O carnaval. Ah, o carnaval. A cidade
sorria e dançava ao som das marchinhas, cuspia confetes e serpentinas para o
ar. Quase congelavam o tempo em uma euforia sem igual cortada por uma
gargalhada longa. Bêbados, abstêmios, certinhos, professores, alunos, doutores,
pais de família, ricos e pobres moviam suas pernas e braços ao longo da rua
como se esquecessem sua posição social ou respeito adquirido. E se lembrar da
folia e do doutor em êxtase, a estudante dirá: “mas tudo bem, era carnaval”.
Se olhássemos de baixo veríamos um
frenesi de pés e pernas ensinuantes e saltitantes. Pernas nuas e suadas no
calor dos corpos. E se olhássemos de cima veríamos as mãos erguidas em um
farfalhar dos ventos. Dedos apontados para o céu enluarado e braços periódicos.
A das fagulhas cintilantes dentro daqueles corpos brotavam desejos, liberdade e
compaixão. A crença na alegria era a única doença acometendo todos. E, deitado
no divã depois de um tempo, esvaziado de tudo aquilo o doutor dirá: “mas tudo
bem, era carnaval”
A silhueta sinuosa e as pernas duras se
encontram e tímidos se entreolharam. Sorrisos estampados, olhares perpassados
por espumas e cabeças conseguem se conectar. A dança é fulgurante e dos goles
de cerveja saiam cordas a enlaçar os dois. Disfarçam, giram, olham para outros
lados até que os olhos se cruzam e recomeçam o movimento em uma crescente de
expectativa e charme. Quando os dedos roçam sem querer no meio da baila um
arrepio percorre os corpos. Uma dúvida os ronda: é de fato recíproco? E podem
pensar: “é carnaval”.
O longo flerte emaranha as almas e
instiga os lábios. Ensaio da escola de samba do dançar-juntos, bloco pegar-na-mão
saindo para rua e de repente estão de mãos dadas girando para qualquer lado sem
se importar. Não dizem nada, só seus corpos falam. E as cinturas se juntam
timidamente se separando depois, e quando “O Pierrot apaixonado” toca nos
metais da banda, ele canta aos céus encarando sua colombina. E os braços se
enlaçam do outro corpo e os lábios se escorregam no outro lábio, e as línguas
se degustam em um frêmito de hálitos. E se virem, aquela força esparramada no
meio da praça em um beijo de cinco minutos dirão: “viva o carnaval”.
E eles saem da folia, correm de mãos
dadas e se beijam em cada esquina e se esfregam no muro. E se amam em um
silêncio cúmplice. E de novo, e mais uma vez, descobrem cada poro dos corpos
úmidos e cada aroma escondido. A lisura de uma pele e a rigidez da outra se
espremem e suas bocas gemem e sorriem. E no atrito que gera a vida, a festa de
edifica na alma dos deuses e eles em uma plena felicidade pensam: “como é bom o
carnaval”.
Despedem-se, fazem juras, dizem até
logo. Pensam um no outro e na magia instaurada entre os dois vivem de memória.
Nunca mais se verão? Não se veêm, sofrem, choram em uma devoção carnal e, pouco
a pouco esquecem. Casam-se, criam seus filhos, seguem a vida mas não perdem a
lembrança. Anos depois, recostados em seus divãs, o doutor e a paciente
poderiam ser os mesmos de um carnaval de outrora. Reconhecer-se-iam talvez
jamais, não são mais os mesmos. Rostos se vão, sensações perduram. Descobriram com
o tempo as chagas das conclusões reais dentre as quais está: “a vida não é um
carnaval”. E, ali, deitados em lados opostos do consultório, repletos de
angústias e recordações, sem se reconhecer, pensarão em silêncio: “era
carnaval”.