Antes havia o nada. A completa imensidão no qual
se misturavam a água, a lava, o céu e a rocha. E nesta dança cósmica de
milênios o céu se encheu de água que foi aquecida pela lava; a lava virou rocha
e esta, sob efeito das pisadas no pé que a água lhe mostrava virou areia. Como
no jogo do joquem-pô. E foi assim que nasceu o ancestral primordial. O que ele
fazia? O mesmo que todos os outros parentes menos ricos como a cabaça, o coco e
a pedra: era um recipiente. E como parte da sua existência, ele continha as
coisas todas que pudessem ser contidas.
Passou anos frequentando lugares nada populares:
cortes, casas grã-finas, condados, reinados e impérios. Afinal, aqueles da
origem eram símbolo do domínio da natureza que os homens sempre gostaram de
ostentar. Mas, como tudo neste eterno ciclo de vida que há nas coisas que
existem, um dia apareceu a prima rica nas cortes: feita de cristal. Muito mais
transparente, muito mais leve, muito mais delicadas as taças levaram os copos
de vidro a um êxodo interminável pelo mundo perdidos e desolados.
Sem saber como se adequar às mãos rudes dos
bárbaros, aquele período da história dos copos foi de intensos genocídios e
assassinados em massa. Caiam das mesas com uma frequência maior; eram atirados
contra os seres humanos e contra as paredes. Aliás, algumas mulheres ainda hoje
em dia, enfurecidas, mantêm este germe bárbaro e atiram copos nas paredes.
Muitos dos copos preferiram mudar de vida e se espalharam pelo mundo na forma
de jarras, garrafas, janelas, portas e até receptáculos de bolinhas de gelatina
em consultórios médicos.
Mas, quando tudo parecia degringolar para os
pobres copos, surge a rainha deles. Filha de um tal de Tio San, cuja ganância e
os olhos cifrados tinham o poder de transformar qualquer coisa em dinheiro: Nadir
emergiu no mundo dos copos como a grande mãe. Segundo Pedrão, o dono do bar que
frequentei muito tempo, no ano de 2010 todos os copos paridos pela mãe Nadir
empilhados completaram a volta ao mundo. E, dentre tantos filhos, o mais nobre
– ao menos para mim – dos filhos de Nadir foi ele: o príncipe da boemia, o
paladino da concórdia, nosso amado e idolatrado: O COPO AMERICANO!!!! [música
de coral]
Diferentemente dos outros parentes, o copo
americano tem uma vida intensa e curta. São encontrados principalmente em
bares, botecos e bibocas (BBB). São preenchidos e esvaziados com uma frequência
muito maior que as taças e as canecas. Os desafios são muitos nesta curta e
intensa vida de copos americanos. Bocas magras, secas, inchadas e fedidas
encontram no copo um afago. A pinga, a cachaça, o conhaque, o bombeirinho, a
maria mole e o synar compõem a sua dieta mais forte. No entanto, a cerveja é a
sua principal fonte de vida. Espumoso, cremoso e gaseificado, o líquido das
cervejarias se conforma com grande impetuosidade no interior de um copo.
E é aí que reside o grande predador dos copos
americanos. Os lábios boêmios são calmos, permanecem por muito tempo com os
cotovelos sobre a mesa, dialogam sobre os problemas dos homens. Divergem entre
eles, imergem em elucubrações existenciais sobre a sua insignificância, e tudo
isso diante de uma história de grandeza sucessos e insucessos que são os copos.
E por conta deste egoísmo em torno das questões do mundo dos humanos,
inebriados pelo efeito do que ingerem, os braços mais soltos esbarram nos copos
americanos e os empurram para o precipício da mesa. Quase nunca existem
sobreviventes nesta queda. Quando os mais ágeis conseguem evitar a caída o
líquido espumoso invade as calças dos que estão em volta.
Eventualmente o predatismo dos copos americanos
chega a níveis extremos, como me contou um dia um amigo no bar do Pedrão. “Um
gaúcho chegou, pediu um copo e lascou uma mordida nele, mastigou. Enquanto
falava e engolia cacos o sangue escorria de sua boca. Ele comeu dois copos em
uma noite.” Que tragédia! Tamanho final para a vida de um copo. Não poderia ser
mais duro.
E, assim, mastigado ou estraçalhado pelo
assassinato, a curta vida de um copo americano chega ao fim. Sem cerimônia,
varrido por uma vassoura velha, juntado na sarjeta e embrulhado em um jornal
velho, o copo se vai. Honrando sua tradição milenar e sempre pouco reconhecido
pelos insensíveis lábios humanos cuja vida tão efêmera os torna sedentos por
qualquer coisa que seja.