"Temos sempre de defender os fortes contra os fracos".
Friedrich Nietzsche
- Olha só as estrelas, Nice. Como são bonitas. Lá no interior, quando eu era menino, tinha um monte delas, cada vez que a gente levantava a cabeça se perdia no clarão da noite. A gente ficava tentando ver os desenhos e ligava os pontos que nem naquela brincadeira de criança. Mas, no fim, todo mundo se perdia nos próprios pontos que traçavam. Agora parece tão pouco no céu de São Paulo, cidade grande tem disso.
- É, parece até que a gente é que nem as estrelas! – silêncio - Eu nunca brinquei disso não. Sempre morei aqui, e é difícil eu olhar pro céu, só quando chove.
Mário e Berenice estavam deitados no piso superior da praça Roosevelt numa noite fria de céu limpo. Algumas estrelas salpicavam em meio a prédios altos e sem vida. Mário adorava fazer isso, não fazia questão de preservar suas vestes. Para ele as estrelas eram as coisas mais bonitas que podiam existir. Berenice aprendeu a admirar as estrelas nos olhos negros dele. O brilho era igual, mas a ela parecia mais quente, mais real, menos distante. Uma sensação que ela não sabia muito bem definir, mas a deixava com os dentes à mostra. Era difícil ela sorrir, somente aquele homem que conhecera em situação tão adversa possuía esta “coisa”.
Assim que o relógio da aurora marcasse uma noite de céu claro e seus afazeres permitissem, ambos caminhavam vagarosamente de mãos dadas até a praça Roosevelt e deitavam no piso superior para olharem as estrelas e conversar um pouco, exercício tão raro em suas rotinas.
- Você deve estar cansada de ouvir, mas eu gosto muito desse seu sorriso!
- Brigada. Eu gosto quando você fala. É bonito, você sabe um monte de palavras.
- Mas que graça tem saber um monte de palavras se não tem ninguém pra falar, e você me ouve.
- Olha só, eu fico toda coisada quando você fala essas coisas. Você tem estudo, fez faculdade, será que se eu fizer também vou falar bonito?
- Que nada, pra mim você já fala bonito. Essa coisa de faculdade é só pra separar as pessoas...cada um fica achando que sabe alguma coisa...pra poder trabalhar....e tudo mais....e no fundo a gente é que está bem, olha só o tamanho da nossa casa, tem mais luz que o teatro municipal.
- Não é que é verdade...gostei.
- Tem gente que chama isso de felicidade, Nice. Eu nunca parei pra pensar nesse assunto. Deve ser verdade.
- Eu também acho.
Os diálogos não se estendiam muito além disso. Eles costumavam olhar, olhar, olhar, apontar, bebericar uma cachaça e sorrir. Se sentiam realizados, cada qual a sua maneira. Depois eles desciam novamente de mão dadas, passavam por entre bares pipocados de pessoas sorridentes discutindo teatro, música e política. Quando eles passavam, fazia-se um silêncio. Alguns disfarçavam, outros prendiam a respiração para não sentir o cheiro de uréia, a maioria olhava rapidamente e desviava o olhar, algumas moças seguravam a bolsa discretamente, outros simplesmente não viam.
- Nice.
- Oi.
- Sabia que tem um monte de gente aqui que é feliz e tem um monte de gente aqui que chora de noite no quarto?
- Aí grande, tó uma força pra você – uma mão estendeu uma moeda de um real.
- Brigado...brigado – respondia Mário com a palma da mão brilhosa.
- É – começou Berenice - e tem um monte de gente que nem pensa nisso não, chega em casa e dorme de bêbado.
- Não é que é verdade...gostei.
- Tem gente que chama isso de felicidade, Nice. Eu nunca parei pra pensar nesse assunto. Deve ser verdade.
- Eu também acho.
Os diálogos não se estendiam muito além disso. Eles costumavam olhar, olhar, olhar, apontar, bebericar uma cachaça e sorrir. Se sentiam realizados, cada qual a sua maneira. Depois eles desciam novamente de mão dadas, passavam por entre bares pipocados de pessoas sorridentes discutindo teatro, música e política. Quando eles passavam, fazia-se um silêncio. Alguns disfarçavam, outros prendiam a respiração para não sentir o cheiro de uréia, a maioria olhava rapidamente e desviava o olhar, algumas moças seguravam a bolsa discretamente, outros simplesmente não viam.
- Nice.
- Oi.
- Sabia que tem um monte de gente aqui que é feliz e tem um monte de gente aqui que chora de noite no quarto?
- Aí grande, tó uma força pra você – uma mão estendeu uma moeda de um real.
- Brigado...brigado – respondia Mário com a palma da mão brilhosa.
- É – começou Berenice - e tem um monte de gente que nem pensa nisso não, chega em casa e dorme de bêbado.
Os dois não, continuavam indo, com a serenidade e a satisfação de quem acabara de descobrir no céu um mundo fantástico e maravilhoso. Quatro pés cascudos trocavam sujeira com o chão, um pedaço descolado da calça se arrastava no traço dos dois, blusas duras e manchadas requebravam lentamente, cabelos emaranhados e com pedaços de folhas iam pendulando, as mãos grossas pareciam veludos quando atadas, colunas arquejadas, cabisbaixos eles sorriam por dentro, com faces duras, deitavam embaixo do minhocão entre uma carroça e uma parede pixada e se amavam, compartilhando cascas, fedores e lendias, se amavam. Sem juras, sem gemidos, sem medo e sem preocupações.
4 comentários:
Bonito e trágico ao mesmo tempo.
A felicidade no simples é bela.
O trágico está naqueles que ficam pipocando nos bares, discutindo, sem prestar atenção nas estrelas ou em qualquer outra coisa simples e bela, e terminam a noite chorando em seus quartos, longe da Praça e do Minhocão, sozinhos, preocupados e com medo.
Acho legal quando a imagem que se faz no começo do texto é totalmente alterada depois. Eu não imaginava ali os quatro pés descalços, nem a roupa suja mesmo antes de deitar na Roosevelt, as mesmas estrelas dando traçados diferentes...
É meu caro amigo muito bom esse seu texto, é a felicidade esta nas coisas mais simples possivel e nem td mundo vê isso por pensar q sabe mais do q o outro sem o conhece-lo....
Vitinho simplesmente gostei de todos os pensamentos dos personagens e a reflexão que faz é ótima. Grande abraço pra vc viu!
Bonito, parece um conto de fadas!
O des prender pode existir na rua... mas acredito que possa existir também em um castelo.
bj
Ré
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