Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

28 de julho de 2008

Dandong, China, 28 de maio de 2003.

Esta é a sétima carta entre dois irmãos chineses: um Tài Tai Li de São Francisco (EUA), outro Lao Peng Li (eu) que foi à China devido a morte do pai. Acompanhe as cartas anteriores: primeira, de Aiko Koan, avisando a morte do pai; segunda, de Lao Peng Li, assim que chegou na China; terceira, de Tài Tai; quarta e quinta de Lao Peng e sexta de Tài Tai.


Jilin, China, 28 de maio de 2003.
Querido Tài Tai,

Desculpe a demora em lhe escrever. Isso se deveu, primeiro, aos acontecimentos que se sucederam aqui – e você deve ter ouvido – e, segundo, para que possamos deixar a folha repousar depois da tempestade e enfrentarmos juntos nossa distância.

Um dia, quando você tinha por volta de dois anos, papai pisou sem querer no se dedo do pé. Você chorou e ele o deixou chorar até cessar. Depois disso, você ficou uma semana sem rir. Lembro-me de mamãe ter dito “menino de força”. Vejo você ainda desta forma. Uma vingança sobre a qual não quero me estender nem lembrar. Estimo muito Tung e recuso-me a crer em tamanha crueldade que o levou a fazer isso e a narrar como me narrou.

Suas asas estão livres, espero apenas que elas não o conduzam às prevaricações as quais tenho lido. Tenho plena certeza de que isso não se repetirá e Tung, por mais amiga que seja, é ainda uma mulher da vida, desprovida de perspectivas duradouras. Espero que possamos ter boas notícias em nossas próximas cartas. Falo isso por não trazer boas notícias agora e por acreditar em suas cartas e que poderei escrever-lhe mais.

Comentei na última carta que receberia a visita de Aiko naquela noite. Isso aconteceu e pude saber muito dos acontecimentos que sucederam à nossa família desde que saímos. Inclusive as dores que cercavam nossa família com a perda de nossos irmão e mãe enquanto estávamos longe. Infelizmente, tenho pouco tempo para lhe contar e me dói bastante. Confesso que minha intenção ao encontrá-la era fugir dos acontecimentos e acabei me aprofundando muito mais neles. Naquela noite, Aiko me falou de uma jovem que esteve com o papai logo depois que mamãe nos deixou. Não falava com as pessoas e apenas ficava uma noite dentro de nossa casa e saía. Seu nome, segundo as poucas coisas que papai disse sobre ela, era Xiao. Nunca ele revelou que tipo de relação eles tinham. Entre papéis velhos de sua caixa, eu encontrei esse mesmo nome com um endereço e me dispus a encontrá-la.

Vim até Dandong, onde estou até agora, e não encontrei Xiao pelas pesquisas que fiz. Apenas algumas informações perdidas. Por isso me ausentei de te escrever. Estava tentando encontrar a única pessoa que esteve com nosso pai quando ele estava só. Entretanto, essa minha busca parece ter levantado poeiras até então bem quietas. Falo com Aiko uma vez por semana e nesta última ela me disse que pessoas estranhas com aparência de coreanos vizinhos estiveram perguntando por mim lá. E eu aqui do lado deles tentando procurar esta pequena. Não sei quais as circunstâncias que envolvem estes encontros com Xiao, mas tenho certeza de que é algo que requer sigilo. Ainda mais com as situações envolvendo a Coréia do Norte. Tenho até medo de escrever livremente.

Aqui, os chineses estão todos preocupados com as notícias vindas da Coréia do Norte. Depois da retirada do pacto nuclear, tudo se deu de forma muito corrida. Estão dizendo que eles já têm bomba atômica – não sei o que estão noticiando por aí, mas aqui não há dúvidas sobre as bombas atômicas do outro lado do rio. Conversei com o moço do correio, que diz não ter dúvidas de que foi nosso país que forneceu as informações e equipamentos para eles logo depois da intervenção, depois da guerra da Coréia. Você ainda não era nascido quando isso aconteceu e nem eu me recordo de tão pequeno. Vejo ao longe, do outro lado do Yalu Jiang, uma certa tranqüilidade na fronteira. Espero em breve voltar para nossas montanhas e descobrir a verdade.

Sei que retornarei para casa e tentarei descobrir o que cercavam esses encontros. Confesso que estou com medo. Precisarei de sua ajuda, inclusive se me puder enviar um pouco de dinheiro para estas investigações. Continue rezando por mim.

Um grande abraço de força e de coragem.

Lao Peng Li

10 de julho de 2008

Fábula do Conhecer

I

Pelo descampado campo
Trotando a passos leves
Vinha o cavalo sonhador.

O olhar fechado, os cascos batendo.
O cavalo mal ia percebendo
O fardo do seu labor.

Eis que, fatigado e feliz,
O sonhador começa a caminhar.
E vê, distante e bela, uma pequenina flor.

Tão pequena, mas tão imponente.
Uma planta forte e persistente
Por nascer só e desabrochar em cor.

Pétalas delicadas, bem cuidadas
Sem amigas ou pragas
Sem alguém para os olhos por.

Ali, a passo curto, o cavalo a notou.
A crina ondulante e a pétala dançante
Encontraram-se com temor.

- Que fazes aqui tão sozinha,
neste campo descampado?
Perguntou o sonhador.

- Que fazes aqui tão altivo,
neste campo descampado?
Respondeu e fina flor.

- Ora não sei, nasci para trotar.
- E eu nasci para desabrochar.
E riram com langor.

Assim, no poente do dia
O cavalo em companhia
Deitou ao lado da flor.


II


- Será que eu morrerei trotando
E você desabrochando?
O cavalo se pôs perguntar.

- Não sei te dizer de verdade,
mas se eu sair dessa terra, dessa realidade,
poderei não mais voltar.

O cavalo olhou de lado, comovido
E com a flor perto do ouvido
Silenciaram ao luar.

- É isso que você vê todos os dias?
Essa lua, essas estrelas e esse céu.
Não há como se cansar.

- Queria eu escolher o chão
onde fico e esparramo o grão.
Queria eu poder andar.

- Mas você pode linda amiga.
Não dê essa vida por vencida,
Daqui eu posso te levar.

- Conhecerá as rosas e as margaridas,
as orquídeas e tulipas floridas,
conhecerá tudo com o próprio olhar.

A flor, cautelosa e pensativa
Sentiu na brisa a alma viva
Sentiu o mundo lhe soprar.

- Não percamos tempo, vamos embora
vamos agora, conhecer a outra aurora
que se põe por trás do mar.



III


E contentes e resolvidos
Os dois seres sentiam-se impelidos
A cruzar o amanhecer.

O cavalo mordiscou o delicado caule
Levantou o dorso ao vale
E desatou a correr.

Os trotes rasgavam a relva
Subiam montes e corredeiras
Ao que se havia de conhecer.

Dali a flor foi vendo,
Chorando, rindo e conhecendo
O mundo além do ver.

E, aos risos e gargalhadas
A flor a trotadas largas
Foi murchando sem perceber.

Com o riso fácil e estampado
E o caule entretanto cortado.
A flor decidiu não mais viver.

O cavalo disparado a trote pleno
Não sentiu também o veneno
Que a fina flor pôs a sorver.

E, parando quase sem ar,
O sonhador resolveu sonhar.
E o chão sentiu o tremer.

E ali, numa outra vizinhança,
Com a mesma perseverança
Morreram sem o mundo conhecer.

O lado de dentro...sublime

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