cabelo seguro pelos dedos firmes. Ao olhar de perto
aquele fio, as nuvens se ofuscavam e tinham também a impressionante capacidade
de variar a cor do filamento. Posto diante do céu azul ele era branco. Mas de
um branco muito diferente do dedo e da nuvem. Um branco gelo caindo para o azul
eventualmente. Mas em um leve movimento sobrepondo-o à nuvem e ele se fazia
preto, escuro e ninguém com o mínimo de sanidade poderia dizer duvidar de sua
coloração. Assim, o fio de cabelo se descolou dos dedos sendo desmanchado pela
gravidade e arrastado pelo vento. Em milésimos de segundos os meus olhos não
conseguiam mais manter o foco. Ele era agora parte do sumidouro de coisas que
existem sem ninguém ver. Agora, imagino, pego por uma corrente súbita o fio elevava-se
em um balé invisível e singular. Insinuava-se alegre sobre os prédios de São
Paulo. Seu movimento visitou a Alameda Santos, os botecos de esquina, superou a
torre da renascer em altura assim como a torre da bandeirantes, luzida de rosa.
Dali ele via a Avenida paulista e a rua da consolação preenchidas de carros,
motos e ônibus. Massas em deslocamento. Pontinhos caminhando nas calçadas com
um ritmo parecido em uma forma de organização própria. Por vezes um ponto
ultrapassava o outro, mas adiante esperava os carros passassem para atravessar
a rua. Aqueles objetos compunham a pulsação da cidade. Se um pássaro passasse
pelo fio de cabelo flutuando sobre tudo talvez o veria rosa como a luz da torre.
Tomando-o pelo bico e levaria para o ninho entre uma fresta e outra da Dr
Arnaldo e do cemitério do Araçá. Suas propriedades físicas serviriam muito ao
animal. Sua resistência mecânica faria segurar a forma abaulada do ninho. Sua
estrutura faria aquecer os ovos e acolher a prole quando necessária. Ao pássaro
não interessava a cor do fio, ou o choro panegírico levado ao túmulo no qual
instalara sua residência. Já ao homem cujas células e DNA provinham aquele fio,
e talvez os ossos por debaixo dos mármores a cor era o sinal da velhice.
Os sinais da idade vinham, como
tantas outras coisas vinham com o tempo. Naquele momento, eu era um ponto na
rua, com medo de parecer velho frente aos outros pontos. Os olhos negros deste
ponto olhavam para a direção do ninho sem vê-lo. Naquele momento um pombo
alimentava seus filhos com os despojos de um gato apodrecido. Entre o ninho e eu,
um hospital. Dentro dele, em algum quarto estava internado um outro ponto, com
muitas mais linhas brancas na cabeça, cujo DNA era o mesmo que o meu. Naquele
momento aquele ponto no leito era um ponto com a memória em branco. Começava
não conhecer mais suas próprias estruturas biológicas. Meu pai estava lá,
internado e com Alzhaimer.
Estranho julho de 2004 no qual
não chovia em São Paulo os fios de cabelo branco insistiram em brotar em minha
cabeça. Nívea culpava o stress, mas diz apenas para afagar minhas preocupações
antes que eu adentre ao seleto grupo do grecin
2000. Aquele tempo seco trazia um mal humor persistente para minhas
caminhadas. Todos os dias eu saia do escritório, falava sempre as mesmas
palavras: “Thiago, eu vou lá”, deixava o estagiário para atender as demandas, e
caminhava da alameda santos até o hospital das clínicas. Meus passos já executavam
um movimento sincrônico e ensaiado de forma que minha mente escapava para
lugares remotos. Passava pelo parque trianon demorando mais para dar o próximo
passo. A grandeza daquelas árvores era tamanha a ponto de me conter. Sempre me
sentia diminuto sob aquelas copas centenárias. No cruzamento da Santos com a
Augusta por vezes eu esperava até três semáforos abrir para poder atravessar.
Minha estimativa sobre a quantidade de pessoas que passam naquele cruzamento
por minuto é da ordem de trezentas. Moças e moços de escritórios, bancos,
empresas cujas instalações adornavam a avenida paulista com um sem fim de
superfícies espelhadas. À tarde, quando o sol se vai, aqueles prédios todos amplificam
os raios laranjas tornando a avenida um túnel de luz. Era comum as pessoas se
trombarem por não terem se visto. Todos andavam com os olhos cerrados ou óculos
escuros. Naquele cruzamento aliás eu ficava mais para ver as meninas com suas
roupas sociais. Excitava-me. Aquelas camisas desabotoadas até a fresta do
soutien, algumas com suor nas axilas, marcando a camisa, e ainda assim havia
elegância. De saia, com salto, a desenvoltura de algumas impressionava-me. O
salto alto confere à musculatura da perna feminina uma notável perfeição
formosa. Pernas depiladas ora amostras ora com meias calças, e naqueles meses
quase sempre nuas. Suas unhas bem cuidadas e a delicadeza das mãos delgadas ao
arrumar o cabelo. Elas andavam e riam, gesticulavam, deixavam seu rastro. Eu
imaginava aqueles homens companheiros de trabalho se masturbando no banheiro da
empresa eventualmente, depois saindo com uma feição impávida. Mas havia um
detalhe imprescindível nos dias de calor além dos andrajos femininos, o
McDonalds da esquina. Lá, todo este pelotão da libido, tomava sorvetes. É
incrível como os lábios mudam sua forma na sucção da massa de baunilha e
instantaneamente os olhos se serram. A bochecha afina ressaltando os pômulos. Um
dia acabei ficando mais de quarenta minutos neste cruzamento sem dar conta do
tempo ou de meus compromissos.
Lá na frente, chegando à parte
alta da rua da consolação eu passava pelo bar do Vieira onde eventualmente estavam
pessoas conhecidas tomando suas cachaças para abrir o apetite. Quando eu
chegava antes do horário de visitas do HC, ia até um sebo na Teodoro, onde
havia cadeiras para sentar e ler livros. Com o tempo acabei indo
propositadamente mais cedo para este exercício diário. Na volta, fazia o mesmo
percurso e, embora fossem as mesmas ruas, o caminho, entretanto era sempre
diferente. Cada fato novo compunha a paisagem como uma série de recortes
fotográficos. Um tropeço, um assalto, uma lamborguine no Hotel Renaissance, um
mendigo comendo lixo, uma cigana analfabeta lendo mãos, um olhar farto de
intenção entre um casal, um homem tirando a calça do vão das nádegas, uma
mulher de bolsa a tiracolo e a saia suspensa mostrando seus glúteos e sua
calcinha fio dental. Eu poderia fazer aquele caminho até a morte do meu pai e
ainda acho provável ele nunca iria se repetir.
Aquele dia era o primeiro em
que eu havia restabelecido a rotina. Depois da alta do meu pai ele passou em
tempo na casa da Bernardete. Minha irmã enfermeira e separada do marido o que
lhe conferiu a tarefa de cuidar de papai. Mas depois do segundo AVC sua
situação de seu Antônio piorou e teve de voltar para o hospital. Lá descobriram
o Alzhaimer. Deve ter sido decorrência dos derrames, disse o médico, mas ele
certamente teria no futuro. Ainda no hospital teve o terceiro AVC e o sedaram
em tempo. Permaneceu na UTI por meses sem abrir os olhos. Quando recobrou os
sentidos já não tinha uma dimensão de quem era, muito menos dos outros.
Ninguém, seus filhos, netos, minha mãe, nada. Nenhum assopro de memória
repousava sobre ele. Embora falasse ainda. Quando estávamos lá, Bernardete,
Nívea e minha mãe ele tinha os olhos impregnados de susto. Assemelhava-se a uma
criança perdida. Suas retinas passeavam pela comodo, por nós de forma vivaz.
Pensei vendo aquela rosto estrangeiro em como devem ter sido aqueles meses em
sua cabeça. Apesar de sedado não teve uma morte cerebral, havia ali algo. Para
mim ele estava em uma colônia de férias cuja construção se deu ao longo dos
seus setenta e dois anos de existência. Lá não havia as obrigações familiares
que o chateavam, a falsa preocupação com os outros, os remédios de hipertensão.
Havia mulheres bonitas e maduras como minha mãe sempre foi aos os olhos dele.
Ele se divertia, tomava vinho com seus amigos e contava histórias e gargalhava
como deleite da recompensa por estar tão bem depois de diversos sofrimentos. E
ele sentava ao pé da soleira de uma casa colonial como na fazenda dos patrões
de sua mãe quando garoto. Ali ele admirava o horizonte de uma plantação,
acendia um cigarro de palha e cantarolava uma música de Edith Piaf com quem se
apaixonou a muitos anos. Antes de dormir fazia amor com Alva e no dia seguinte
fazia de manhã, estralava seu corpo e ia ver o rio. Nadava e quando boia na
correnteza calma seu corpo contém uma leveza aérea. Suspenso naquela massa translúcida,
ele olha o céu azul e sente sua alma esvaziar pensando em fazer algum bolo, de
cenoura talvez, para um café da tarde. Ouvindo o farfalhar da água no seu
ouvido submerso enxerga somente o céu. Então ele abre os olhos e encontra três
rostos desconhecidos e pesarosos olhando para ele em um quarto branco e
estéril. Eu me sentiria assim e desejaria voltar acima de tudo. Não foi
possível conversar com ele. Teríamos todos nós de recomeçar do zero. Fazer com
que ele nos conheça a partir dali e que ao menos possa carregar um afeto para o
resto de vida que lhe resta.
As visitas eram sucedidas por
uma caminhada mais arenosa. Meu medo incomum de perder a memória me acompanhava
pelos passos e, em um sentido reverso, eu tentava lembrar do máximo de eventos,
fatos, pessoas, sentimentos, aromas, formas, ideias, tudo. Ao passar na frente
do Vieira eu tentava lembrar todos os amigos do bar dali, de como os conheci,
seus gostos, o nome das namoradas e namorados que eventualmente me
apresentaram, irmãos, filhos, cachorros, cidade de origem, toda e qualquer
informação a mim passada entrava neste exercício. O resultado dele era
drástico. Algum nome me faltava e naquele momento se estabelecia uma batalha
interna para lembrar. Ensaiava sons de outras palavras para ver se lembrava,
por vezes voltava no caminho para me ambientar e tentar lembrar. Passava horas
me torturando e esquecia depois. Perder a memória para mim seria a pior coisa
para se acontecer com um ser humano em vida. Pior que as outras mazelas todas,
aids, câncer, tetraplegia, parkinson. A memória constrói a vida e sem ela não
somos nada. Todas as sensações e histórias do meu pai entrariam no limbo das
coisas de existência questionável. Somente ele teria a chave do baú para tirar
de lá segredos e fatos, mas ele perdera o baú e a chave. Já tem dois anos que
minha mãe relata alguns casos estranhos com ele. Começou a trocar os nomes dos
filhos. Mas aí, argumentei com minha mãe, eu faço isso em casa também. Mas ele
havia perdido o molho de chave da casa, posteriormente encontrado no congelador,
escondia dinheiro depois não lembrava o lugar acusando a empregada de tê-lo
roubado.
Por algum motivo desconhecido
quis voltar para o escritório pela Avenida Paulista. Talvez a maior quantidade
de pessoas, prédios, carros e uma via mais larga a ponto de se ter perspectiva
do horizonte me pudessem fazer bem diante da circunstância. A Alameda Santos
era mais arborizada, delgada e irregular, o que também guarda suas surpresas e
por isso vou por ela quase sempre, mas naquele dia era tortuoso pensar na perda
de meu pai. Tentei lembrar qual foi a última coisa que conversamos ou eu disse
a ele no hospital, antes do terceiro AVC. Seria a última lembrança de mim se
ele tivesse lembrança. Me incomodava pelo fato de não recordar, mas falávamos
assuntos banais, qualquer coisa sobre futebol ou notícias esparsas. Se eu
soubesse a sucessão de fatos a espera dele, teria preparado algo confortante e
certamente eu me lembraria do dia. Ele contudo, perderá o confortante e o
desconfortante, as datas sumirão como borboletas ariscas, os rostos tomarão
outras formas e a própria existência deve ser desconhecida. A fisiologia de um
corpo sofrido precisa ser acompanhada de uma memória. Ele pode se esquecer que
se agachar e levantar a labirintite descerá pelas têmporas fazendo-o tombar.
Pode esquecer de sua hemorroida e tentar ir ao banheiro descontroladamente.
Pode querer erguer algum objeto pesado sem saber a força que seu corpo é capaz
de suportar.
No farol da Paulista com a
Alameda Santos, enquanto olhava a igreja São Luiz, tentando uma inspiração
ecumênica, e uma oração tímida para meu pai e para mim avistei Mauro, que me
viu e acenou do outro lado. Mauro era dono de um restaurante Alameda Jaú e um dia
me ensinou a fazer uma pizza para uma reunião da empresa. Um italiano simpático
e fumante compulsivo. Como vai o meninão, me perguntou referindo-se ao meu
segundo filho. Respondi que o médico havia marcado o parto para o dia 26. Daqui
duas semanas, exclamou Mauro me dando um tapa forte no ombro. Já tem nome?
Continuou. A Nívea quer Lucas, eu não tenho objeção. Lucas Morgado, e enquanto
falava isso inclinava a cabeça para cima em uma exaltação, mais um tapa em meu
ombro. Mauro é uma pessoa honesta e determinada em seu trabalho. Mas com
inclinações preconceituosas tolas e isso acaba por afastar os outros. Sempre
que nos encontramos procuro fazer com que a conversa não permita encaminhar
para alguma possibilidade dele soltar seus impropérios contra bolivianos
imigrantes, ou piadas ácidas. Por fim, hoje nossos encontros são casuais. Não
vou mais ao restaurante dele, talvez por isso. Ou não.
Quando vi meus pés estavam
subindo a escadaria da igreja. Ela estava com as portas abertas e lá ao fundo
no altar, via-se da ruo, jesus cristo. Um pé direito enorme, de talvez trinta
metros e uma abóboda revestida de vitrais. A última vez que entrei em uma
igreja havia sido em 1998 no casamento do Jorge, colega de faculdade. Apesar do
silêncio litúrgico aquilo não trazia paz dentro de mim, ao contrário, me
causava calafrios e um desconforto sem explicação. Quando me vi lá dentro
olhando os detalhes arquitetônicos e o tipo de madeira usada nos bancos, percebi
que aquilo era uma visita a um museu, relíquias do passado em plena Avenida
Paulista. Minhas orações para santo expedito nada tinham a ver com aquelas
colunas de mármore. Minhas angústias também não. Minha fé no santinho me ajuda
muitas vezes. Mas devo à igreja, e mais ainda a minha vó, por ter me feito
descobrir um hábito que carrego comigo a mais de trinta anos. Igreja vem do
grego, ekklesía, uma assembleia, reunião e com o passar do tempo mais conhecida
como a casa de deus, mas por que quiseram que assim fosse. Esta foi a primeira
palavra pesquisada, quando eu tinha dez anos de idade e minha vó me forçava a
ir à missa. Relutava sempre e fugia. Um dia, sem a presença dela quis saber o
que era igreja, o que era aquilo a qual minha vó me queria colocar à força. Com
medo de perguntar, tive de buscar a resposta sozinho. Felizmente havia um
dicionário etimológico em casa, dado pelo meu vô por parte de mãe. E encontrei
o que se tornaria um hábito. Hoje, se meu filho de 7 anos já sabe encontrar na
internet os jogos dele. Pode encontrar tudo o que quiser, mas as palavras são
para ele meio de se chegar a algo, de se comunicar e de se entender. Para mim
elas são vivas, históricas, emergem do pensamento silencioso de uma pessoa
viram som, e entram no pensamento silencioso da outra de forma diferente da que
saiu. É dinâmico, vivo, e o português como língua miscigenada coloca pitadas de
latim, dialetos indígenas, africanos, árabes, saxões em um jogo de dicção
difícil para os estrangeiros. Volta e meia me pego selecionando palavras
bonitas das engraçadas mas pela sua sonoridade, carcaça, não pelo seu sentido.
Dentre as engraçadas estão a pleura, o jumento, brotoeja, argila, picadeiro,
croquete, bravata, gorfo, moléstia, joio, porca, xaxim, prostrar, bromélia,
árvore, hímen, trote, rojão, jacaré entre tantas que sempre ouço e repito
devagar pausando as sílabas e aquilo fica realmente muito estranho. Tento
imaginar qual foi o momento da história humana no qual alguém olhou para aquele
objeto ou sensação e emitiu um som para batizar com aquelas palavras. Existem
as bonitas, por qual razão possa ser, eu as ouço ou as falo e acho bonito:
pilar, beligerante, silhueta, aura, ventura, flora, potência, rejuvenescer,
asseio, cárcere, audaz, lábios, esperança e eclesiástico, que me veio na cabeça
naquele momento ao sair da eclésia e voltar para a rua. A última palavra
pesquisada foi “memória” (do clube das engraçadas, do latim, memoria, da raiz
memór (engraçadíssimo) recordação. Um dia, quem sabe eu repasse o caderno no qual
anoto todas elas e possa redefini-las tal qual existem hoje, mas para mim. Hoje
memória é consciência, vida e prisão.
Pensar sobre essa minha relação
com a fé alterou minha disposição em continuar na Paulista. Ela já não me
acolhia mais. Como fazem os viajantes ao chegar em um país desconhecido,
receosos e com fome procuram algo comum ou conhecido de onde veio para se
alimentar em surpresas, decidi, um quarteirão depois, voltar para a Alameda
Santos e sua calmaria habitual e familiar. Na frente do conjunto nacional fui
surpreendido com um fato intrigante. Dois dias atrás, ao passar ali, notei ao
pé de um canteiro de árvore um lápis colorido, provavelmente de alguma aluna de
nove anos de algum colégio próximo. Detalhes floridos adornavam a estrutura de
madeira em tons púrpuras. Um detalhe a mais na paisagem da calçada. Algo que
talvez eu me esquecesse no instante em que meus olhos não mais olhassem. E,
caminhando por ali novamente me deparo com o mesmo lápis, no exato lugar no
qual repousava DOIS dias atrás. Dois dia na vida de um lápis na calçada é tempo
demais. O lápis heroico enfrentou as tempestades e as enxurradas, as vassouras
dos garis, a curiosidade das crianças os focinhos dos cachorros e eventualmente
suas urinas ácidas. Eu o notei em uma distância de pelo menos dez metros quando
vi um ponto rosa no chão. Ao seu lado, olhei em volta e sutilmente lhe apliquei
um toque com a ponta do pé a fim de ver se ele estava grudado, como algumas
crianças gostavam de fazer com moedas para se divertirem com a esperança
alheia. Mas o lápis esta solto e leve como é de sua condição cilíndrica. Pensei
em pegá-lo mas percebi que aquilo era exatamente a graça da vida, os mistérios
insolúveis a puxar nossa consciência para um gesto de simpatia com o
sobrenatural, com deus. Uma saliência na cidade inexplicável pelo improvável.
Engraçado como parametrizamos a realidade a ponto de nos surpreender com um
fato destes. Só ela em dois momentos, mas a distância de tempo entre estes dois
momentos fez com que eu imaginasse a batalha hercúlia daquele toco de madeira
colorido. Não por ter visto, mas por ter imaginado. Poderia eventualmente
aquele quarteirão ter sido interditado, o tempo parado ou as pessoas todas
curiosas com uma outra coisa em outra direção cuja atenção livrava o lápis.
Tudo podia, mas era pouco provável. Meu espanto constituía-se da ideia do que
acontece eu desconheço. Resolvi deixar o lápis e passar ali no próximo dia de
visitas para me certificar do andamento normal das regras do mundo. Quando
alcancei a outra esquina meu celular tocou. Uma voz doce e feminina sussurrava
do outro lado da linha perguntando por mim. Sim, sou eu, disse, e voz em um tom
exitante e contente me disse. Sua mulher está aqui no Sírio Libanês, ela sofreu
uma queda e entrou em trabalho de parto.
Eu estava no conjunto nacional,
por sorte o hospital estava ali perto. Saí correndo e enquanto atravessava a
paulista me dei conta da sorte da Nívea em trabalhar no hospital. Descendo a
Frei Caneca a trotes pensei também no azar de ela cair, tentei imaginar as
circunstâncias, mas pouco ou quase nada se fez na minha mente cuja função era
processar o som da sola do me sapato se chocando com o chão, controlar minhas
coxas brancas e flácidas que sacudiam a cada impacto, calcular os desvios
forçados pelas senhoras no bazar da igreja rosa. Quando virei a esquina e
comecei a descer a barata ribeiro e irrompi na recepção a moça me reconheceu e
eu entendi de quem era a voz sensual e jocosa. Era de Elaine, amiga de Nívea,
que passou o ano novo conosco em Ilha grande. Que dançou comigo no apagar das
luzes, que bebeu comigo depois das três da manhã do primeiro dia, que me deixou
enlouquecido de vontade de possuí-la e que só não teve seus lábios e corpo
beijados por uma força descomunal e repressora dentro de mim e por uma criança
de dois meses e meio dentro da minha mulher, que naquele momento dormia. Meu
filho, expelido da mãe em algum lugar daquele hospital. Elaine tinha um riso
repleto de prazer naqueles mesmos lábios. Talvez feliz de me ver desesperado,
suado e desprotegido. Talvez feliz pela queda de minha mulher. Talvez as duas
coisas ou nenhuma delas. Subi para a maternidade e ao chegar encontrei Marcos
já saindo da sala. Só nos olhamos e ele disse: deu tudo certo, mas ela está
sedada continuei e vi, por entre a antessala de vidro a criaturazinha enrugada
e chorona mamando em um corpo apagado. Meu segundo filho, roxo como quem vem
antes da hora, mas perspicaz e ágil. Ela caiu da escada. Me disse Marcos,
médico e também conhecido. Tentei saber como, ninguém sabe, disse ele. A outra
enfermeira a encontro desacordada e não tínhamos o que fazer. Mas eles vão
ficar bem. Naquele momento vendo a cabeça dela enfaixada perguntei o que houve.
Um trauma disse o médico, vamos fazer uma ressonância depois para ver se houve
algum dano, mas acredito que não. Uma pergunta emergiu da minha boca sem ser
pensada antes. Ela pode perder a memória? O médico levantou as sobrancelhas, inclinando
o pescoço e torcendo a boca em um gesto de dúvida e ali, minutos depois de ver
a alma do meu pai se apagar, ver a alma do meu filho se acender e olhar minha
mulher eu não sabia de qual lugar vinham minhas lágrimas.