Saímos do pão de açúcar da Consolação, cada um com uma latinha na mão, cerimônia do soluço nicotinesco.... alguém acende um cigarro, de repente mais um acende, mais um, mais outro, vai contagiando. O Armando queria ir no puteiro pra comemorar o aniversário, mas ninguém tinha mais de dez reais..acabamos descendo a augusta pra achar algum boteco. Luzes rosas e azuis cortando a tristeza das putas, aquela tristeza sexual parecida com o desespero de foda meia boca de porteiro da São João deixando seu dinheirinho numa mão gosada. Cheiro de sauna na calçada e nós loucos pra ficar completamente bêbados. Aí rapaziada, vamo vê uma buceta hoje? Arrepiá, a casa tá cheia. O cara já tava baixando a oferta, quando o Álvarez chegou – tô chamando ele de Álvarez porque acho que ele tem tudo a ver com Álvares de Azevedo, menino prodígio, filosofia ambulante das mazelas da consciência humana. “Pronto! Vocês cinco entram, pagam quinze reais cada um, e bebem cerveja à vontade até as cinco da manhã”....sabe aquela alegria compartilhada? Todo mundo rindo por dentro, com a sensação de ... puta que o pariu, a noite tá feita!, esse cara não sabe o prejuízo que vai tomar hoje, ou nós vamos tomar o prejuízo dele. Caçamos moedas no fundo da bolsa, do bolso, do vaso, o Kiko Lang emprestou pro Álvarez entrar e fomos. Eu sabia que o Alvarez ia causar surpresa naquela noite.
Alvarez estava há um mês morando comigo e com o Faria na kitinetch da Consolação, conheci naquela cidade horrível que um dia morei lá no interior. Cara inteligentíssimo, culto, leitor e pra infelicidade dele trabalhava numa lan house no meio do nada. De vez em quando jogávamos basquete ou tomávamos umas cervejas na frente da igreja. Ele gravou um CD com Jethro Tull, AC/DC, Chopin e mais um monte de coisa misturada. Eu ouvia aquilo feliz na sacada de frente praquele lixo do terreno em cima do armazém da Maria, uma portuguesa chata pra caralho que ninguém entendia o que ela dizia, mas era a cerveja mais barata e vendia pra molecada cigarro e cachaça.
Uma semana antes estávamos eu, o Faria e o Luiz num bar na esquina da Consolação com a Santos discutindo alguma coisa como homofobia, ou sei lá o quê.... e surge o cara com suas calças de Moleton e uma bolsa a tiracolo. Cabelo oleoso na frente da cara e tomando uma bohemia. Que porra é essa!? Tá perdido meu filho? Senta aí toma uma com a gente. Logo ele saca mais 4 latinhas da bolsa e abre um sorriso que depois vira olhar de esgueio pra todo mundo. Era um tipo sensível, na da a ver com alcoolismo. Tem gente que acha ruim o camarada beber sozinho, é nada...pra pensar na vida, se inebriar levemente organizando as idéias como diria Chico Science, vulgo Chico Ciência...ciência do mundo velho Chico!!.
Quando veio morar com a gente, falei zuando que aquilo era diferente de cidade pequena, São Paulo era uma pedra que cagava nota de cem, com um monte de cubo de gelo bem vestido pela calçada, as pessoas não se olhavam, cheio de moribundo feito a gente e de moribundo sem razão, que não olha pra ninguém. Que aqui ele ia conhecer a solidão na multidão, esses papos semidepressivos que todo mundo um dia chorou no bar depois da manguaça. O cara levou a sério, ficou triste, andava com 5 mangos no bolso da direita, moedas na esquerda e os documentos na meia em plena avenida paulista às nove da noite....se o primeiro malandro chegasse... tó, só tenho cinco conto...e vaza, depois, tó essas moedas aí! Maior pressão na cabeça de um ser humano, relaxe.Tinha a impressão de que o medo era sua forma de consciência naquela babilônia em que foi parar. E quando só o medo é o que dá consciência pro cara ele tá na corda bamba da lucidez.
Falou que queria ser jornalista, puta mente de filósofo vai escolher jornalismo meu! Na pegada do mal do século, Baudelaire, Rabelais Schopenhauer, Alan Poe, fez teatro, cara das artes vai escrever dos outros ...cria teu mundo, elabora suas bolhas ideológicas, transcende .... você troca óculos e não fabrica óculos, entendeu? E tinha uma namorada gatíssima ainda por cima, a ponto de colocar eu e Faria em longas discussões sobre como o desejo humano é uma coisa foda. Porra, o cara chegava de noite, deitava, acordava, colocava o tênis, jogava um desodorante avanço em baixo do braço e saía. Passei três noites vendo esse ritual, pensei esse cara sublimou, banho é coisa pra quem tem tempo. Fiquei seriamente reflexivo sobre as reais necessidades da nossa vida com a presença de Álvares.
E naquele dia mais algumas de suas proezas, derivadas de seu imenso coração, apareceram no puteiro. Cerveja na faixa até as cinco e era dez e meia, só podia terminar com o lirismo dos bêbados. Álvarez ficou uma hora e meia conversando com uma puta simpática e bonita. Enquanto todo mundo pedindo mais copo, fazendo pose de que tinha dinheiro só pras primas darem aquela apertada no nosso pau. Coitado de mim, uma venezuelana de dois metros de altura com uma mão do tamanho de um livro didático e eu desprevenido, sem intenção sexual nenhuma, claro que ela ia fazer aquele comentário quando procurou algo no meio das minhas pernas. Depois da uma hora e meia o Álvarez chega e diz que tava entrevistando a puta, queria saber sobre a vida dela e a coitada achando que ele queria fazer um programa. E o cara ficou emotivo mesmo, disse que queria dar um abraço nela, só isso, um abraço. E deu, ficou feliz saltitante, bebeu a noite toda, cagou de porta a Berta, abraçou um boliviano enquanto um casal trepava, por fim vomitou na porta do bar e foi levado embora pelo Kiko Lang. Dormiu, acordou... dois meses depois foi embora, muita pressão, bebíamos muito naquela época. Uma alma ímpar, melhor aproximação de humanismo que já conheci, um ser daqueles que nos orgulhamos de trombar pela vida, o invejo até hoje, espero que esteja bem.