“Não
me pergunte por que - Quem - Como - Onde - Qual - Quando -O Que? Deus, Buda, O
tudo, O nada, O ocaso, Como o cosmonauta busca, o nado, o nada. Seja lá o que for,
já é. Não me obrigue a comer, O seu escreveu não leu. O pau comeu na cabeça de
Dr. Don Sigismundo porque sem querer cantou de galo que cada cabeça era um
mundo, Gismundo. Antes de ler o livro que o guru lhe deu você tem que escrever
o seu.”
(Todo mundo explica - Raul Seixas)
O materialista e ateísta francês Michel Onfray inicia seu tratado
de ateologia com a imagem de terras como Israel e a Judeia, lugares em que o
sol queima os rostos, resseca os corpos, assedenta as almas e gera desejos de
oásis. Como uma relação causa e efeito, essa condição local gera “vontades de paraísos em que a água corre,
fresca, limpa, abundante, em que o ar é doce, perfumado, acariciante, em que
abundam os alimentos e bebidas. Os além-mundos de repente me parecem
contramundos inventados por homens cansados”[1].
O “Tratado de ateologia: física da metafísica” tem como meta tomar o trampolim
da razão iluminista e da ciência para solapar e desconstruir as religiões
monoteístas, ou seja, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Para isso a
passagem acima toma a necessidade fisiológica da carência para justificar a
necessidade de deus. Mas ocorre que já de entrada as coisas não saíram como a
encomenda. Talvez Onfray desacredite da metodologia de pesquisa antropológica
ou na teoria da atividade[2]
como formas científicas de conhecimento, ou - o que me parece mais provável – as
desconheça e tenta imprimir ao leitor desatento uma causalidade aparente. Não é
preciso referencial antropológico ou teórico para saber que um conjunto de
pessoas cuja vida esteja limitada a um bioma conhece em profundidade as
possibilidades vitais deste local pois lá sobreviveram. Assim, quem vive no
deserto não reclama do sol, reclamaria talvez da neve. Um israelense jamais
saberia antes das navegações qual seria o gosto de uma jaca ou um abacaxi[3]
para desejar as frescas frutas que desconhece? Do mesmo modo, não se encontra
nas constelações do sistema astronômico Tupi, o leão, sagitário, ou libra, pelo
fato de simplesmente estes índios jamais terem visto tais seres, mas aqui sim,
temos a constelação da anta e da ema por exemplo[4].
Aliás, o determinismo geográfico “sutilmente” implantado por Onfray na passagem
supracitada para arrebatar seu leitor é amplamente superado pelas Ciências –
com maiúscula – sociais desde “Os Sertões” de Euclides da Cunha, portanto a
mais de 60 anos. De modo que Onfray, toma o outro pelo ponto de vista do seu
referencial europeu e o desfigura no tempo e no espaço. E se considerarmos
os conhecimentos antropológicos há relação direta entre o estabelecimento de
culturas e rituais e os astros, as colheitas, os ciclos naturais e o sol. Em
última instância as religiões vêm da areia como tudo, mas seria autárquico
demais supor que deus é inventado e que esta invenção advém de do medo. O que
ocorre é precisamente o contrário, a veneração das bonanças está mais próxima
da metafísica deísta do que o medo. O referencial autocentrado pode não ser um
deslize consciente do autor mas revela algo de precioso que pretendo
desenvolver neste ensaio: o relativismo filosófico é o instrumento que oferece
contundentes críticas ao ateísmo sem ser, para isso, deísta; e o relativismo
político, pensado na esfera prática da vida pública, oferece melhores soluções para
o problema da invasão religiosa nos poderes da república quando a crença
privada torna-se assunto público e organiza-se também para os outros o mundo
que convém. Assim, o ateísmo militante mostra-se não somente desnecessário,
como inócuo, estéril, proselitista e presunçoso. Características nocivas a
qualquer visão de sociedade que se pretenda livre e democrática.
Ainda
assim, o esforço de Onfray é válido enquanto instrumento de reflexão e debate e
enquanto crítica contundente às religiões dominantes do ocidente. Estamos hoje
no Brasil e no mundo vivenciando um avanço dos grupos religiosos organizados e
eventualmente fundamentalistas dentro do poder público e sobretudo na mídia por
meio de canais de televisão comprados e cuja programação não se destina
diretamente ao público enquanto concessão de TV. Diante disso é preciso
repontuar o papel das religiões na democracia moderna. Onfray escolhe o caminho
radical: o de defenestrar os monoteísmos apontando as suas incongruências. Mas
tal caminho, entretanto, não se desdobra facilmente na solução de problemas
reais que as democracias enfrentam com as religiões. Para tal empreitada, o
autor invocará uma conduta iluminista, ou ultrailuminista, que eleva a razão, o
conhecimento e a ciência produzidos até hoje para defender o ateísmo e contra
as religiões. Uma física da metafísica, portanto uma real teoria da imanência e
uma ontologia materialista. A parábola
citada no início inaugura a crítica mostrando – ou tentando - que deus é uma
invenção devida ao ser humano ser incapaz de lidar com a realidade como a morte.
Neste sentido a religião é uma neurose e uma psicose e o silêncio dos deuses
permite a tagarelice de seus ministros. Deus não morreu e é precisamente por
ele não ter morrido que tudo é permitido. E para organizar a cruzada contra
deus, os objetivos iniciais da ateologia são: 1)
desconstruir os três monoteísmos; 2) desmistificar o judeo-cristianismo e o
islã; 3) desmontar a teocracia (este é o caminho que Onfray percorre no
livro).[5]
Nos monoteísmos os deuses são sempre vingativos, agressivos tal qual os homens.
As três religiões convidam a renunciar ao
viver aqui e agora sob pretexto de que um dia será preciso consentir nisso.[6]
Os monoteísmos odeiam a inteligência pois ela pode
lhe discordar e como consequência criam listas de livros não permitidos ou
censuram suas publicações. E como odeiam a inteligência odeiam também a Ciência.
Quando eles a desenvolveram era apenas como forma de aprimorar o credo como por
exemplo o geocentrismo traduzido de Tomás de Aquino, a geografia e astronomia
islâmica para saber onde está Meca. Mas uma ciência pela ciência os monoteísmos
rejeitam.[7]
Prescrevem exortações, proibições e restrições pois
só se mede a obediência com as proibições em torno do lícito e do ilícito que
elas mesmas determinam. As religiões são obstinadas
pela pureza. Desejam o inverso do real negam a matéria e a materialidade.[8]
Ainda assim controlam o terreno como alfandega do mundo celeste aplicando suas
restrições para medir a possibilidade de acesso ou não ao mundo perfeito.[9]
Todos os monoteísmos odeiam as mulheres e as subjazem. Gostam apenas das mães e
das esposas, dóceis. Priorizam a fertilidade e uma mulher incapaz de reproduzir
é rechaçada. Eles tolhem a sexualidade, apreciam a castração e a supressão da
libido. Assim, e talvez pela mesma razão amam as mutilações da carne.
Especificamente no cristianismo, não há provas de que Jesus existiu, mas há apenas
um signo de sua existência.[10]
Em um período de extrema pobreza o surgimento de um messias pode ser mais bem
compreendido. Paulo fora o grande responsável por tornar jesus um ser temível e
Constantino foi aquele – psicopata – que fez de Jesus a arma para perseguir e
matar milhões de pessoas. Os três livros sagrados dos monoteísmos, ou seja, a
bíblia cristã, o corão islâmico de a torah judaica são construções posteriores,
alteradas, reeditadas e que demoraram muito mais para chegarem a forma que
estão hoje do que se supõe. Para as religiões é interessante que este processo
histórico de construção se perca, pois reforça a ideia mística de um livro
pronto erigido por deus[11].
São ao todo 20 séculos para a construção total destes livros repletos de
contradições. Afirmam algo para negá-lo depois e isso possibilita uma
multiplicidade de discursos e assimilações. Qualquer vertente ética encontra
consonância nos textos. Esta inflexão lógica é perigosa pois se os livros são
“Verdadeiros” então tudo neles também o é. Hitler usou a bíblia por exemplo.
Ademais, tanto o vaticano[12]
quanto o islã[13] acolheram
o nazismo. A união dos monoteísmos com o estado possibilitou uma reafirmação do
poder de ambos. O príncipe representante de deus na terra, o padre fornecedor
de conceitos do príncipe e o soldado força bruta do padre.[14]
E neste sentido, toda teocracia torna impossível a
democracia. Melhor: uma suspeita de teocracia impede a própria existência da
democracia.[15]
Aqui já ao
final do livro, depois de destilar sua retórica é que o tema da realidade
prática surge quando a vida pública é influenciada pelas religiões e a
necessidade de uma separação efetiva entre igreja e estado. Não basta uma
laicidade do estado pois, para ele essa laicidade é falsa e contaminada de
cristianismo. A laicidade – e este ponto é de fundamental interesse para este
ensaio – é relativista segundo Onfray, mas a episteme do funcionamento das
coisas é cristã. O relativismo da laicidade luta para permitir que cada um
pense o que quer, que acredite em seu deus, contanto que não demostre
publicamente. Mas publicamente a religião laicizada de cristo comanda o baile.[16]
O que ele pretende é superar essa laicidade relativista, que é danosa pois
coloca em equivalência o erro e a verdade, o falso e o verdadeiro, o mito e a
razão, magia e ciência. Tais equivalências são absurdas para Onfray e é
precisamente na força desta equivalência que pode residir talvez melhores
alternativas práticas. Mas antes de prosseguir é preciso algumas ponderações
sobre o livro de Onfray.
Michel diz ter
constatado (como?) o quanto os homens fabulam para
evitar olhar o real de frente. “Os homens evitam o trágico”. Parece plausível que muitas pessoas – eu
dentre elas - prefiram o aprazível ao sofrimento e seriam capazes de abdicar de
ações em nome da tranquilidade. Mas a pergunta é ainda maior: de quais homens
ele se refere? Meu pai que morou na rua, foi preso político e conseguiu de
lixão em lixão vender livros? A mim parece que ele olha de frente a realidade,
sobreviveu acima de tudo. Será mais distante no tempo, na origem das
sociedades? Uma classe geral de homens unidos que por generalização absurda se
chama de humanidade? Provavelmente ele se refere do mundo ocidental e sua
história nefasta, mas paira por detrás do jogo das palavras o velho estigma do
filósofo com soluções generalistas e universais que supõe dar conta de uma
realidade. Paul Feyerabend em seu livro “Adeus à razão”, é cirúrgico quando
aponta o abuso de alguns intelectuais. Muitos filósofos, diz o anarquista
epistemológico,
“...definem aquilo que é
necessário saber e aquilo que é bom para a sociedade. Muitos intelectuais são a
favor dessa abordagem autoritária. Eles podem transbordar de preocupação por
seus pares, os outros seres humanos, podem falar de “verdade”, “razão”,
“objetividade” e até de “liberdade”, mas o que realmente querem é o poder para
reformar o mundo em sua própria imagem” (FEYERABEND, 2011. Pg.71)
Ou ainda,
já que as aspas foram inauguradas:
“Desde o começo, os filósofos
“críticos” definem as relações humanas a sua própria maneira intelectualizada.
Parabenizando a si próprios por sua tolerância, eles são ou ignorantes ou
desonestos, ou (minha suposição) as duas coisas” (FEYERABEND, 2011. pg 105)
Não existem
coisas em si como homens, religião, deus ou ateísmo. Não se pode atribuir aos
monoteísmos o apedrejamento de uma mulher iraniana, o massacre palestino ou a
inquisição. Da mesma maneira não se pode atribuir aos iluministas o positivismo
e o epistemicídio da verdade que produziu uma bomba atômica. É de pessoas que
falamos e da ação delas individualmente ou coletivamente por meio de suas
instituições. O que seria uma ética pós-cristã ou francamente laica?[17]
Devemos sim nos interpolar sobre a real existência de éticas universais, ou
mesmo que o comportamento frente a realidade possa ser determinado de acordo
com essas éticas. A religião, este corpus da ética, é o que produz a
menoridade, diz ele. Kant que nos perdoe, sua anedota foi válida frente ao que
se interpunha, mas menoridade agora é produzida por faltas de oportunidade,
acesso a educação e meios culturais, lazer, exclusão e marginalização. De que
adiantará ao sujeito menorado ter consciência racional de sua mazela sem que
estejam estabelecidas as possibilidades de enfrenta-las? Apropriado das classes
universais como a religião, Onfray trava sua batalha com o moinho de ventos –
literalmente – munido de rancor do passado das religiões e com isso consegue
apenas não visar o presente e o futuro. A razão iluminista serve para esta
batalha do mundo das ideias, mas não foi a razão ou o iluminismo, mas uma fé
rígida (em deus ou no marxismo) a força preservadora mais poderosa nas prisões
de Hitler[18]
O iluminismo, da forma
que os manuais de história ensinam, foi um movimento filosófico do século XVIII
que pregava o esclarecimento como forma de emancipação intelectual. Dando
continuidade ao racionalismo do século XVII que rompeu com muitos dogmas da
Igreja, o iluminismo preconiza a razão como meio de conhecimento mas também uma
participação ativa nos debates, levar as discussões às diversas camadas da
sociedade sempre tendo o homem como medida. A universalidade, a finalidade
humana das ações e a autonomia são princípios determinantes deste período.[19] E
são estes princípios que Onfray reconvoca para os dias atuais na forma de
enfrentar a presença da religião nas instituições públicas. Mas a prática e o
tempo mostraram que este iluminismo vencedor da história acabou por apenas
substituir dogmas. Antes as histórias eram usadas na
idade média e depois, uma vez mais, no iluminismo para instruir os fiéis e
ensinar-lhes as maneiras sutis e aparentemente inocentes que o diabo (ou o
irracional) pode usar para se insinuar nas suas vidas.[20]
O Iluminismo parece pressupor que todos os seres são exclusivamente racionais e
podem perceber com olhos próprios as inconsistências do mundo e repensá-las sob
um ponto de vista particular. Ele presume que o único meio possível de discurso
é o racional. Quem foi o ser a afirmar que coisas conflitantes sobre uma mesma
situação requerem uma solução única? Tanto a religião quanto o ateísmo comungam
deste absolutismo. A verdade está em deus para um e na ciência para outro. Mas
qual verdade? O filósofo da ciência Paul Feyerabend defendeu amplamente que não
existem padrões de conhecimento científico universalmente válidos.[21]
O silogismo aristotélico, o empirismo e o método indutivo de Bacon, o método
hipotético-dedutivo cartesiano, o modelo nomológico de Hempel, o falseacionismo
de Popper, os paradigmas científicos de Khun, os conceitos nucleares de
Lakatos, todos os esforços de compreender melhor ou encontrar uma unidade que
pudesse se aproximar de uma definição da prática cientifica chafurdaram e
nenhum deles estava errado. Não existe “a ciência pela ciência” como necessita
Onfray para seu projeto. E não existe por duas razões. A primeira é por não existir
nada em si mesmo; e a segunda é que os próprios cientistas e os filósofos da
ciência não conseguem encontrar algo que a identifique cabalmente. O iluminismo
é um slogan e não uma realidade.[22]
Bakunin
alertou sobre o reinado da inteligência científica ser o mais autocrático,
déspota, arrogante e elitista de todos os regimes. A ciência e as religiões são
tradições e como tais devem ser tratadas de maneira igual e isto significa os
mesmo direitos e oportunidades dentro de uma sociedade. Isso implica uma
discussão de valores. Um médico em missão
numa aldeia prescreve um raio X para detectar um problema e o nativo lhe diz
que o que ocorre dentro dele não é de interesse de ninguém. Neste caso o desejo
de conhecer e eventualmente curar da tradição científica se confronta à
tradição da pessoa. Isso é falar de valores. O relativismo emerge aqui como um
caminho diante da luta cega da verdade científica contra a verdade religiosa e entre
uma verdade e outra, olhemos para a realidade. O fato concreto que enfrentamos
hoje em uma grande amostra de democracias modernas pelo mundo é a expansão e o
poder dos grupos religiosos dentro das instituições públicas e dos processos
decisórios. Onfray opta diante do problema prático, por uma armada contra os
monoteísmos, o que efetivamente não resolve o problema. O relativismo
possibilita um caminho, mas em virtude da polissemia carrega pelo termo,
precisamos dizer qual relativismo se apresenta.
Existem
dois tipos de relativismo: o político e o filosófico. O relativismo político
defende que todas as tradições têm direitos iguais e o mero fato das pessoas
terem organizado a vida de acordo com certa tradição é suficiente para dar a
essa tradição todos os direitos básicos. Um argumento filosófico para defender
o relativismo político pode mostrar que as tradições não são boas ou más, mas
simplesmente são e que assumem qualidade positivas ou negativas dependendo do
ponto de vista de outras tradições.[23] O relativismo filosófico é a doutrina de que todas as
tradições, teorias e ideias são igualmente verdadeiras ou falsas. Para ficar
clara a distinção de ambos, o primeiro (político) lida com direitos e
estruturas, já o segundo com crenças e atitudes. Essa diferença é fundamental
pois Onfray, de maneira incontestável, critica a laicidade colocando em
equivalência o erro e a verdade, o falso e o verdadeiro, o mito e a razão, está
se referindo ao relativismo filosófico, o do mundo das ideias contrapostas e
equivalentes. Mas em uma discussão sobre a sociedade que vivemos, faz-se necessário
um relativismo político.
Em primeiro
lugar, se podemos considerar que vivemos um uma democracia moderna e os
sujeitos se dispõem nela, de quais sujeitos falamos? Stuart Hall dá grande
contribuição quando distingue quais são os sujeitos do iluminismo e da
sociedade pós-moderna. O sujeito do Iluminismo precisa ser centrado, unificado,
dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação. O centro essencial
do eu é a identidade de uma pessoa. Uma concepção individualista (masculina na
maioria das vezes). Mas os tempos de hoje, que alguns chamam de pós-moderno[24]
não guardam mais esta dimensão de sujeito. O próprio processo de identificação,
através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais
provisório, variável e problemático. Sabemos do papel das emoções, da
subjetividade e do subconsciente em nossas vidas. O sujeito pós-moderno tem
identidade móvel, temos contatos com culturas diversas, internet, globalização,
identificamo-nos com um espectro de símbolos e não somos nenhum deles. O
sujeito de hoje pode perfeitamente apertar o terço na hora do pênalti, jogar os
búzios para descobrir seu orixá, ler as mãos com a cigana analfabeta, discutir
os signos para impressionar uma companheira(o) e, depois disso, ser partícipe ativo
das discussões democráticas, defensor de um estado laico. Estamos falando de
uma sociedade democrática e dos sujeitos que podem fazer esta sociedade
possível.
A democracia é um meio – não um fim
- para conquistar quaisquer demandas que um conjunto heterogêneo de pessoas
deseja, por mais difícil que possa ser o estabelecimento das equidades de
tradições. Em uma sociedade livre e democrática, todo cidadão deve ter o
direito de buscar a verdade da forma que quiser. As sociedades dedicadas à
liberdade e à democracia devem ser estruturadas de uma forma que dê a todas as
tradições oportunidades e direitos iguais, ou seja, o mesmo acesso aos recursos
federais, as instituições educacionais, às decisões básicas.”[25]
Sociedade democráticas submetem questões importantes ao debate público.
O que conta
em uma democracia é a experiência dos cidadãos, isto é, sua subjetividade e não
o que pequenos grupos de intelectuais ou militantes autistas declaram ser real
(se um especialista não gosta das ideias das pessoas comuns, tudo o que ele
precisa fazer é conversar com elas e tentar persuadi-las a pensar de maneira
diferente; ao fazê-lo, ele não deve esquecer de que é um pedinte e não um
professor tentando socar algumas verdades na cabeça de alunos de castigo). (FEYERABEND,
2010, pg 357)
Sob este ponto de vista seria legítimo argumentar que no caso brasileiro
é justo que os credos tenham direito de manifestação e que obtiveram seus
cargos eletivos mediante um processo idôneo e democrático. À luz deste
legalismo sim, mas basta um olhar mais atento para percebermos que cá não é
isso que ocorre. Não estamos mais no século XVIII em que o combate à religião
era um imperativo para desconstruir milênios de dominação. Abrimos lá a
clareira para que passasse o racionalismo, o positivismo o cientificismo e
substituímos os deuses. Agora, os inimigos são outros. Conhecimento é negócio,
religião é negócio, educação é negócio. O público se dilui, terceiriza funções,
assimila responsabilidades e medeia conflitos enquanto os conglomerados se
formam, pastores deliberadamente se utilizam do púlpito para se fazerem
deputados e aumentaram seus poderes. Outros compram canais de TV (concessões
públicas) para produzir proselitismo 24 horas por dia sem nenhuma contrapartida
ao bem público. Se os fiéis são ordenados a votar o fazem pela “natural
espontaneidade’ democrática. A mim parece que neste sentido o problema concreto
se dá na constituição dos poderes que permite determinados tipos de
empoderamento a partir dos cargos eletivos. A pergunta simples revela o grau de
preocupação. Por quais razões um sujeito investe dinheiro próprio, de empresas
e pessoas para eleger-se se somadas os salários e as verbas de gabinete nos
quatro anos não pagam a campanha feita? Evidentemente o problema está na
constituição dos poderes da república e em sua sistemática de
representatividade. Se o que regula a compra de um bem público por uma igreja é
unicamente o mercado, claro está que o estado, nesta lógica neoliberal, tem
pouco poder de regulamentação e nenhum de regulação. Uma vez mais evidentemente
também nas condições de acesso à educação e meios de cultura que faz com que
milhares de pessoas sejam excluídas e tenham no voto quase nenhum significado e
no pastor ou na paróquia algum tipo de esperança de prosperar em um mundo
desigual. E a solução é senão política, por meio de reformas em que sejam
respeitadas as tradições todas em igual direitos e oportunidades. Não se trata
de proibir concessões, mas de regulamentá-las e possibilitar que outras
tradições se expressem nelas. Mas desta discussão, pela terceira vez,
evidentemente o problema não está com o cristianismo, ou o judaísmo ou o
islamismo.
Nem palavras e tampouco argumentos racionais modificam uma
democracia, mas sim um debate público. Debates públicos são sobre as
necessidades dos cidadãos, não devemos esquecer, e somente eles podem ser os
melhores juízes dessas necessidades. São os cidadãos e não grupos especiais que
tem a última palavra na decisão dos seus negócios. Se a democracia moderna se
fundamenta sobre os direitos e a representatividade é de ser questionar a
tentativa de suprimir direitos de expressão e credo religioso.[26]
Edward
Wilson nos lembra, a religião perdurará por muito
tempo como força vital na sociedade[27].
Como o gigante mítico Antaeus, que extraía energia da sua mãe, a Terra, a
religião não pode ser vencida por aqueles que meramente a desmerecem. Não se
trata de uma guerra, mas de equidade de oportunidades e direitos a todas as
tradições. Substituir a teologia pela
filosofia, como defende Onfray é como trocar a carroça pelo ônibus. Um é mais
tosco, apela para os argumentos de força e autoridade quando apertado, anda
devagar e vai longe como se é amplamente demonstrado. O outro veio para
substituir o antiquado, reveste-se de mecanismos rebuscados e metodológicos,
afirma-se produtor de conhecimento, mas não oferece nada de novo. Em ambos, o
que os une, é que se tem sempre a falsa sensação de estar no comando dos rumos.
A vida é
feita de agruras, bonanças perdas ganhos. É diversa e tudo o que pode acolher é
legítimo. Não se podem ignorar as religiões e as tradições enquanto amuleto
metafísico. A maturidade iluminista de Kant não foi apresentada aos negros, que
ele julgava inferiores. A estes o castigo físico. O iluminismo ocorreu em uma
época em que alguns queriam afastar a religião porque em suas perspectivas ela era
nociva, mas na perspectiva de outros a religião não, ao contrário, a religião era
e é algo bom para muitos. Antes de ela ser um negócio. E hoje ela o é por
contingências neoliberais. Independentemente disso, a criança precisa da
segurança dos pais. O adulto precisa da segurança dos amigos. Mas o iluminismo
tira isso e coloca só o conhecimento. A mim não vale. De que servem as partículas elementares quando eu quero me
enforcar de desespero? Para isso o iluminismo e o ateísmo não trazem nada. Não
existe a “vida em geral” e o conhecimento filosófico é conhecer as pessoas em
suas individualidades. Aceito conselhos dos meus amigos que me conhecem, eles
podem estar mais próximos de me ajudar, não o materialismo frio e racional que constrói
uma estrutura que subjulga a todos os seres humanos e diz "nós somos os administradores dessa estrutura
e se vocês não seguirem exatamente o modo dessa estrutura acontecerá algo terrível
a vocês". O nome disso é tirania e toda tirania resulta da completa
ignorância. “Isso é o homem, a verdade é
negar deus ou isso ou aquilo... blá...blá...blá. Nós pesquisamos, produzimos
coisas, aceitem e comam a arvore do conhecimento”. Os povos têm preocupações mais prementes do que a
metafísica. E não me refiro aos tempos longínquos da formação das sociedades -
também - mas pergunte às meninas sequestradas e estupradas pelo Boko Haram se
elas vêm em deus a razão de seu problema. Foda-se o significado de razão ou
deus, elas querem que aquilo passe, querem se ver livres. Não há razão ou deus
transigente ao sofrimento ou à angústia dos problemas imediatos. O que
conforta é o que conforta e assume diferentes nomes e papeis.
Referências
CUNHA,
Euclides da. Os Sertões: a campanha
de canudos (vol.I e II). 1902. Ed. Três, São Paulo.
FEYERABEND,
P.. Adeus à razão. Tradução de Vera
Josceline. São Paulo: Editora Unesp, 2009.
FEYERABEND,
P. A ciência em uma sociedade livre.
Tradução de Vera Mello Joscelyne. São Paulo: Ed. UNESP, 2011
HALL,
Stuart. A identidade cultural na
Pós-Modernidade. Rio de Janeiro, DP&A Editora, 1997.
LIMA,
Flavia P., MOREIRA, Ildeu C.: Tradições
astronômicas tupinambás na visão de Claude D’Abbeville. Revista da SBHC,
Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, p. 4-19, jan. — jun. 2005
ONFRAY,
Michel. Tratado de Ateologia: física da
metafísica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014.
RIBEIRO,
R. J. A Democracia. 1. ed. São
Paulo: Publifolha, 2001
SOUSA
SANTOS, B. Pela mão de Alice: o social e
o político na pós-modernidade. 6. ed. São Paulo: Cortez. 1999
[1] Onfray, M. (2014, pg XIII)
[3] Frutos típicos do
Brasil
[4] Lima & Moreira,
2005
[5] Onfray (2014, pg. 42)
[6] Ibidem pg 52
[7] Ibidem pg 67
[8] Ibidem pg 69 e 79
[9] Ibidem pg 82
[10] Ibidem pg 98
[11] Ibidem pg 132
[12] Ibidem pg 157
[13] Ibidem pg 142
[14] Ibidem pg 152
[15] Ibidem pg 151
[16] Ibidem pg 187
[17] Onfray, M (2014, pg 42)
[18] Feyerabend, P. (2010,
pg 125)
[19] Todorov, (2013). O
espírito das luzes
[20] Feyerabend, P. (2010,
pg 138)
[21] Ibidem, pg 18
[22] Ibidem, pg 19
[23] A distinção entre os
relativismos e seu papel em uma sociedade livre se encontra em Feyeraben, P. A
ciência em uma sociedade livre. Unesp, 2011
[24] Sousa Santos,
Boaventura. Pela mão de Alice
[25] Feyerabend, P (2011, pg
50)
[26] Ribeiro, R.J., A
Democracia
[27] On human nature. Harvard university press, Cambridge, 1978