Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

30 de julho de 2007

A magia Clara (VI) - Um centímetro

Não era um dia comum, era o dia do porquê, dia dos olhares desencontrados, dia da palavra curta, dia da lágrima espontânea, dia dos carros na rodovia, dia de Clara. Depois de uma longa e turbulenta noite, os corpos exaustos descansaram feito céu. Entretanto o céu não descansou, sua perenidade estúpida fez com mais um dia surgisse para quem não o desejava. Os olhos de clara gemiam, oravam a prece sôfrega do horizonte distante. O cobertor amassado trazia a tormenta lucidez da morte ocorrida. Como por um pacto oculto, não se falou de Dudu. Depois do longo banho, Clara sentou na cama suja do hotel, perdeu a vista nas costas despidas de Rodrigo que estava na janela. Ele virou, Clara retornou ao mundo:
- É melhor você voltar para sua casa, eu já te trouxe muitos problemas – falou de forma ensaiada e direta.
Clara não respondeu, manteve o corpo estático.
- Eu te coloquei numa roubada e não quero que te aconteça nenhum mal, sou um fugitivo e não sei o que vai ser de mim daqui pra frente. Você tem que voltar.
Alguns segundos depois:
- Agente vai pra cidade, vende o carro e vamos de ônibus até o Mato Grosso do Sul, lá tem uma amiga minha que é dona de um restaurante. Eu peço para que você trabalhe lá, você passa um tempo com uma vida diferente, depois vê o que faz.
- Você não está entendendo, é arriscado pra você ficar andando comigo.
- Tudo é arriscado Rodrigo, é arriscado eu ficar em casa, é arriscado eu andar na rua, é arriscado viver. Você acha que estaria aqui se tivesse medo de correr riscos
- Você e eu temos uma vida pela frente, não acho certo se meta com um perdido que nem eu. Você tem uma família que gosta de você, tem estudos, tem grana.
- E eu vou ficar em casa, levando a vida que eu levo e esperando uma visita surpresa do tempo pra me matar.
- Não, mas você pode se dar mal, eu não quero isso. E depois que eu conseguir esse emprego que você falou, o que você vai fazer?
- Sei lá! Vou sair por aí.
- Você é muito sonhadora
- Isso é ruim?
- É!
- Porque?
- A vida não é assim Clara.
- E o que ela é então? Me responde – o choro subiu, a voz também – você acha que a vida é previsível? Você pode até prever pra quem você dá as cartas numa partida e quem dá as suas cartas?
Silêncio.
- Eu estava em casa anteontem e matei meu primo e você me diz que voltar pra casa é a melhor coisa a ser feita. E isso que aconteceu, eu esqueço? Fácil né?
Rodrigo manteve se em silêncio, respeitou o transtorno de Clara, se aproximou, deu-lhe um abraço, sentiu o angustiante soluço dela até que este se acalmasse, curvou as costas, pôs-se à frente dela, a mão subiu até o pescoço, o olhar penetrou a alma;
- Eu gosto de você, será que é difícil você entender que eu quero seu bem, por mais que eu queira que seu bem fosse do meu lado sei que não é.
O rosto de Clara assumiu uma feição séria e surpresa, a cabeça esvaiu. Ela se aproximou lentamente com o olhar fixo, transcendeu com a boca a um centímetro da dele. Ele venceu a distância e a languidez do beijo que se deu fez atar seus corpos.
A cama acolheu o longo beijo, o calor dos corpos se despindo demoradamente e o suor calado dos dois. Certamente este fora o ápice de sua longa existência e experiência. Quando Clara acendeu um cigarro a cama também o fumou. Abriu suas fibras e sentiu fluir a essência daquela fumaça. Clara olhava a brasa do cigarro. Rodrigo admirava a fumaça saindo de sua boca. Depois de um tempo juntos em comunhão de pensamentos Clara olhou para ele:
- Temos que ir.
Ele consentiu. Levantaram e foram se banhar.
Arrumaram as coisas, desceram, pagaram a conta e rumaram para o estacionamento. Quando chegaram no carro Rodrigo imediatamente viu a porta do porta-malas arrombada e encostada. Seu coração deu um salto. Clara estava olhando para o outro lado e não percebeu o desespero dele. Rodrigo abriu a porta e o que ele temia tinha se confirmado.
- Puta que o pariu!! – não se conteve
- Que foi Rodrigo – Clara perguntou depois do susto
Ele virou para ela, estendeu a mão indicando o porta-malas. Ela se aproximou e viu, ou melhor não viu. Não havia nada lá...o dinheiro fora roubado. Nada do que estava dentro do carro tinha sido levado, apenas o dinheiro. Pavor, foi o que Rodrigo sentiu. Clara ficou paralisada.
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Continua - Penúltimo capítulo semana que vem

24 de julho de 2007

A magia Clara (V) - Co-incidências


Não há saída!! A terra é fim de tudo! Dizia o vô de Clara desde que ela era pequena. As palavras martelavam em sua cabeça enquanto o caixão cumpria a frase e seu avô era regado pela terra úmida. Curiosamente o padre orava na lápide. Clara nunca fora cética como o vô, se perguntava em momentos de escuridão no quarto, se aquele vazio imperador não significava algo, se aquilo tinha sentido. Clara acreditava no destino, na morte pré-determinada e que cada pessoa tinha sua hora e vez. Acreditava que o destino lhe faria conhecer uma pessoa maravilhosa e que talvez pudesse ser feliz com ela por um tempo. Acreditava..... a solidão, o desalento, as desilusões de sua vida e as suas perdas enterraram o vislumbre. Clara se tornou uma pessoa mais astuta, mais pensativa, mais quieta, reservada e sensível. Passou a encarar a morte com uma certa naturalidade casual. Mas o caso era outro, um corpo jazia em sua frente e pela força de seu dedo no gatilho. O rosto branco tingido do corpo com os olhos arregalados fez Clara entrar em choque...nada, não saia mais nenhuma palavra de sua boca. O que Rodrigo pôde ver quando se recuperou da surra foi Clara com os olhos fixos nos de Dudu, encostada na laleira, braços em volta das pernas e uma corredeira fina e constante dos dois globos. Rodrigo tinha o olho inchado e a sobrancelha cortada. Acompanhou a cena de outro ângulo, viu a bala rasgar o peito da figura escura e romper sangue. O corpo caiu para o lado. Rodrigo estava agora se arrastando em direção a Clara. Ele se pôs do seu lado, ela não movia um músculo. Rodrigo passou os braços em volta dela, encostou o rosto sujo em seu ombro e observou aquele rosto:
Não é possível!!!! Eduardo!!!! – o susto foi enorme.
Clara virou o pescoço e com mesmo olhar distante fitou Rodrigo. Um encontro de olhos confusos, de sentimentos misturados. Aquele rapaz conhecia o primo dela, com o qual passou grande parte da infância. Talvez o acaso desse conta de confortar Clara.... não naquele momento. Sem esboçar nenhuma reação, Rodrigo ajudou Clara a se erguer, foram até a cozinha. Ele serviu dois copos d’água, beberam em silêncio. Passou-se alguns minutos até que o choro cessasse e a lucidez voltasse:
- Você conhecia meu primo da onde? A primeira voz depois de um bom tempo.
- Ele foi segurança de uma casa lá em Campos, eu ia direto, acabei ficando amigo dele.
Clara não respondeu, qualquer explicação lógica faria sentido naquele momento. Continuou com olhar fixo no lampião.
- Ele me falava muito de você, antes até de nos conhecermos naquela festa. Na verdade eu não era tão amigo do Carlos quando fui ao aniversário dele. Fui porque o Eduardo disse que eu deveria te conhecer. Sabe, eu me encantei por você naquelas descrições...eu estava saindo de uma deprê...sei lá pensei acho que vou nessa festa.
Mais uma vez Clara não disse nada, entretanto a configuração que as coisas tomaram formas era de uma coincidência muito grande. Clara estava mais do que transtornada, estava cansada, confusa e ao mesmo tempo admirava a ternura daquele rapaz despejando confissões sem necessidade.
- Ele era um cara muito gente boa! –Murmurou ainda Rodrigo
Qualquer vento faria a pedra do pranto rolar de novo ladeira abaixo. Clara umedeceu os olhos, conteve o choro com força.
- Que que agente vai fazer agora? – Perguntou Rodrigo – agente precisa dá um jeito.
- Precisamos sair daqui - Resposta seca.
- Mas para onde?
- Não sei, um hotel na beira da estrada, depois agente vê o que faz, aqui não têm condições de ficar.
Fez-se um silêncio:
- E o que fazemos com ele? – perguntou Rodrigo indicando com o nariz o corpo no chão.
Clara olhou para traz, viu o corpo, não respondeu.
Rodrigo a segurou pelo braço e foram para o carro. Ele abriu a porta do passageiro, ela entrou:
- Fique aqui, vou arrumar as coisas e já volto.
Ela permaneceu no banco do passageiro, enquanto ele carregava as coisas de volta no carro. Bateu pela última vez o porta malas, debruçou-se na janela, ameaçou abrir a porta, parou, olhou para a casa: “já volto”. Clara o viu se afastando, entrando na casa e logo depois saindo com as mãos no punho do corpo, arrastando ele para o canavial. Clara acompanhou o movimento pelos espelhos do carro. Ele largou o corpo de Dudu no meio do mato, fechou a porta da casa, entrou no carro, ligou e arrancou.
Foram até o primeiro motel da estrada, entraram e a força do cansaço venceu o transtorno das cabeças. Dormiram em silencio.
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Continua - penúltima parte terça-feira.

17 de julho de 2007

A magia Clara (IV) - O Rumo do bote

Os passos vinham da varanda, o assoalho rangia bem devagar. A parede de madeira era o que dividia Clara do alguém que estivesse lá fora. Ela se encolheu segurando o cobertor. Sabia que não tinham encontrado ninguém no caminho, tão pouco na casa. Estavam a mais de meia hora de qualquer casa ou presença humana, se alguém tivesse chegado com certeza ouviriam, a menos que este tenha vindo a pé pela estrada ou pelo canavial da divisa. Sutilmente Clara se esgueirou e bateu no pé de Rodrigo, este envolvido na escuridão da enorme sala mal pode ver o rosto de Clara com o dedo indicador na boca pedindo silêncio. Ele a olhou, ergueu o tronco e pode ouvir os passos lá fora. Ela o olhou sem saber o que fazer, tomada pelo medo segurou seu braço. Sem fazer barulho Rodrigo caminhou em direção a porta, ao lado dela jazia um arpão enferrujado com fisgas afiadas. Antes de pegá-lo viu a cartucheira antiga na parede. Não sabia se funcionava, muito provavelmente não, ele a pegou, manteve ereta no centro do peito segura pela mão direita e com a esquerda deu uma leve erguida na cortina tentando ver alguma coisa. Clara, encolhida ao pé da lareira, viu a metade do rosto austero de Rodrigo observando a varanda. Um vulto negro caminhava a passos lentos com a mão na parede da casa. Pelo porte físico era um homem, alto e forte, jaqueta e botas.
- Quem está aí? – falou Rodrigo com o olhar fixo na silhueta.
O homem do lado de fora parou de repente. Um bumbo soava no peito de Rodrigo, ele tremia para segurar a arma. O silêncio foi a pior das respostas, nada audível vinha do lado de fora naquele momento.
- Quem está aí? – repetiu – Eu estou armado, quem é você?
Nada, a figura não respondeu. Começou a se afastar a passos largos. Sumiu do campo de visão de Rodrigo e calou os passos. O vácuo existente entre a varanda e sala fazia pulsar nas veias os corações aflitos dos jovens. Nada, nem sinal do ser que rondava a casa. Tinha ido embora, a conclusão era bem vinda. Rodrigo relaxou os punhos da arma e caminhou na direção de Clara:
- Esta tudo bem! – afirmou com medo – Ok, ok já foi, devia ser um louco andarilho – falou agachando, dando um abraço em Clara e segurando com a mão livre seu pescoço.
Permaneceram abraçados até que se acalmassem as respirações. Rodrigo a deitou no chão, buscou o travesseiro, colocou em baixo da cabeça e a recostou ternamente. Passou a mão em seu rosto e viu Clara buscando no fundo dos seus olhos o conforto da nudez despreocupada na sacada. Se aproximaram, olhares fixos, trocas de medo, invasão de sentimento... cumplicidade.
Boom... num golpe só a porta foi arrombada, do canto da sala Clara e Rodrigo puderam ver a forma viril do homem parar, olhar, avistar e com os braços arquejados firmar o primeiro passo em direção a eles. Rodrigo se virou deixando Clara atrás dele. A figura grande deu passos decididos e rápidos em direção aos dois. Sem nenhuma reação, Rodrigo foi atingido por um chute no rosto, rolou de lado atordoado. A figura estava obstinada, foi até ele e começou a esmurra-lo com grande raiva. Ele tentava se defender da melhor maneira. Clara, imobilizada pelo medo, avistou a cartucheira no pé do algoz, não viu...foi. Os socos bramiam do rosto de Rodrigo, o sangue na penumbra era negro. Clara pegou a arma, foi ao gatilho....Pá!!! o estampido ecoou pela sala, pelos cabelos, pelo corpo, saiu pela porta remoendo os canaviais. A coruja levantou vôo e foi para o escuro. O barulho seco do corpo caído no assoalho da casa fez Clara com os olhos esbugalhados, úmidos e vermelhos levar a mão na boca. O corpo descansou ao lado do tapete de onça. Dois entes unidos pela agudez do mesmo gatilho e deitados no mesmo lugar. A cabeça boquiaberta da figura se mostrou na fresta de luz aos olhos de Clara. Ela em choque, tremendo e soluçando viu um rosto assustador, um rosto fúnebre, um rosto dominado, um rosto suave, um rosto calmo, um rosto conhecido...o rosto de Dudu.
- Nããão...- o grito de Clara rasgou o vento, o céu e as estrelas.
Dudu pegara, pelos punhos da moça que ria com a boca para o céu, o rumo a seguir eternamente no bote.
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continua

9 de julho de 2007

A magia Clara (III) - Estrada para o passado

O vento erguia levemente os cabelos de Clara. Os canaviais se estendiam no horizonte e dançavam como ondas refletindo o sol daquele domingo. Conforme o carro avançava na estrada, as canas passavam tão rápido que os olhos não podiam acompanhar. Clara semi-cerrou os olhos e sentiu a brisa. Um brilho diferente acendera seus pensamentos e a invadira. Ela se viu vislumbrando o passado. Sentiu-se de novo no bote descendo o riacho calmo que ficava do outro lado das pedras tortas, depois do morro, quase divisa com a fazenda Damião. Os dedos tateando a superfície turva e gélida da água tentando pegá-la. Com a mão em concha ela olhava aquela poça e ficava intrigada, tentando pensar porque a água no rio era escura e na mão era transparente, nunca chegava a conclusão nenhuma, mas sempre achava mágico tirar a cor da água apenas com a mão. Então se cansava de olhar e jogava arteiramente o líquido nas costas de Dudu, o primo da roça que guiava o bote. Ria com os dentes para o céu da irritação comedida do moço. Clara deu um leve riso com a memória e aumentou o Jetrho Tull no som do carro. Ela estava novamente no bote, o bote do tempo. Rumando para um deságüe longínquo e desconhecido, depois de amassar e jogar para cima sua antiga rotina, sem sequer pegar os documentos em casa e apenas com uma sacola de roupas recém comprada. Colocara uma outra vida no bote ou estava de carona no bote de Rodrigo, quem sabe. O que Clara sabia era que estava indo ao encontro de suas lembranças. A fazenda do avô era um ótimo lugar para passarem uma semana em sigilo e abaixarem a poeira. Ademais, após a morte dele, ela estava vazia, com os pobres cuidados do caseiro, seu Ademar, pai de Dudu. Até lá, a estrada era o trilho e o vento o combustível das divagações.
- O que você pretendia fazer com o dinheiro quando pensou no golpe? Perguntou Clara sem tirar o rosto da janela.
- Eu ia pagar as dívidas minhas e do meu velho como casa, carro...essas coisas, e com o restante ia para Las Vegas, ou Punta, ou Bahamas, um lugar que eu não tinha decidido ainda para fazer carreira no jogo – respondeu sem tirar os olhos da estrada.
- Como assim “fazer carreira”?
- É...ser um jogador bem sucedido, viver disso, ter uma boa casa...cachorros e por aí vai...afinal é a única coisa que eu sei fazer.
- E agora, você ainda tem esses planos?
- Não sei, acho que sim, mas preciso fugir primeiro...em breve vão dar um jeito de encontrar a casa do meu pai, preciso avisa-lo.
- E eu preciso ligar para casa, pra despistar minha família, senão a primeira coisa que vão ver é se eu fui para a fazenda do meu vô.
- Tem um posto logo ali.
O posto era daqueles modernos que reinavam no meio do nada. Eles pegaram algumas coisas para comer, uma cerveja, Rodrigo ligou para o pai e deu o cartão a Clara para que fizesse o mesmo. Ela ligou...ninguém atendeu...secretária eletrônica: “Alô, mãe...eh...mãe, eu vou passar um tempo fora com uns amigos, estamos indo lá pro nordeste, não sei quando eu volto..mas eu to bem, desculpe não ter avisado..eu num tava me sentindo muito feliz em casa...de qualquer forma é isso..tchal tchal..beijo”. Desligou o telefone, tirou o cartão e foi em direção a Rodrigo, que estava no banco, olhando o horizonte e tomando uma cerveja. Ela sentou-se do seu lado, sem desfazer o silêncio que pairava, ele estendeu a latinha a ela mantendo o olhar fixo e pensamento distante. Ela que não era muito de beber cerveja, bebeu despreocupada. Eles se levantaram e seguiram viagem.
Já tinham avançado muito na noite quando a primeira placa mostrou: “Pontaporã – a 34km”. Estavam próximos, pois na verdade a fazenda ficava um pouco antes da cidade.
- Entre ali – Clara apontou para uma saída de terra batida do lado direito.
Entraram na estradinha e andaram um bom tempo cercados pelas arvores que pareciam estreitar o caminho. O mato estava dominando a estrada, a impressão é que fazia tempo que ninguém andava por lá. Enfim chagaram na porteira e a suspeita se confirmou, quando o farol do carro iluminou a entrada, puderam ver a trinca enferrujada e a placa da propriedade caída. A casa do caseiro estava aparentemente sem ninguém. Clara tirou a trinca, esperou o carro passar, fechou e foram até a casa. De longe Rodrigo já pôde ver, erguendo-se imponente no breu o casarão antigo, também sem nenhuma iluminação. Pararam em frente...era verdadeiramente grande aquilo tudo. Clara desceu e Rodrigo seguiu em seu encalço, pegou a lanterna no porta mala:
- Parece que ninguém vem aqui desde que meu vô morreu! – disse Clara com um pouco de medo – até a casa do caseiro está abandonada.
- Pelo menos podemos ficar tranqüilos por aqui – falou Rodrigo iluminando de pé a pé a extensão da fachada.
- Eu não teria tanta certeza – exclamou Clara para ela, sem que Rodrigo pudesse ouvi-la.
A porta estava aberta, eles entraram. Havia muita poeira, e os móveis estavam todos no mesmo lugar, sem nenhuma alteração, senão a do tempo, a toalha estava na mesa de jantar ainda com algumas velas derretidas nos castiçais. Na cozinha, havia panelas no fogão a lenha. Rodrigo achava tudo aquilo bonito e assustador:
- Aqui – disse Clara apontando para uma porta – vamos pegar os lampiões lá no porão.
Eles desceram, passando por muitas coisas velhas, peças de máquina, ferramentas, quadros, móveis velhos e na prateleira do fundo estavam cinco lampiões a óleo. Eles os pegaram, foram até a cozinha, acenderam e colocaram distribuídos pela sala. Quando os lampiões iluminaram toda a sala, Rodrigo pode ter uma noção do tamanho do cômodo, era extremamente alto, forro de madeira, um tapete de onça em frente a lareira, parecia coisa de filme, algumas armas antigas penduradas na parede e até uma jaguatirica empalhada que mesmo morta, brilhava os olhos quando a lanterna os varria. Eles pegaram tudo que tinha para pegar no carro, trouxeram para a sala e já ajeitaram as camas para dormir. Embora houvesse muitos dormitórios na casa, preferiram dormir na sala...havia bastante espaço. Comeram, beberam e ficaram conversando a respeito da casa. Rodrigo estava exausto e caiu no sono rapidamente. Clara ficou ali olhando a carranca do outro lado da sala, acendeu um cigarro, levantou e apagou os lampiões. Ficou em silêncio, pensando nas coisas que ocorreram, na sua fuga, na história louca daquele rapaz, na sua própria superação em sair sem medo...era muito para ela pensar no fim do dia, também estava demasiadamente cansada. Apagou o cigarro, deitou e, antes de fechar os olhos ouviu o ranger vagaroso de passos no assoalho...seu coração disparou.
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continua na página acima

3 de julho de 2007

A magia Clara (II) - O Golpe

Rodrigo deu uma mordida grande e nervosa no X-bacon, mastigou com as buchechas cheias, deu uma sugada na coca-cola, e engoliu de uma vez só. Estavam numa lanchonete perto da Teodoro Sampaio, um lugar sujo com mesas de lata enferrujadas e um cheiro de café mal passado do domingo de manhã. Clara pediu um suco e tomava pausadamente enquanto ouvia Rodrigo elucidar a situação.
O moço era integrante de um grupo de ladrões que promoviam jogos de pocker. Ele era talvez o croopie mais habilidoso que já participara do grupo, conseguia sem o menor esforço colocar três ais na mão de qualquer pessoa da mesa. O restante do grupo era composto por mais seis pessoas: Joe, o mais influente de todos, oriental bem sucedido dono da mansão em campos do Jordão onde os jogos aconteciam e freqüentador dos mais luxuosos jantares da nata paulistana ao lado de sua pseudo-esposa Jaqueline, uma deslumbrante mestiça de sorriso acanhado e poucas palavras; Rubens, o jogador oficial, fazia-se passar por um herdeiro milionário de um carpinteiro que desenvolvera uma peça chamada cachimbo, responsável por aumentar o rendimento de uma locomotiva em quinze por cento. A patente deste cachimbo rendeu, segundo a história, uma vida muito confortável ao jovem rapaz de trinta e cinco anos. Além disso, colaboravam para o desempenho da equipe Judite, a garçonete, William o jogador isca, e Rômulo, policial civil do departamento de investigação responsável pela tranqüilidade da ação.
O processo funcionava da seguinte maneira, Joe e sua pseudo-esposa, divulgavam nos particulares eventos as partidas aos apostadores, que eram bem escolhidos. No jogo, estavam a mesa, Rubens e Willian, um reservado e na maioria das vezes o ganhador do golpe e o outro que fazia o papel de um pequeno empresário viciado em jogos e detentor do mais perigoso espírito aventureiro, além de Rodrigo, o mais novo que distribuía as cartas de forma a deixar o jogo bem equilibrado até a jogada chave. Normalmente, Rodrigo recebia as informações de quem deveria ir para o fim do jogo junto com Rubens, aí, depois de longas horas de batalha ele soltava na mão da vítima uma quadra alta, de valete, dama ou rei, o suficiente para deixar qualquer apostador a ponto de colocar sua casa na mesa, mas para o parceiro vinham belas seqüências limpas e estava feito o jogo. Judite era da retaguarda, se necessário ela passava cartas, distraia os apostadores, servia drinkes sonolentos, ou até aliviava sexualmente ou outro nos intervalos da partida. Rômulo desviava rastros de investigações, passava as coordenadas dos outros lugares clandestinos e das possíveis vítimas. O dinheiro era bem dividido e cada um dava conta da sua maneira.
Clara ouvia atentamente todo o desenrolar da trama. Às vezes se ajeitava na cadeira com empolgações orgásticas pela história. Rodrigo armara com Judite um auspicioso golpe no grupo. Na ultima partida, ocorrida na noite anterior, depois que ele trocou rápidas palavras com Clara no msn, deu o jogo para Willian quando este – pelo trato - deveria sair. Willian subiu aposta por aposta até levar o pote de todos exibindo sua trinca de ais. Terminado o jogo, todos na sala, começaram a discutir sobre o que fizera Willian e porque Rodrigo dera o jogo feito para o companheiro. Rodrigo alegou ter sido um equívoco na hora de embaralhar as cartas, Willian disse que, apesar de receber um jogo alto, tinha certeza que Rubens estava com um maior que o dele para levar o pote. Não satisfeito com a ação do Crupie, Joe dispensou o rapaz depois da partilha por ele ter descumprido o trato e esse tipo de erro ser muito arriscado para o negócio. Rodrigo estava saindo em direção ao carro quando Rômulo veio lhe falar:
- Hei!! Hei!! Rodrigo – disse ainda com um bolo de dinheiro na mão.
Rodrigo esperou, o policial se aproximou, ficou olhando atentamente para o bolo em sua mão e para a cara do Crupie. Naquele momento, Rodrigo teve a certeza que o dinheiro falso trocado por Judite o qual estavam todos levando para casa não era tão verdadeiramente falso quanto se imaginava, não para um policial. Rodrigo perguntou o que era e foi sorrateiramente para o carro, abriu a porta, entrou, mas Rômulo a segurou:
- Você acha que é fácil enganar as pessoas hein pirralho? Cadê o dinheiro? Onde você colocou?
- Que dinheiro? Que que você ta falando?
- To falando do dinheiro de verdade que aquela vagabunda trocou por essa imitação barata.
- Eu num sei de nada - Disse tentando fechar a porta.
- Você acha que alguém lá dentro não notou, eu to aqui só pra te mandar pro inferno e pegar a grana seu bostinha.
Rodrigo engatou a ré no carro e arrancou, torceu o volante ... primeira marcha. Nesta altura Rômulo já estava com a arma em punho levantando em direção ao motorista. Rodrigo o atropelou antes que ele pudesse atirar, e saiu em disparada, ainda a tempo de ver da estrada, os faróis dos automóveis da casa se acenderem e rumarem em sua captura. Ele acelerou, colocou o braço para trás a ponto de tatear a perna quente e lisa de Judite deitada no banco de trás, com a bolsa contendo aproximadamente 200 mil reais. Eles andaram de campos do Jordão até São Paulo, pararam próximos ao cemitério do araçá, dividiram a grana e cada um tomou seu rumo. O de Judite foi passar uns tempos no interior do Recife e tentar algum negócio pequeno. O de Rodrigo foi incerto, por isso ligou para Clara. E estavam agora frente a frente com os cotovelos na mesa velha, um jovem com cem mil reais num Fiat 66, fugitivo do grupo de ladrões e da polícia pela morte do tratante, e uma moça cansada de ouvir os pianos dolorosos de Colle Potter, e a ponto de injetar o mais gloriosos Bob Dylan no K7 do carrinho para trilhar uma fuga.
Clara temia pela sua saúde, pela saúde dos seus pais, mas no fundo já sabia o que fazer, sabia para onde ir, sabia ... era isso.
Ela recostou mais na mesa, aproximou-se de Rodrigo, lhe disse algumas palavras que nem o narrador conseguiu escutar, ergueu a cabeça, pediu um cigarro, deu os dez reais que Rodrigo tirara da carteira, não esperou troco. Os dois se entreolharam, levantaram e foram.
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Continua no texto acima.

O lado de dentro...sublime

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