Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

29 de setembro de 2008

O paraíso de Tião Durval

Tião Durval tinha um sítio no meio dos vales do norte paulista. Pequeno... é verdade, longe... é verdade, ruim de chegar... é verdade, mas era o paraíso para Durval. Uns cabritos aqui, uma jabuticabeira acolá, mangueira, pés de mandioca, galinhas poedeiras e codornas. Somam-se aos bichos menos importantes da propriedade, aqueles a quem Tião Durval denotava um carinho especial: Bucéfalo, seu grande parceiro, pangaré magrela, mas forte. Já subiu monte e carregou muito leite na charrete. Tinha também a Megera, a gata mais companheira que já existira. Caçava ratos como ninguém... a rainha do porão. Não miava, não ronronava, não defecava em lugares estranhos e estava sempre ao lado de Durval, lambendo seus pêlos pretos (os dela é claro), quando ele ficava em casa. Além do Mirveca, leitão volumoso e sonolento que adorava lamber a sola do pé do seu Tião. Era um momento único no dia. Depois de carpir o morro e arar três raias, cansado da soleira, ele se achegava no pé do chiqueiro, sentava no banquinho da ordenha, bem de lentamente ele tirava as botinas e logo o Mirveca se erguia. Era então tirar o meião e esticar um pé de cada vez, estava feita alegria.
- Oooo Mirveca, será que Deus inventô os porco pra mode lambê os pé dagente? Ele comentô arguma coisa cocê quando ocê nasceu?
O porco prosseguia na sua prazerosa tarefa, com os olhos fechados e o nariz suando.
Os animais eram a companhia de Tião Durval naquele sítio. Longe de vizinhos, viúvo, sem filhos, seu Durval, quando muito, ia para a missa ou para a zona das prima visitar Ritinha, uma baixinha invocada de papo largo. Mas era a Ritinha de Durval. Fora isso, quase contato nenhum com a cidade, o que plantava e criava dava pra viver. Treinar suas prosas com os bichos era hábito. De fato aquele era o paraíso de Durval. Íntimo com seus melhores amigos, sem preocupações e aborrecimentos. Mas, um dia, Megera se lambeu demais.
E toda pessoa sabe que gato preto quando se lambe demais ou vem chuva brava ou urucubaca das boas. E o pior é que o diacho do céu estava clarinho clarinho.
- Megerinha, que que ocê tá tramando?
Não precisa dizer o quanto estas coisas mudaram a rotina do seu Durval. Cabreiro, ficou em casa e sentiu o coração saltar quando ouviu o sino da porteira badalar. Escondeu o canivete na cintura e foi andando pra porteira.
- Aoa?
- Boa tarde! Como vai o senhor? – disse, sorridente, o moço jovem, bem vestido, que tinha pinta de pastor com juiz de direito e caixeiro.
“Que peste de sarafrário vem querê por aqui?” - Como o leitor ou leitora já deve ter se apercebido, eis aqui a principal característica de nosso Durval, coisa que ele sabia, mas de tanto ficar só no sítio acabou criando tal hábito. Ele só fazia perguntas. Seja nos pensamentos ou nas raras conversas, só saiam interrogações. Deve-se lembrar também que as perguntas quase nunca precediam uma resposta. Prossigamos.
- Que que cê ta fazendo aqui com essas roupa toda aprumada?
- Muito boa tarde senhor – sorriso na orelha – vim mandado aqui exclusivamente pra te apresentar uma coisa que vai mudar sua vida. Você tem muitos bichos aqui não?
- Num tá vendo que tenho?
- E você com certeza conversa com seus animais. Pois bem, o que eu vim te mostrar vai fazer seus bichos conversarem com você. Porque você sabe que eles te entendem, você fala o tempo todo, sabe quando eles estão tristes, quando estão felizes, sabe quando eles obedecem, quando o cavalo empaca e o leite da vaca empedra – a essa altura seu Durval começava a coçar a cabeça, ouvindo atentamente cada palavra sobre aquele produto.
- Você sempre quis saber o que incomoda tanto o galo pra ele gritar de manhã? Pois você agora vai saber não só o porquê, mas o quê ele grita.
- E comé que se faz isso? – se rendera ao produto.
- É simples. Basta tomar um vidro desse – sacou um frasco sujo de perfume com um líquido cor de bosta de bezerro - e pro resto da vida você vai poder ouvir e falar com os animais. Quer ver?
De repente o rapaz de terno deu uma torcida na garganta se aproximou da cerca na qual Bucéfalo comia sua grama.
- ihrihrihrihrbbrrrrrrr – soltou o rapaz.
Bucéfalo virou só o olho direito - o outro continuou olhando para frente -, depois o pescoço e respondeu:
- ihrihrihrbrr
- O seu pangaré chama-se Bucéfalo, mas você chama ele mesmo de Buci, às vezes de Bucizinho.
O pobre do Tião Durval corou por um momento, afinal apelidos íntimos não devem ser compartilhados desta forma tão impessoal. Mas, depois, ficou por demais inculcado.
- Quanto custa isso?
Feita a pergunta derradeira, só restou a Tião Durval pegar suas economias e dar ao rapaz prevendo a realização de um sonho, afinal aqueles eram seus amigos e entendê-los não tinha preço.
Tião recebeu em mãos o frasco com a poção e foi feliz da vida pra dentro de casa; com a fé que seus olhos construíram ao ver Buci conversando, fechou os olhos e bebeu o líquido.
- Arg, que diabo que é isso? - imaginando que aquilo tinha um gosto entre lodo e queijo minas, ficou vermelho, mas não vomitou. Dormiu.
Meio sem rumo, meio tonto, acordou no chão com uma dor de cabeça de arriá boi. Sentou-se no sofá.
- Ô Megerinha, que que me aconteceu? Ocê sabe?
Megera, na janela, olhava a paisagem fechando os olhos.
- Você é um burro! Isso que você é – e a gata virou a cabeça devagar para Tião, este esquecido da poção deu um pulo pra trás do sofá – Fica bebendo qualquer coisa, ou você acha que eu vou sair correndo no meio desse mato pra achar ajuda para um idiota que nem você?
- Cê tá louca megera? Que te deu? – e saiu depressa da sala. Quando chegou à porta ,havia uma barulheira maior que a da feira.
- Ih lá vem o homem – gritou o ganso – Cadê o milho? Safado!
- Isso, cadê o milho – as galinhas fizeram coro.
- VOU COMER VOCÊÊÊ! - uivava o galo saindo atrás de uma galinha qualquer.
Tião olhava atordoado, estranhando tudo.
- Ô chefe! Tô cansado pra caramba! - Bucéfalo falava com a boca cheia de grama - Não vai me montar hoje não, que se for eu empaco.
- Buci! Logo ocê?
- AGORA VOU COMER VOCÊÊÊ! – o galo ia para outra.
- Não vem não, nem olha pra cá! – a voz da vaca era mais estridente que a da cigarra - Você veio de manhã, espremeu a minhas tetas até não querer mais. Elas estão doendo, seu ogro. Não sabe apertar os seios de uma lady.
- Vem pra cá, meu lindo, que eu chupo seu pezinho – Mirveca se revelara uma peruona.
- Mirveca! Ocê é uma biba?
- Vêm, delícia, dá o pezinho para mim...uiiii!
E, o que era o paraíso, virou o inferno.

***

Quatro da manhã.
VOU COMER VOCÊÊÊ! O galo gritava, era hora de acordar. Tião revirava na cama.
Seu Tião não era mais o mesmo. Saía de casa e não falava mais com ninguém. Segurou por muito tempo aqueles animais até que, um dia, gritou em alto e bom som.
- Chega! Cês sabem a diferença entre bicho e gente? – tinha de ser uma pergunta.
Logo desceu chibata em todos.
A partir de então acabara a amizade. Todos os dias, ele pegava a vaca, dava-lhe um tapa e ordenhava sem delicadeza nenhuma; tirou Bucéfalo do pasto e colocou no celeiro; nem olhava mais na cara de Mirveca, que de depressão engordou ainda mais. Deixou de ser feliz. Passou a amaldiçoar o vendedor e a si próprio por tamanho erro. Os bichos por sua vez deixaram de ser simpáticos, obedeceram mais, com exceção de Megera, única a fazer o que queria por caçar os ratos. Com os outros, a força tratou de calá-los e manter o convívio.
- Acorda seu imprestável – falava Megera com voz melosa – Sabe qual a diferença entre eu e esses animais aí fora?
Pela primeira vez Megera vinha puxar conversa ... isso não era bom.
- Eu sei que você depende de mim... eles ainda não sabem. Você achou que ia ser mais feliz, mas não soube ouvir os animais. Pra você, nós te pertencemos e é isso que eu vou dizer a eles - Depois, que não quis ouvir nem falar, preferiu a chibata - Mas isso vai acabar seu imbecil. Pense como é ficar sem o leite, sem o trote sem a carne....
Antes que pudesse responder, a gata sumiu pela janela. E, pela primeira vez em muito tempo, Tião parou de pensar perguntas.

19 de agosto de 2008

A seleção dos Feijões

- Bom meu filho, deixe-me ver... Ora, você está ótimo. Você será um dos feijões mais saborosos de um possível prato tropeiro. Estou orgulhoso disso.

O saco de feijão tipo 1, série BR3257, estava dentro do armário e, enquanto A-Mão não o abrisse, a vida continuaria normalmente. As aulas na escola dos feijõezinhos, a vigília ostensiva, o controle de fungos e bichos, e toda a rotina daquela comunidade 3257. Desde todos os tempos fora assim; antes, porém, as comunidades eram maiores, sacas de trinta ou quarenta quilos. Os feijões aprenderam a lidar com a seleção. Feios, podres, manchados, enrugados e divididos sabiam que enfrentariam problemas com A-Mão. Isso sem mencionar o apartheid natural das sacas. Feijões brancos, negros e marrons não se misturavam e quando algum estava perdido por acaso em sacas diferentes, era rechaçado e desprezado.

- Você não acha que esta mancha aqui pode me causar problemas? – perguntou, receoso, o filho, apontando para uma mancha no cotilédone direito.
- Imagina! Não admitiria isso – no fundo, papai feijão já sabia que as chances do pobre menino eram poucas – Além do mais, a situação não anda bem para Os-donos-das-mãos; isso significa que a seletividade diminui. Mas isso é coisa para feijões mais maduros. Quando terminar o colégio, vai entender as leis do mercado granular.
- Minha professora de História já falou disso pra gente. Que um tal de Vage, Varge, Vargas... não lembro direito... que ele provocou o maior genocídio dos primos cafés.

Enquanto o menino tecia suas peripécias escolares com a maior empolgação, o pai feijão ouviu o som de uma chinela se aproximando e uma melodia baixa acompanhando o som. Em toda comunidade de feijões ensacados esse barulho representa um sinal de atenção. Os passos cessaram. A luz invadiu o armário, A-Mão agarrou firme o saco de feijão. Era chegada a hora. O pai, apesar de encorajar seu filho às grandes virtudes de ser um bom prato, estava agoniado. As criancinhas feijão aprendiam desde pequenuxas, nas aulas de religião, que a salvação só viria quando eles estivessem integrando uma refeição dos Donos-das-Mãos. Mas, naquele momento, o pai teve vontade de não crer neste final. Ele se aproximou do filho, engoliu seco e disse:

- É mesmo filho? E o que mais você viu na escola hoje?
- Ahh, adorei a aula de Literatura. A professora disse que, se não estivéssemos em comunidades, poderíamos ser tão grandes quanto o pé em que João subiu. A de Geografia explicou por que no Rio de Janeiro a maioria das séries são de feijões pretos e a tia...

De repente, houve um momento de inquietude. O saco fora aberto. O pai interrompeu o filho.

- Olha filho, você pode ser um lindo pé igual ao do João. Eu acredito nisso e gostaria que você acreditasse também. Aquela que você está vendo ali em cima é A-Mão, ela irá fazer a seleção agora – o pai atropelava as palavras – Lembre-se do que você aprendeu, vamos ficar longe dos enrugados e escuros... Eles chamam a atenção dos olhos e podemos ser excluídos junto com eles.

O filho, sem palavras, apenas olhava para cima e admirava A-Mão. Um objeto estranho, disforme, com partes alongadas. Ela estava lá, com dedos gordos e dobras largas. A-Mão virou o saco e espalhou os feijões na mesa.

- Fique comigo, filho – estavam a três corpos de distância.
- “Longe dos meus olhos e tão pertos do meu coração!” – a Dona-da-Mão cantarolava.
- Pai!!!
- Sai filho, atrás de você! – havia um grande feijão idoso, enrugado e manchado atrás dele.
- Sai daqui, seu velho! – desespero – Sai!!!
- Filho!!! Cuidado!

Tarde demais, a mão distraída e ágil separou o menino e o velho num canto escondido. Um simples gesto, um simples canto... talvez, para a Dona-daquelas-Mãos. Mais que isso, um machado deferindo golpes secos e rompendo laços fortes de dois feijões. Não há dor, não deveria haver dor, mas isso ainda não fora bem ensinado àquele grão... que sofria.
O pranto era a única resposta aos dois naquele momento. Eram solitários, entretanto, em meio ao fulgor e a alegria daqueles escolhidos. Ao lado da desolação, o corpo de feijões machucados, leprosos, idosos e descartados aumentava. Todos silenciosos, impassíveis.

- Você vai brotar, meu filho! – esganava o pai de dentro do pote onde os bonitos jaziam felizes a caminho da panela.

Em pouco tempo tudo estava terminado. Os feijões bonitos mergulhavam sorridentes na panela. Os descartados, por sua vez, foram rapidamente despejados no lixo em meio a raízes de alface, cascas de batata, ovos podres e pele de frango.
O menino silenciara-se. Um dia ouvira falar do que aconteceria àqueles que não alcançassem a salvação. O desprezo, a podridão, a feiúra dos imprestáveis. Neste ambiente haveria bichos, fungos, pragas, mares tóxicos e gases venenosos. O medo dominava o pobre menino diante das imagens que ele mesmo criara. Onde ele caíra não havia nada, mas ele sofria ao imaginar o caminho que rumaria.

- Sabia que existe uma lenda antiga que não ensinam em escola nenhuma? – o velho feijão estava novamente ao seu lado.
- Como assim?

O feijão idoso tinha crostas em quase toda pele, o que lhe conferia um ar de constante tristeza. Sua frieza e tranqüilidade encontraram o desespero do jovem grão.

- Dizem que, para além do mundo dos pratos bonitos, os feijões descartados como nós vão para lugares gigantescos. E que é possível encontrar lá a verdadeira liberdade; mas, para isso, temos que abdicar de tudo o que aprendemos e conviver com os mortos. Dizem que lá também existe A-Mão, aliás muitas Mãos, mas elas são diferentes daquela que há pouco você viu. Elas são mais feias, muito mais feias, são magras, cheias de fendas fedorentas e micoses, elas são enrugadas, muito sujas; elas tremem e não tenha dúvidas de que elas escolheriam muitos dos que aqui estão.
- Você espera ser livre agora? – frêmito na fala do menino.
- Já estou livre desde que caí neste lixo. Ou você acha que estaria te dizendo isto lá dentro?

28 de julho de 2008

Dandong, China, 28 de maio de 2003.

Esta é a sétima carta entre dois irmãos chineses: um Tài Tai Li de São Francisco (EUA), outro Lao Peng Li (eu) que foi à China devido a morte do pai. Acompanhe as cartas anteriores: primeira, de Aiko Koan, avisando a morte do pai; segunda, de Lao Peng Li, assim que chegou na China; terceira, de Tài Tai; quarta e quinta de Lao Peng e sexta de Tài Tai.


Jilin, China, 28 de maio de 2003.
Querido Tài Tai,

Desculpe a demora em lhe escrever. Isso se deveu, primeiro, aos acontecimentos que se sucederam aqui – e você deve ter ouvido – e, segundo, para que possamos deixar a folha repousar depois da tempestade e enfrentarmos juntos nossa distância.

Um dia, quando você tinha por volta de dois anos, papai pisou sem querer no se dedo do pé. Você chorou e ele o deixou chorar até cessar. Depois disso, você ficou uma semana sem rir. Lembro-me de mamãe ter dito “menino de força”. Vejo você ainda desta forma. Uma vingança sobre a qual não quero me estender nem lembrar. Estimo muito Tung e recuso-me a crer em tamanha crueldade que o levou a fazer isso e a narrar como me narrou.

Suas asas estão livres, espero apenas que elas não o conduzam às prevaricações as quais tenho lido. Tenho plena certeza de que isso não se repetirá e Tung, por mais amiga que seja, é ainda uma mulher da vida, desprovida de perspectivas duradouras. Espero que possamos ter boas notícias em nossas próximas cartas. Falo isso por não trazer boas notícias agora e por acreditar em suas cartas e que poderei escrever-lhe mais.

Comentei na última carta que receberia a visita de Aiko naquela noite. Isso aconteceu e pude saber muito dos acontecimentos que sucederam à nossa família desde que saímos. Inclusive as dores que cercavam nossa família com a perda de nossos irmão e mãe enquanto estávamos longe. Infelizmente, tenho pouco tempo para lhe contar e me dói bastante. Confesso que minha intenção ao encontrá-la era fugir dos acontecimentos e acabei me aprofundando muito mais neles. Naquela noite, Aiko me falou de uma jovem que esteve com o papai logo depois que mamãe nos deixou. Não falava com as pessoas e apenas ficava uma noite dentro de nossa casa e saía. Seu nome, segundo as poucas coisas que papai disse sobre ela, era Xiao. Nunca ele revelou que tipo de relação eles tinham. Entre papéis velhos de sua caixa, eu encontrei esse mesmo nome com um endereço e me dispus a encontrá-la.

Vim até Dandong, onde estou até agora, e não encontrei Xiao pelas pesquisas que fiz. Apenas algumas informações perdidas. Por isso me ausentei de te escrever. Estava tentando encontrar a única pessoa que esteve com nosso pai quando ele estava só. Entretanto, essa minha busca parece ter levantado poeiras até então bem quietas. Falo com Aiko uma vez por semana e nesta última ela me disse que pessoas estranhas com aparência de coreanos vizinhos estiveram perguntando por mim lá. E eu aqui do lado deles tentando procurar esta pequena. Não sei quais as circunstâncias que envolvem estes encontros com Xiao, mas tenho certeza de que é algo que requer sigilo. Ainda mais com as situações envolvendo a Coréia do Norte. Tenho até medo de escrever livremente.

Aqui, os chineses estão todos preocupados com as notícias vindas da Coréia do Norte. Depois da retirada do pacto nuclear, tudo se deu de forma muito corrida. Estão dizendo que eles já têm bomba atômica – não sei o que estão noticiando por aí, mas aqui não há dúvidas sobre as bombas atômicas do outro lado do rio. Conversei com o moço do correio, que diz não ter dúvidas de que foi nosso país que forneceu as informações e equipamentos para eles logo depois da intervenção, depois da guerra da Coréia. Você ainda não era nascido quando isso aconteceu e nem eu me recordo de tão pequeno. Vejo ao longe, do outro lado do Yalu Jiang, uma certa tranqüilidade na fronteira. Espero em breve voltar para nossas montanhas e descobrir a verdade.

Sei que retornarei para casa e tentarei descobrir o que cercavam esses encontros. Confesso que estou com medo. Precisarei de sua ajuda, inclusive se me puder enviar um pouco de dinheiro para estas investigações. Continue rezando por mim.

Um grande abraço de força e de coragem.

Lao Peng Li

10 de julho de 2008

Fábula do Conhecer

I

Pelo descampado campo
Trotando a passos leves
Vinha o cavalo sonhador.

O olhar fechado, os cascos batendo.
O cavalo mal ia percebendo
O fardo do seu labor.

Eis que, fatigado e feliz,
O sonhador começa a caminhar.
E vê, distante e bela, uma pequenina flor.

Tão pequena, mas tão imponente.
Uma planta forte e persistente
Por nascer só e desabrochar em cor.

Pétalas delicadas, bem cuidadas
Sem amigas ou pragas
Sem alguém para os olhos por.

Ali, a passo curto, o cavalo a notou.
A crina ondulante e a pétala dançante
Encontraram-se com temor.

- Que fazes aqui tão sozinha,
neste campo descampado?
Perguntou o sonhador.

- Que fazes aqui tão altivo,
neste campo descampado?
Respondeu e fina flor.

- Ora não sei, nasci para trotar.
- E eu nasci para desabrochar.
E riram com langor.

Assim, no poente do dia
O cavalo em companhia
Deitou ao lado da flor.


II


- Será que eu morrerei trotando
E você desabrochando?
O cavalo se pôs perguntar.

- Não sei te dizer de verdade,
mas se eu sair dessa terra, dessa realidade,
poderei não mais voltar.

O cavalo olhou de lado, comovido
E com a flor perto do ouvido
Silenciaram ao luar.

- É isso que você vê todos os dias?
Essa lua, essas estrelas e esse céu.
Não há como se cansar.

- Queria eu escolher o chão
onde fico e esparramo o grão.
Queria eu poder andar.

- Mas você pode linda amiga.
Não dê essa vida por vencida,
Daqui eu posso te levar.

- Conhecerá as rosas e as margaridas,
as orquídeas e tulipas floridas,
conhecerá tudo com o próprio olhar.

A flor, cautelosa e pensativa
Sentiu na brisa a alma viva
Sentiu o mundo lhe soprar.

- Não percamos tempo, vamos embora
vamos agora, conhecer a outra aurora
que se põe por trás do mar.



III


E contentes e resolvidos
Os dois seres sentiam-se impelidos
A cruzar o amanhecer.

O cavalo mordiscou o delicado caule
Levantou o dorso ao vale
E desatou a correr.

Os trotes rasgavam a relva
Subiam montes e corredeiras
Ao que se havia de conhecer.

Dali a flor foi vendo,
Chorando, rindo e conhecendo
O mundo além do ver.

E, aos risos e gargalhadas
A flor a trotadas largas
Foi murchando sem perceber.

Com o riso fácil e estampado
E o caule entretanto cortado.
A flor decidiu não mais viver.

O cavalo disparado a trote pleno
Não sentiu também o veneno
Que a fina flor pôs a sorver.

E, parando quase sem ar,
O sonhador resolveu sonhar.
E o chão sentiu o tremer.

E ali, numa outra vizinhança,
Com a mesma perseverança
Morreram sem o mundo conhecer.

28 de abril de 2008

E as rosas sorriem...

Olhar uniforme....vermelho.... por sobre as rosas.
Silêncio, vento, balançar suave.
Distância paciente da maré de dentro.
perguntas de dentro.
Os espinhos perfurando dos lados
Os espinhos perfurando dentro.

Um dia, um poeta espetado chorou.
- As rosas são tristes.
A rosa lhe sorriu de volta.
Embora sorvesse seu sangue.

Firmando sobre terras turvas
Pulam os homens
- que lindo! Quantas rosas..parece um mar vermelho.

Vermelho é. Vermelho permanece
E a rosa ri. Seu riso é dor.

Nas ondas, nas minhocas, nos pulgões
Nos espinhos.
As rosas sorriem.
Lhe vêm a foice e as rosas sorriem,
A declaração de amor acompanha um riso.
O choro acompanha o riso.
O quarto acompanha o riso.
O silêncio na cama acompanha o riso.

A turgescência acompanha o riso
As pétalas caem, cai o riso.
Resta o galho...seco...áspero.
Esturricado.
Velando a cama lisa.

11 de abril de 2008

Vendo cigarro, R$0,10! Masso R$1,50

Não era uma avenida movimentada, nem mesmo uma rua comercial. Não havia pessoas dispostas a comprar nada e, as poucas que havia, passavam rápido mirando a sombra no chão. O que dizer lá de dentro? Não havia sequer pessoas com dinheiro para gastar. As poucas moedas que existiam dentro daquele lugar, com pouco mais de cem pessoas, estavam perdidas em bolsos duros, sujas em cada ranhura, raspadas, deformadas e, ainda assim, eram moedas. Apanhadas por mãos tão grossas quanto a sola do pé, tinham em si os olhares mais distantes.

Albergue municipal, dizia a placa grande. Vendo cigarro R$0,10! Masso R$1,50, dizia a pequena. E o dono desta esnobava em dizer que não havia necessidade de uma placa para pessoas como aquelas. Ele, mesmo se alimentando e repousando diariamente naquele albergue, terminava o café mais cedo e saía para “trabalhar”, um passo a frente e lá estava ele na porta do lugar diante da fila de pessoas. Umas descalças, outras bem vestidas, desempregados, bandidos, homens de bem, mulheres grávidas, negras e loiras de pés imundos, cachorros nas carroças, crianças despenteadas com ranho nas blusas manchadas.

O homem abriu um banco de sacola de feira, sentou na porta do albergue e cruzou os braços com um leve sorriso no rosto. Olhava, olhava, fitava cada pessoa da fila. Todos cabisbaixos, expostos aos olhares perfurantes dos transeuntes, conversando baixo, inebriados num silêncio imposto por algo. Aquele ser ficava ali com sua placa, barba rala, gordo, pele oleosa, um boné da caixa econômica federal salpicado de cândida, blusa de lã furada, havaianas nos pés com unhas encavaladas, marrons e porosas, cascas pretas entre os dedos e, ainda assim, cruzava os braços e ria.

- Até a praga no mato precisa terra seu doutor – foi a resposta que deu a um senhor politizado que veio lhe indagar sobre arrancar o pouco dinheiro que aquelas pessoas tinham. O silêncio do doutor significou compreensão – essa é a vida doutor! Eu tô aqui porque tem gente que tá lá! (apontava a fila) E elas qué comprá.

Nada que o Pobre doutor dissesse teria efeito ou sentido. O gordo ria em êxtase silencioso, lábios em U, cabeça baixa. Fitava novamente a fila e ria. Não havia por que rir, e Ele ria. Não havia ninguém comprando, e Ele ria. Não havia sistema operando, e Ele ria. Não havia sequer cigarros.... e....
.................................................................Ele
..............ria.

17 de março de 2008

Repulsa

Chegou em casa, jogou os cobertores no lixo, os lençóis, as fronhas; livrou-se do cheiro acreditando transgredir o esquecimento...revolucionar o espírito. Esqueceu-se, entretanto, que a cama não mudara, tampouco o quarto ou mesmo sua vida. Não havia revolução alguma, não havia esquecimento. A presença ali, o registro estático daquele lugar em suas retinas provocara o oposto de sua intenção, uma dolorosa e perturbadora dor. Havia dor.

Deitou-se. Olhos abertos para o teto, cheiro de amaciante no lençol trocado, pele alva, nua e trêmula sem outro cobertor. A luz difusa de um apartamento do outro lado da rua foi a única a ver as lágrimas correndo naquele rosto imóvel. A cidade transpirava.

Repulsa. O pensamento uno e triste daquela memória:
"Ela nunca mais põe os pés aqui! Não a deixarei entrar de novo em minha vida, muito menos mexer comigo". No poço dos olhos, havia angústia. Encolheu-se... O frio chegava lentamente. O medo, a revolta e a vontade de livrar-se do pântano de pensamentos os traziam mais fortes que as marteladas do frio em cada poro de seu corpo. Tanto tempo, tanta vida, tanta hipocrisia, tanta mentira...os pensamentos doíam, todas as palavras vãs, os olhares enganosos, os sorrisos falsos...tudo aquilo que acreditava ser certo, ser verdade, traduzia somente uma coisa... a angústia.

Fez o que tinha que fazer (alívio!)
Havia muito mais o que fazer (dor)
O que ao certo não se sabe (dúvida)
Ela não entra mais aqui (reação)
Na, não, não (incerteza)
As coisas vão mudar (fé)
Preciso somente esquecê-la (alívio)
Preciso esquecê-la (dor)

As idéias se encontravam dentro da cabeça agitada... impassivas, não se conversavam. O corpo tremia, dessa vez por força dos choques atrás dos olhos. Incômodo...insônia...pôs-se de pé, caminhou morbidamente até a sala. Parou e encarou o espelho, esperando respostas. E as respostas obtidas vieram em choro. Ela tentou se livrar e, entretanto, continuava lá... as mesmas palavras...angústias...olhares...lá estava ela de novo...e o cheiro voltara.

26 de fevereiro de 2008

O sorriso do Pingüím

ATUALIZAR....ATUALIZAR...ATUALIZAR...Chega e-mail, lê e-mail, pega a resposta na pasta, copia, cola, envia...ATUALIZAR. João estava com os olhos quase fechando, hipnotizado, girando o mouse.

SETINHA...MÃOZINHA...SETINHA...MÃOZINHA...ATUALIZAR. A coisa mais chata que aquele estudante poderia conseguir, João conseguiu. Um salário fudido de quinhentos reais, um vale alimentação ridículo e uma carga de bilhete único. As atividades no partido eram assim. João pensava e repensava se estava satisfeito, o que obviamente já tinha resposta, mas parava de pensar quando lhe escorria uma baba no canto da boca.

Sua função era muito simples: responsável-superintendente-do-atendimento-ao-público-do-partido-na-região-central. Em suma, ele recebia e-mails com dúvidas, reclamações e aporrinhações; lia, escolhia a resposta - automática na maioria das vezes -, mandava e pronto...respondido. Seis horas por dia nessa alucinante rotina. Todas as réplicas e tréplicas também ficavam sob sua tutela. Ao final de cada mês, uma reunião com o subcoordenador-de-relações-públicas, um relatório das atividades...tantas perguntas assim, tantas assado, vinte palavrões, quinze referências diretas à senhora mãe do único deputado do partido, etc. O subcoordenador passava o olho, cruzava as pernas na sua poltrona, mordia a ponta do óculos e dizia:
- Vinte palavrões?
- É.
Silêncio
- No mês passado foram quantos?
- Dezoito
- Hmmm (mão no queixo) vou ter que falar com Aldair, esse marketing nosso não está funcionando. Pior que ele tá com uma dor de barriga que não consegue ficar dois minutos sem limpar a testa e sair torto.
Jogava o relatório na mesa e dava um tapinha no ombro de João, que nem tirava os olhos do pingüim em cima da mesa:
- Muito bem, João. Ótimo trabalho.


Naquele dia, antes de sair da sala de reunião, João percebeu que o pingüim em cima da mesa estava com enorme sorriso nos bicos. João cerrou os olhos, aproximou a cabeça e teve certeza. O pingüim estava rindo, e rindo um riso jocoso, meio malandro...estava rindo dele, aquela figura patética, naquela vida medíocre, num partido de merda. João levantou, pegou o pingüim, enfiou na cueca e saiu.

No outro dia de trabalho lá estava o pingüim ao lado do computador. Primeiro e-mail:

Boa tarde,
Sou eleitor do deputado M........ e tenho acompanhado o envolvimento dele no caso das lantejoulas chinesas. Prefiro não acreditar que ele esteja realmente envolvido nisso. Qual a posição do partido a esse respeito?
Grato
Conrrado

João leu e já pensou: “resposta 1 do caso das lantejoulas chinesas”. Desceu o mouse para acessar a pasta e lá estava, do lado dele, o pingüim, imóvel, com seu sorriso perturbador. João parou, deu um responder e a próprio punho digitou:

Prezado Conrrado,

Primeiramente gostaríamos de agradecer pelo contato. Somente ouvindo nossos eleitores podemos dimensionar o tamanho do pinto que nos espera. Em relação ao envolvimento do deputado no escândalo das lantejoulas chinesas, nós garantimos a plena integridade e isenção dele em tal fato. Acreditamos, entretanto, que o molhar das bucetinhas nos fará passar por esse imbróglio.
Atenciosamente,
João

E enviou.

As respostas que se seguiram tiveram a mesma serenidade, como:
“O partido convocou uma reunião extraordinária com o Mestre Splinter e os Tartarugas Ninjas para discutir a pauta”;
ou
“Não podemos repudiar diante do Amado Batista. É uma questão de honra para o partido”;
ou ainda
“haja vista que os pardais castrados da Amazônia estão em greve de sexo oral, temos uma conjuntura delicada”
passando por
“encaminharemos todas as informações ao Cirque Du Soleil para averiguações”
e até
“Agradecemos a compreensão e estamos torcendo pelo milésimo gol do Túlio Maravilha”

Assim se seguiu por vinte dias e todos os personagens de quadrinhos, desenhos e filmes, todos os palavrões, artistas bregas e físicos quânticos tiveram sua hora e sua vez. A vida de João estava extremamente empolgante. Nestes dias o pingüim parecia depressivo perto dele a cada resposta que recebia. Algumas pessoas não estavam entendendo o que acontecia, perguntavam e recebiam uma resposta pior, outros xingavam até a esposa do deputado. A campanha só não durou mais porque, no vigésimo dia, rompe pela sala o subcoordenador, vermelho, louco.
- Puta que o pariu João, que que tá acontecendo nessa merda?!?!?! Meu irmão me ligou porque o vizinho dele recebeu um e-mail daqui falando que o Tio Patinhas ia fazer um casaco de lantejoulas e enviar por sedex.....mas que porra é essa?!?!?
- Não sei senhor – respondeu, com cara de sonso, escondendo o pingüim atrás do monitor.
- Você tem meia hora par ir à minha sala explicar isso – e saiu batendo a porta.

Nesse tempo, sem preocupações, João contabilizou um minirelatório com os mais de 1100 palavrões, as mais de 400 referências diretas à mãe do deputado e também à cunhada e à esposa, os quinze processos notificados e os raros bem humorados que acreditaram ser uma piada. Juntou tudo, colocou o pingüim na cueca e foi até a sala do subcoordenador.
- Senhor, não sei, sinceramente, o que está acontecendo – e colocou o relatório em cima da mesa – mas quero deixar claro que não admito ser tratado assim em meu ambiente de trabalho. Vou sair do serviço e do partido e entrarei com um processo contra o senhor por danos morais, obrigado.

Nessa altura do campeonato, o subcoordenador já estava pálido, com o relatório nas mãos. Não disse uma palavra sequer. João o olhou, tirou o pingüim da cueca colocou-o de volta na mesa estrategicamente virado para o homem e saiu. Apagou os arquivos do computador e foi embora.


8 de fevereiro de 2008

Jili, China, 05 de Janeiro de 2003

Querido irmão,

Gostaria, primeiramente, de pedir desculpas pelas duras palavras que lhe dirigi há dois dias. Não nego o sentimento latente em mim quanto às suas atitudes. E de reafirmar que, do que disse, muito é verdade. Acredito, porém, que nossa união nesse momento de conturbação é mais importante que as prateleiras da loja ou seu comportamento ocidental. És um Li, está no seu sangue e isso não há como negar.
Refleti muito sobre minha outra carta (e acredito que nesse momento em que escrevo você deve estar lendo com rancor) quando eu mesmo comecei a arrumar as coisas aqui em casa. Joguei fora a antiga cama de palha onde papai morrera; deixei somente a que era sua, que está mais conservada. Hoje durmo nela. Limpei com creolina e água sanitária o chão todo. Mudei uns móveis e deixei mais arejados a sala e o quarto. Confesso também que começo a sentir falta dos jogos do Lakers, é difícil ficar sem a televisão para zapear e passar o tempo. Hoje, olho e olho da janela, aquelas montanhas, que continuam as mesmas de quando saímos daqui. Elas são tão pacíficas, tão sóbrias e remetem igualmente às minhas memórias de menino aqui, quando não as olhava desse mesmo modo, e ao que está atrás, a você, a Tung.
Esta noite receberei Aiko em casa...Talvez você tenha notado o frêmito de minhas frases...ela tem me feito muito bem. Apesar do tempo, os olhos não mudaram...continua vivaz. Lembro-me de lhe ter contado nossa história, foi minha primeira mulher e agora parece que o acaso caminha para que seja a última.

Desculpe a brevidade, mas espero que minhas desculpas sejam aceitas e aguardo ansiosamente mais novidades suas daí. Se Tung perguntar desta vez, diga que estou bem e lhe mande um beijo.

Fica um para você também.

Até breve.

24 de janeiro de 2008

Jilin, China, 03 de janeiro de 2003

Meu irmão,

Choro de dor por ler suas palavras. Enquanto sorvo o sofrimento de nosso pai, você goza desse mundo vil como se sua liberdade se encontrasse realmente na morte do nosso pai. Você fala de uma forma que desconheço, mal engoliu a poeira de minha ida e desatou a pilhérias e mudanças. Não as condeno, acho sim que de fato esqueceu de onde veio e qual é sua honra. Antes de sermos comerciantes, somos herdeiros de nosso sangue.
Você está se deixando levar pelo que esse ocidente podre te oferece, prazeres vazios, acha que assim honrará nossa família como último homem dela?
É uma ofensa questionar os ensinamentos de nosso pai e, se você não os aprendeu, questione seus princípios.... És ou não um Li? Não é o que me parece, mas vejo que na primeira oportunidade que tiver, inventarás um apelido de cinema americano para que as putas loiras daquele lugar possam te chamar e você vai acreditar piamente que é realmente uma pessoa importante. O que fez então na virada do ano? Comemorou como um cidadão americano os fogos estourando no céu? Se fez isso, admirou a melhor competência deles....pois de fogos eles entendem. Fizeram da nossa descoberta o caminho para a morte....você se lembrou disso? Não.

Não me estenderei mais, sofro por você.

Lao Peng Li

14 de janeiro de 2008

É um prazer conhecê-lo!

- Ok! Como você chegou até mim?
- Alguém para o qual você já havia trabalhado me indicou.
- Quem? Carlos?
O homem hesitou, seu nervosismo fazia aparecer a veia no pescoço apertado pela gravata. No apartamento sujo e pouco iluminado perto da Avenida 9 de julho, era possível àquele homem ver um mural repleto de fotos com pessoas sorrindo, outras sérias, outras ainda lamuriosas, fotos de todos os tipos.
- Você deve estar se perguntando se aquelas fotos são de pessoas que eu já matei – sentenciou o gordo por trás da luz branca voltada para a mesa que os separava. Em cima da mesa, um cinzeiro cheio de bitucas e uma lata de Budweiser.
O nervosismo do homem fez-lhe correr grossos fios de suor pelas têmporas. A pele vermelha salpicava de gotículas. Ele tirou um lenço do paletó e limpou seu rosto ainda com o olhar fixo no mural, ao mesmo tempo que sentia o olhar penetrante da figura atrás da mesa. Não era possível ver seu rosto, mas ele tinha certeza de que não conseguiria encarar aquele homem.
- Não quero te deixar nervoso – falou o gordo, dando um trago profundo em seu cigarro – mas todas aquelas fotos são sim de pessoas que eu já matei, como você supõe, e acredito que você não deva estar com medo, senão não estaria aqui. Podemos falar delas se quiser, mas quero saber o que te trouxe aqui, ou melhor, quem?
O homem limpou mais uma vez o rosto, se ajeitou na poltrona de molas tortas e, do bolso da camisa, tirou uma foto e a entregou ao gordo.
A mão do gordo apareceu na luz branca e apanhou a foto com força. Ele a olhou um instante e deu duas batidas com o dedo do meio.
- Quem é ele? O que ele faz? E por que quer matá-lo?
- Não quero dar muitas informações além das necessárias.
O gordo se encurvou de sua poltrona e mostrou sua face na luz. Olhos negros, um maior do que o outro, barba rala e narinas largas.
- Em primeiro lugar – começou, cerrando os olhos – esse é o meu negócio e você não tem nada que querer enquanto EU não souber o que tenho que saber e, em segundo lugar, você não tem a menor capacidade de saber quais são as informações necessárias. Não quero ser indelicado – acalmou a voz –, vem aqui um pouquinho.
Foram até a janela.
- Tá vendo esse monte de janela? Esse monte de apartamento?
- Sim.
- Quantos mortos você acha que tem nesse prédio da frente?
- Acho que nenhum – falou tímido, constrangido com a pergunta.
- Eu digo a você, existem muitos mortos nesse prédio, dezenas – falou sério, olhando para frente – São pessoas mortas, esquecidas por alguém ou por algo. Você conhece alguém chamado Ezequiel? – virou o rosto.
O homem sentia-se perfurado pelo olhar do gordo e confuso com aquela conversa.
- Nn não.
- Você acredita que exista alguém com esse nome?
- Sim, claro!
- Você sabe me dizer se esta pessoa está viva ou morta?
- Viva, não é isso?
- Como você sabe se não a conhece? Você supõe a existência de uma pessoa com esse nome, mas se você não a conhece, ela não existe para você. Pode existir para outras pessoas, mas para você ela está morta...tanto faz, entendeu? Como você quer que eu mate uma pessoa que está morta para mim? Você precisa dar vida a esse cara – apontou para a foto – para que eu possa matá-lo. Não é difícil. Tá vendo aquela loira ali – apontou para o mural? Mandaram matá-la por indeferir um processo contra um assassino. Este aqui foi uma mãe que me mandou matar porque ele levava droga ao filho dela na clínica e este aqui porque matou o filho de um fazendeiro numa invasão de terra. Eu não me importo com os motivos, todos têm explicações quando desejam a morte de uma pessoa. Eu executo porque sou pago para isso...e bem pago. Agora me conte por que você quer matar esse homem.
Sentaram-se novamente. O homem recobrou seus sentidos.
- Ele me traiu.
- Sim, e o que mais?
- Ele não tinha nada quando o conheci, dei estudos, formação, depois a gerência de uma unidade importante do grupo. Quando ele assumiu, me deu um golpe que vim a descobrir há pouco tempo. Desvio de recurso para uma conta fora.
- Sei, não precisa de mais detalhes. Por que você não o denuncia? Acredita mesmo que matar seja a melhor solução? Você acha que assim arranjaria a senha da conta para pegar de volta o dinheiro? Ou é orgulho?
- Ele me traiu!
- O orgulho é um sentimento selvagem. Não sei se percebeu, mas gosto de pensar nestes casos extremos que levam as pessoas a procurarem uma pessoa como eu e posso dizer que o orgulho é o mais primitivo, vil dos sentimentos que movem a gente. É uma mistura de indignação própria e culpa que sempre é jogada em cima de alguma coisa.
Silêncio e desconforto atingiram o estômago do homem. O gordo continuou.
- Eu sempre pergunto nesses casos de traição: porque você mesmo não o mata?
- Tenho um nome a zelar.
- Está sugerindo que eu não tenho um nome a zelar? Ok, são trinta mil e você escolhe como. Enforcado, queimado, tiro, afogamento, veneno...Fique a vontade.
- Tanto faz, só o quero morto.
Mais uma vez, um desconfortável silêncio na sala. O gordo foi até o sofá do homem.
- Você sabe que a culpa é sua, não sabe?
- Como assim?
- Você o criou, quis subverter a ordem das coisas. Adestrou um leão e acreditou tanto no seu poder que o colocou para dormir em seu quarto. Você mostrou a este homem o quão injusto e filho da puta é você e o mundo.
- Você não está entendendo, eu ajudei aquele homem, não sou culpado.
- Esperava que dissesse isso mesmo... é uma questão de ponto de vista. Esqueça isso – o gordo caminhou com o homem até a porta – traga o dinheiro amanhã e as informações de rotina para o serviço.
- Ok, trarei no mesmo horário.
O gordo abriu a porta e estendeu a mão. Mais estendido ainda foi seu olhar para os olhos do homem.
- Gostaria de pedir também que trouxesse uma foto sua – leve sorriso. Foi um prazer conhecê-lo.
A frase veio com peso e a estranha sensação de que ele teria que voltar lá no outro dia. O homem desceu as escadas atordoado com aquela situação enquanto o gordo perdia seu olhar na arrumação do mural.

O lado de dentro...sublime

O lado de dentro...sublime