Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

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29 de setembro de 2008

O paraíso de Tião Durval

Tião Durval tinha um sítio no meio dos vales do norte paulista. Pequeno... é verdade, longe... é verdade, ruim de chegar... é verdade, mas era o paraíso para Durval. Uns cabritos aqui, uma jabuticabeira acolá, mangueira, pés de mandioca, galinhas poedeiras e codornas. Somam-se aos bichos menos importantes da propriedade, aqueles a quem Tião Durval denotava um carinho especial: Bucéfalo, seu grande parceiro, pangaré magrela, mas forte. Já subiu monte e carregou muito leite na charrete. Tinha também a Megera, a gata mais companheira que já existira. Caçava ratos como ninguém... a rainha do porão. Não miava, não ronronava, não defecava em lugares estranhos e estava sempre ao lado de Durval, lambendo seus pêlos pretos (os dela é claro), quando ele ficava em casa. Além do Mirveca, leitão volumoso e sonolento que adorava lamber a sola do pé do seu Tião. Era um momento único no dia. Depois de carpir o morro e arar três raias, cansado da soleira, ele se achegava no pé do chiqueiro, sentava no banquinho da ordenha, bem de lentamente ele tirava as botinas e logo o Mirveca se erguia. Era então tirar o meião e esticar um pé de cada vez, estava feita alegria.
- Oooo Mirveca, será que Deus inventô os porco pra mode lambê os pé dagente? Ele comentô arguma coisa cocê quando ocê nasceu?
O porco prosseguia na sua prazerosa tarefa, com os olhos fechados e o nariz suando.
Os animais eram a companhia de Tião Durval naquele sítio. Longe de vizinhos, viúvo, sem filhos, seu Durval, quando muito, ia para a missa ou para a zona das prima visitar Ritinha, uma baixinha invocada de papo largo. Mas era a Ritinha de Durval. Fora isso, quase contato nenhum com a cidade, o que plantava e criava dava pra viver. Treinar suas prosas com os bichos era hábito. De fato aquele era o paraíso de Durval. Íntimo com seus melhores amigos, sem preocupações e aborrecimentos. Mas, um dia, Megera se lambeu demais.
E toda pessoa sabe que gato preto quando se lambe demais ou vem chuva brava ou urucubaca das boas. E o pior é que o diacho do céu estava clarinho clarinho.
- Megerinha, que que ocê tá tramando?
Não precisa dizer o quanto estas coisas mudaram a rotina do seu Durval. Cabreiro, ficou em casa e sentiu o coração saltar quando ouviu o sino da porteira badalar. Escondeu o canivete na cintura e foi andando pra porteira.
- Aoa?
- Boa tarde! Como vai o senhor? – disse, sorridente, o moço jovem, bem vestido, que tinha pinta de pastor com juiz de direito e caixeiro.
“Que peste de sarafrário vem querê por aqui?” - Como o leitor ou leitora já deve ter se apercebido, eis aqui a principal característica de nosso Durval, coisa que ele sabia, mas de tanto ficar só no sítio acabou criando tal hábito. Ele só fazia perguntas. Seja nos pensamentos ou nas raras conversas, só saiam interrogações. Deve-se lembrar também que as perguntas quase nunca precediam uma resposta. Prossigamos.
- Que que cê ta fazendo aqui com essas roupa toda aprumada?
- Muito boa tarde senhor – sorriso na orelha – vim mandado aqui exclusivamente pra te apresentar uma coisa que vai mudar sua vida. Você tem muitos bichos aqui não?
- Num tá vendo que tenho?
- E você com certeza conversa com seus animais. Pois bem, o que eu vim te mostrar vai fazer seus bichos conversarem com você. Porque você sabe que eles te entendem, você fala o tempo todo, sabe quando eles estão tristes, quando estão felizes, sabe quando eles obedecem, quando o cavalo empaca e o leite da vaca empedra – a essa altura seu Durval começava a coçar a cabeça, ouvindo atentamente cada palavra sobre aquele produto.
- Você sempre quis saber o que incomoda tanto o galo pra ele gritar de manhã? Pois você agora vai saber não só o porquê, mas o quê ele grita.
- E comé que se faz isso? – se rendera ao produto.
- É simples. Basta tomar um vidro desse – sacou um frasco sujo de perfume com um líquido cor de bosta de bezerro - e pro resto da vida você vai poder ouvir e falar com os animais. Quer ver?
De repente o rapaz de terno deu uma torcida na garganta se aproximou da cerca na qual Bucéfalo comia sua grama.
- ihrihrihrihrbbrrrrrrr – soltou o rapaz.
Bucéfalo virou só o olho direito - o outro continuou olhando para frente -, depois o pescoço e respondeu:
- ihrihrihrbrr
- O seu pangaré chama-se Bucéfalo, mas você chama ele mesmo de Buci, às vezes de Bucizinho.
O pobre do Tião Durval corou por um momento, afinal apelidos íntimos não devem ser compartilhados desta forma tão impessoal. Mas, depois, ficou por demais inculcado.
- Quanto custa isso?
Feita a pergunta derradeira, só restou a Tião Durval pegar suas economias e dar ao rapaz prevendo a realização de um sonho, afinal aqueles eram seus amigos e entendê-los não tinha preço.
Tião recebeu em mãos o frasco com a poção e foi feliz da vida pra dentro de casa; com a fé que seus olhos construíram ao ver Buci conversando, fechou os olhos e bebeu o líquido.
- Arg, que diabo que é isso? - imaginando que aquilo tinha um gosto entre lodo e queijo minas, ficou vermelho, mas não vomitou. Dormiu.
Meio sem rumo, meio tonto, acordou no chão com uma dor de cabeça de arriá boi. Sentou-se no sofá.
- Ô Megerinha, que que me aconteceu? Ocê sabe?
Megera, na janela, olhava a paisagem fechando os olhos.
- Você é um burro! Isso que você é – e a gata virou a cabeça devagar para Tião, este esquecido da poção deu um pulo pra trás do sofá – Fica bebendo qualquer coisa, ou você acha que eu vou sair correndo no meio desse mato pra achar ajuda para um idiota que nem você?
- Cê tá louca megera? Que te deu? – e saiu depressa da sala. Quando chegou à porta ,havia uma barulheira maior que a da feira.
- Ih lá vem o homem – gritou o ganso – Cadê o milho? Safado!
- Isso, cadê o milho – as galinhas fizeram coro.
- VOU COMER VOCÊÊÊ! - uivava o galo saindo atrás de uma galinha qualquer.
Tião olhava atordoado, estranhando tudo.
- Ô chefe! Tô cansado pra caramba! - Bucéfalo falava com a boca cheia de grama - Não vai me montar hoje não, que se for eu empaco.
- Buci! Logo ocê?
- AGORA VOU COMER VOCÊÊÊ! – o galo ia para outra.
- Não vem não, nem olha pra cá! – a voz da vaca era mais estridente que a da cigarra - Você veio de manhã, espremeu a minhas tetas até não querer mais. Elas estão doendo, seu ogro. Não sabe apertar os seios de uma lady.
- Vem pra cá, meu lindo, que eu chupo seu pezinho – Mirveca se revelara uma peruona.
- Mirveca! Ocê é uma biba?
- Vêm, delícia, dá o pezinho para mim...uiiii!
E, o que era o paraíso, virou o inferno.

***

Quatro da manhã.
VOU COMER VOCÊÊÊ! O galo gritava, era hora de acordar. Tião revirava na cama.
Seu Tião não era mais o mesmo. Saía de casa e não falava mais com ninguém. Segurou por muito tempo aqueles animais até que, um dia, gritou em alto e bom som.
- Chega! Cês sabem a diferença entre bicho e gente? – tinha de ser uma pergunta.
Logo desceu chibata em todos.
A partir de então acabara a amizade. Todos os dias, ele pegava a vaca, dava-lhe um tapa e ordenhava sem delicadeza nenhuma; tirou Bucéfalo do pasto e colocou no celeiro; nem olhava mais na cara de Mirveca, que de depressão engordou ainda mais. Deixou de ser feliz. Passou a amaldiçoar o vendedor e a si próprio por tamanho erro. Os bichos por sua vez deixaram de ser simpáticos, obedeceram mais, com exceção de Megera, única a fazer o que queria por caçar os ratos. Com os outros, a força tratou de calá-los e manter o convívio.
- Acorda seu imprestável – falava Megera com voz melosa – Sabe qual a diferença entre eu e esses animais aí fora?
Pela primeira vez Megera vinha puxar conversa ... isso não era bom.
- Eu sei que você depende de mim... eles ainda não sabem. Você achou que ia ser mais feliz, mas não soube ouvir os animais. Pra você, nós te pertencemos e é isso que eu vou dizer a eles - Depois, que não quis ouvir nem falar, preferiu a chibata - Mas isso vai acabar seu imbecil. Pense como é ficar sem o leite, sem o trote sem a carne....
Antes que pudesse responder, a gata sumiu pela janela. E, pela primeira vez em muito tempo, Tião parou de pensar perguntas.

O lado de dentro...sublime

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