Bueiros paulistanos inspiram vozes destiladas..

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10 de agosto de 2015

Em casa de materialista, o ateísmo é religião



“Não me pergunte por que - Quem - Como - Onde - Qual - Quando -O Que? Deus, Buda, O tudo, O nada, O ocaso, Como o cosmonauta busca, o nado, o nada. Seja lá o que for, já é. Não me obrigue a comer, O seu escreveu não leu. O pau comeu na cabeça de Dr. Don Sigismundo porque sem querer cantou de galo que cada cabeça era um mundo, Gismundo. Antes de ler o livro que o guru lhe deu você tem que escrever o seu.”
(Todo mundo explica - Raul Seixas)


O materialista e ateísta francês Michel Onfray inicia seu tratado de ateologia com a imagem de terras como Israel e a Judeia, lugares em que o sol queima os rostos, resseca os corpos, assedenta as almas e gera desejos de oásis. Como uma relação causa e efeito, essa condição local gera “vontades de paraísos em que a água corre, fresca, limpa, abundante, em que o ar é doce, perfumado, acariciante, em que abundam os alimentos e bebidas. Os além-mundos de repente me parecem contramundos inventados por homens cansados[1]. O “Tratado de ateologia: física da metafísica” tem como meta tomar o trampolim da razão iluminista e da ciência para solapar e desconstruir as religiões monoteístas, ou seja, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Para isso a passagem acima toma a necessidade fisiológica da carência para justificar a necessidade de deus. Mas ocorre que já de entrada as coisas não saíram como a encomenda. Talvez Onfray desacredite da metodologia de pesquisa antropológica ou na teoria da atividade[2] como formas científicas de conhecimento, ou - o que me parece mais provável – as desconheça e tenta imprimir ao leitor desatento uma causalidade aparente. Não é preciso referencial antropológico ou teórico para saber que um conjunto de pessoas cuja vida esteja limitada a um bioma conhece em profundidade as possibilidades vitais deste local pois lá sobreviveram. Assim, quem vive no deserto não reclama do sol, reclamaria talvez da neve. Um israelense jamais saberia antes das navegações qual seria o gosto de uma jaca ou um abacaxi[3] para desejar as frescas frutas que desconhece? Do mesmo modo, não se encontra nas constelações do sistema astronômico Tupi, o leão, sagitário, ou libra, pelo fato de simplesmente estes índios jamais terem visto tais seres, mas aqui sim, temos a constelação da anta e da ema por exemplo[4]. Aliás, o determinismo geográfico “sutilmente” implantado por Onfray na passagem supracitada para arrebatar seu leitor é amplamente superado pelas Ciências – com maiúscula – sociais desde “Os Sertões” de Euclides da Cunha, portanto a mais de 60 anos. De modo que Onfray, toma o outro pelo ponto de vista do seu referencial europeu e o desfigura no tempo e no espaço. E se considerarmos os conhecimentos antropológicos há relação direta entre o estabelecimento de culturas e rituais e os astros, as colheitas, os ciclos naturais e o sol. Em última instância as religiões vêm da areia como tudo, mas seria autárquico demais supor que deus é inventado e que esta invenção advém de do medo. O que ocorre é precisamente o contrário, a veneração das bonanças está mais próxima da metafísica deísta do que o medo. O referencial autocentrado pode não ser um deslize consciente do autor mas revela algo de precioso que pretendo desenvolver neste ensaio: o relativismo filosófico é o instrumento que oferece contundentes críticas ao ateísmo sem ser, para isso, deísta; e o relativismo político, pensado na esfera prática da vida pública, oferece melhores soluções para o problema da invasão religiosa nos poderes da república quando a crença privada torna-se assunto público e organiza-se também para os outros o mundo que convém. Assim, o ateísmo militante mostra-se não somente desnecessário, como inócuo, estéril, proselitista e presunçoso. Características nocivas a qualquer visão de sociedade que se pretenda livre e democrática.
Ainda assim, o esforço de Onfray é válido enquanto instrumento de reflexão e debate e enquanto crítica contundente às religiões dominantes do ocidente. Estamos hoje no Brasil e no mundo vivenciando um avanço dos grupos religiosos organizados e eventualmente fundamentalistas dentro do poder público e sobretudo na mídia por meio de canais de televisão comprados e cuja programação não se destina diretamente ao público enquanto concessão de TV. Diante disso é preciso repontuar o papel das religiões na democracia moderna. Onfray escolhe o caminho radical: o de defenestrar os monoteísmos apontando as suas incongruências. Mas tal caminho, entretanto, não se desdobra facilmente na solução de problemas reais que as democracias enfrentam com as religiões. Para tal empreitada, o autor invocará uma conduta iluminista, ou ultrailuminista, que eleva a razão, o conhecimento e a ciência produzidos até hoje para defender o ateísmo e contra as religiões. Uma física da metafísica, portanto uma real teoria da imanência e uma ontologia materialista. A parábola citada no início inaugura a crítica mostrando – ou tentando - que deus é uma invenção devida ao ser humano ser incapaz de lidar com a realidade como a morte. Neste sentido a religião é uma neurose e uma psicose e o silêncio dos deuses permite a tagarelice de seus ministros. Deus não morreu e é precisamente por ele não ter morrido que tudo é permitido. E para organizar a cruzada contra deus, os objetivos iniciais da ateologia são: 1) desconstruir os três monoteísmos; 2) desmistificar o judeo-cristianismo e o islã; 3) desmontar a teocracia (este é o caminho que Onfray percorre no livro).[5] Nos monoteísmos os deuses são sempre vingativos, agressivos tal qual os homens. As três religiões convidam a renunciar ao viver aqui e agora sob pretexto de que um dia será preciso consentir nisso.[6] Os monoteísmos odeiam a inteligência pois ela pode lhe discordar e como consequência criam listas de livros não permitidos ou censuram suas publicações. E como odeiam a inteligência odeiam também a Ciência. Quando eles a desenvolveram era apenas como forma de aprimorar o credo como por exemplo o geocentrismo traduzido de Tomás de Aquino, a geografia e astronomia islâmica para saber onde está Meca. Mas uma ciência pela ciência os monoteísmos rejeitam.[7] Prescrevem exortações, proibições e restrições pois só se mede a obediência com as proibições em torno do lícito e do ilícito que elas mesmas determinam. As religiões são obstinadas pela pureza. Desejam o inverso do real negam a matéria e a materialidade.[8] Ainda assim controlam o terreno como alfandega do mundo celeste aplicando suas restrições para medir a possibilidade de acesso ou não ao mundo perfeito.[9] Todos os monoteísmos odeiam as mulheres e as subjazem. Gostam apenas das mães e das esposas, dóceis. Priorizam a fertilidade e uma mulher incapaz de reproduzir é rechaçada. Eles tolhem a sexualidade, apreciam a castração e a supressão da libido. Assim, e talvez pela mesma razão amam as mutilações da carne. Especificamente no cristianismo, não há provas de que Jesus existiu, mas há apenas um signo de sua existência.[10] Em um período de extrema pobreza o surgimento de um messias pode ser mais bem compreendido. Paulo fora o grande responsável por tornar jesus um ser temível e Constantino foi aquele – psicopata – que fez de Jesus a arma para perseguir e matar milhões de pessoas. Os três livros sagrados dos monoteísmos, ou seja, a bíblia cristã, o corão islâmico de a torah judaica são construções posteriores, alteradas, reeditadas e que demoraram muito mais para chegarem a forma que estão hoje do que se supõe. Para as religiões é interessante que este processo histórico de construção se perca, pois reforça a ideia mística de um livro pronto erigido por deus[11]. São ao todo 20 séculos para a construção total destes livros repletos de contradições. Afirmam algo para negá-lo depois e isso possibilita uma multiplicidade de discursos e assimilações. Qualquer vertente ética encontra consonância nos textos. Esta inflexão lógica é perigosa pois se os livros são “Verdadeiros” então tudo neles também o é. Hitler usou a bíblia por exemplo. Ademais, tanto o vaticano[12] quanto o islã[13] acolheram o nazismo. A união dos monoteísmos com o estado possibilitou uma reafirmação do poder de ambos. O príncipe representante de deus na terra, o padre fornecedor de conceitos do príncipe e o soldado força bruta do padre.[14] E neste sentido, toda teocracia torna impossível a democracia. Melhor: uma suspeita de teocracia impede a própria existência da democracia.[15]
Aqui já ao final do livro, depois de destilar sua retórica é que o tema da realidade prática surge quando a vida pública é influenciada pelas religiões e a necessidade de uma separação efetiva entre igreja e estado. Não basta uma laicidade do estado pois, para ele essa laicidade é falsa e contaminada de cristianismo. A laicidade – e este ponto é de fundamental interesse para este ensaio – é relativista segundo Onfray, mas a episteme do funcionamento das coisas é cristã. O relativismo da laicidade luta para permitir que cada um pense o que quer, que acredite em seu deus, contanto que não demostre publicamente. Mas publicamente a religião laicizada de cristo comanda o baile.[16] O que ele pretende é superar essa laicidade relativista, que é danosa pois coloca em equivalência o erro e a verdade, o falso e o verdadeiro, o mito e a razão, magia e ciência. Tais equivalências são absurdas para Onfray e é precisamente na força desta equivalência que pode residir talvez melhores alternativas práticas. Mas antes de prosseguir é preciso algumas ponderações sobre o livro de Onfray.
Michel diz ter constatado (como?) o quanto os homens fabulam para evitar olhar o real de frente. “Os homens evitam o trágico”.  Parece plausível que muitas pessoas – eu dentre elas - prefiram o aprazível ao sofrimento e seriam capazes de abdicar de ações em nome da tranquilidade. Mas a pergunta é ainda maior: de quais homens ele se refere? Meu pai que morou na rua, foi preso político e conseguiu de lixão em lixão vender livros? A mim parece que ele olha de frente a realidade, sobreviveu acima de tudo. Será mais distante no tempo, na origem das sociedades? Uma classe geral de homens unidos que por generalização absurda se chama de humanidade? Provavelmente ele se refere do mundo ocidental e sua história nefasta, mas paira por detrás do jogo das palavras o velho estigma do filósofo com soluções generalistas e universais que supõe dar conta de uma realidade. Paul Feyerabend em seu livro “Adeus à razão”, é cirúrgico quando aponta o abuso de alguns intelectuais. Muitos filósofos, diz o anarquista epistemológico,
“...definem aquilo que é necessário saber e aquilo que é bom para a sociedade. Muitos intelectuais são a favor dessa abordagem autoritária. Eles podem transbordar de preocupação por seus pares, os outros seres humanos, podem falar de “verdade”, “razão”, “objetividade” e até de “liberdade”, mas o que realmente querem é o poder para reformar o mundo em sua própria imagem” (FEYERABEND, 2011. Pg.71)
Ou ainda, já que as aspas foram inauguradas:
“Desde o começo, os filósofos “críticos” definem as relações humanas a sua própria maneira intelectualizada. Parabenizando a si próprios por sua tolerância, eles são ou ignorantes ou desonestos, ou (minha suposição) as duas coisas” (FEYERABEND, 2011. pg 105)

Não existem coisas em si como homens, religião, deus ou ateísmo. Não se pode atribuir aos monoteísmos o apedrejamento de uma mulher iraniana, o massacre palestino ou a inquisição. Da mesma maneira não se pode atribuir aos iluministas o positivismo e o epistemicídio da verdade que produziu uma bomba atômica. É de pessoas que falamos e da ação delas individualmente ou coletivamente por meio de suas instituições. O que seria uma ética pós-cristã ou francamente laica?[17] Devemos sim nos interpolar sobre a real existência de éticas universais, ou mesmo que o comportamento frente a realidade possa ser determinado de acordo com essas éticas. A religião, este corpus da ética, é o que produz a menoridade, diz ele. Kant que nos perdoe, sua anedota foi válida frente ao que se interpunha, mas menoridade agora é produzida por faltas de oportunidade, acesso a educação e meios culturais, lazer, exclusão e marginalização. De que adiantará ao sujeito menorado ter consciência racional de sua mazela sem que estejam estabelecidas as possibilidades de enfrenta-las? Apropriado das classes universais como a religião, Onfray trava sua batalha com o moinho de ventos – literalmente – munido de rancor do passado das religiões e com isso consegue apenas não visar o presente e o futuro. A razão iluminista serve para esta batalha do mundo das ideias, mas não foi a razão ou o iluminismo, mas uma fé rígida (em deus ou no marxismo) a força preservadora mais poderosa nas prisões de Hitler[18]
O iluminismo, da forma que os manuais de história ensinam, foi um movimento filosófico do século XVIII que pregava o esclarecimento como forma de emancipação intelectual. Dando continuidade ao racionalismo do século XVII que rompeu com muitos dogmas da Igreja, o iluminismo preconiza a razão como meio de conhecimento mas também uma participação ativa nos debates, levar as discussões às diversas camadas da sociedade sempre tendo o homem como medida. A universalidade, a finalidade humana das ações e a autonomia são princípios determinantes deste período.[19] E são estes princípios que Onfray reconvoca para os dias atuais na forma de enfrentar a presença da religião nas instituições públicas. Mas a prática e o tempo mostraram que este iluminismo vencedor da história acabou por apenas substituir dogmas. Antes as histórias eram usadas na idade média e depois, uma vez mais, no iluminismo para instruir os fiéis e ensinar-lhes as maneiras sutis e aparentemente inocentes que o diabo (ou o irracional) pode usar para se insinuar nas suas vidas.[20] O Iluminismo parece pressupor que todos os seres são exclusivamente racionais e podem perceber com olhos próprios as inconsistências do mundo e repensá-las sob um ponto de vista particular. Ele presume que o único meio possível de discurso é o racional. Quem foi o ser a afirmar que coisas conflitantes sobre uma mesma situação requerem uma solução única? Tanto a religião quanto o ateísmo comungam deste absolutismo. A verdade está em deus para um e na ciência para outro. Mas qual verdade? O filósofo da ciência Paul Feyerabend defendeu amplamente que não existem padrões de conhecimento científico universalmente válidos.[21] O silogismo aristotélico, o empirismo e o método indutivo de Bacon, o método hipotético-dedutivo cartesiano, o modelo nomológico de Hempel, o falseacionismo de Popper, os paradigmas científicos de Khun, os conceitos nucleares de Lakatos, todos os esforços de compreender melhor ou encontrar uma unidade que pudesse se aproximar de uma definição da prática cientifica chafurdaram e nenhum deles estava errado. Não existe “a ciência pela ciência” como necessita Onfray para seu projeto. E não existe por duas razões. A primeira é por não existir nada em si mesmo; e a segunda é que os próprios cientistas e os filósofos da ciência não conseguem encontrar algo que a identifique cabalmente. O iluminismo é um slogan e não uma realidade.[22]
Bakunin alertou sobre o reinado da inteligência científica ser o mais autocrático, déspota, arrogante e elitista de todos os regimes. A ciência e as religiões são tradições e como tais devem ser tratadas de maneira igual e isto significa os mesmo direitos e oportunidades dentro de uma sociedade. Isso implica uma discussão de valores. Um médico em missão numa aldeia prescreve um raio X para detectar um problema e o nativo lhe diz que o que ocorre dentro dele não é de interesse de ninguém. Neste caso o desejo de conhecer e eventualmente curar da tradição científica se confronta à tradição da pessoa. Isso é falar de valores. O relativismo emerge aqui como um caminho diante da luta cega da verdade científica contra a verdade religiosa e entre uma verdade e outra, olhemos para a realidade. O fato concreto que enfrentamos hoje em uma grande amostra de democracias modernas pelo mundo é a expansão e o poder dos grupos religiosos dentro das instituições públicas e dos processos decisórios. Onfray opta diante do problema prático, por uma armada contra os monoteísmos, o que efetivamente não resolve o problema. O relativismo possibilita um caminho, mas em virtude da polissemia carrega pelo termo, precisamos dizer qual relativismo se apresenta.
Existem dois tipos de relativismo: o político e o filosófico. O relativismo político defende que todas as tradições têm direitos iguais e o mero fato das pessoas terem organizado a vida de acordo com certa tradição é suficiente para dar a essa tradição todos os direitos básicos. Um argumento filosófico para defender o relativismo político pode mostrar que as tradições não são boas ou más, mas simplesmente são e que assumem qualidade positivas ou negativas dependendo do ponto de vista de outras tradições.[23] O relativismo filosófico é a doutrina de que todas as tradições, teorias e ideias são igualmente verdadeiras ou falsas. Para ficar clara a distinção de ambos, o primeiro (político) lida com direitos e estruturas, já o segundo com crenças e atitudes. Essa diferença é fundamental pois Onfray, de maneira incontestável, critica a laicidade colocando em equivalência o erro e a verdade, o falso e o verdadeiro, o mito e a razão, está se referindo ao relativismo filosófico, o do mundo das ideias contrapostas e equivalentes. Mas em uma discussão sobre a sociedade que vivemos, faz-se necessário um relativismo político.
Em primeiro lugar, se podemos considerar que vivemos um uma democracia moderna e os sujeitos se dispõem nela, de quais sujeitos falamos? Stuart Hall dá grande contribuição quando distingue quais são os sujeitos do iluminismo e da sociedade pós-moderna. O sujeito do Iluminismo precisa ser centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação. O centro essencial do eu é a identidade de uma pessoa. Uma concepção individualista (masculina na maioria das vezes). Mas os tempos de hoje, que alguns chamam de pós-moderno[24] não guardam mais esta dimensão de sujeito. O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático. Sabemos do papel das emoções, da subjetividade e do subconsciente em nossas vidas. O sujeito pós-moderno tem identidade móvel, temos contatos com culturas diversas, internet, globalização, identificamo-nos com um espectro de símbolos e não somos nenhum deles. O sujeito de hoje pode perfeitamente apertar o terço na hora do pênalti, jogar os búzios para descobrir seu orixá, ler as mãos com a cigana analfabeta, discutir os signos para impressionar uma companheira(o) e, depois disso, ser partícipe ativo das discussões democráticas, defensor de um estado laico. Estamos falando de uma sociedade democrática e dos sujeitos que podem fazer esta sociedade possível.
A democracia é um meio – não um fim - para conquistar quaisquer demandas que um conjunto heterogêneo de pessoas deseja, por mais difícil que possa ser o estabelecimento das equidades de tradições. Em uma sociedade livre e democrática, todo cidadão deve ter o direito de buscar a verdade da forma que quiser. As sociedades dedicadas à liberdade e à democracia devem ser estruturadas de uma forma que dê a todas as tradições oportunidades e direitos iguais, ou seja, o mesmo acesso aos recursos federais, as instituições educacionais, às decisões básicas.”[25] Sociedade democráticas submetem questões importantes ao debate público.
O que conta em uma democracia é a experiência dos cidadãos, isto é, sua subjetividade e não o que pequenos grupos de intelectuais ou militantes autistas declaram ser real (se um especialista não gosta das ideias das pessoas comuns, tudo o que ele precisa fazer é conversar com elas e tentar persuadi-las a pensar de maneira diferente; ao fazê-lo, ele não deve esquecer de que é um pedinte e não um professor tentando socar algumas verdades na cabeça de alunos de castigo). (FEYERABEND, 2010, pg 357)

Sob este ponto de vista seria legítimo argumentar que no caso brasileiro é justo que os credos tenham direito de manifestação e que obtiveram seus cargos eletivos mediante um processo idôneo e democrático. À luz deste legalismo sim, mas basta um olhar mais atento para percebermos que cá não é isso que ocorre. Não estamos mais no século XVIII em que o combate à religião era um imperativo para desconstruir milênios de dominação. Abrimos lá a clareira para que passasse o racionalismo, o positivismo o cientificismo e substituímos os deuses. Agora, os inimigos são outros. Conhecimento é negócio, religião é negócio, educação é negócio. O público se dilui, terceiriza funções, assimila responsabilidades e medeia conflitos enquanto os conglomerados se formam, pastores deliberadamente se utilizam do púlpito para se fazerem deputados e aumentaram seus poderes. Outros compram canais de TV (concessões públicas) para produzir proselitismo 24 horas por dia sem nenhuma contrapartida ao bem público. Se os fiéis são ordenados a votar o fazem pela “natural espontaneidade’ democrática. A mim parece que neste sentido o problema concreto se dá na constituição dos poderes que permite determinados tipos de empoderamento a partir dos cargos eletivos. A pergunta simples revela o grau de preocupação. Por quais razões um sujeito investe dinheiro próprio, de empresas e pessoas para eleger-se se somadas os salários e as verbas de gabinete nos quatro anos não pagam a campanha feita? Evidentemente o problema está na constituição dos poderes da república e em sua sistemática de representatividade. Se o que regula a compra de um bem público por uma igreja é unicamente o mercado, claro está que o estado, nesta lógica neoliberal, tem pouco poder de regulamentação e nenhum de regulação. Uma vez mais evidentemente também nas condições de acesso à educação e meios de cultura que faz com que milhares de pessoas sejam excluídas e tenham no voto quase nenhum significado e no pastor ou na paróquia algum tipo de esperança de prosperar em um mundo desigual. E a solução é senão política, por meio de reformas em que sejam respeitadas as tradições todas em igual direitos e oportunidades. Não se trata de proibir concessões, mas de regulamentá-las e possibilitar que outras tradições se expressem nelas. Mas desta discussão, pela terceira vez, evidentemente o problema não está com o cristianismo, ou o judaísmo ou o islamismo.
Nem palavras e tampouco argumentos racionais modificam uma democracia, mas sim um debate público. Debates públicos são sobre as necessidades dos cidadãos, não devemos esquecer, e somente eles podem ser os melhores juízes dessas necessidades. São os cidadãos e não grupos especiais que tem a última palavra na decisão dos seus negócios. Se a democracia moderna se fundamenta sobre os direitos e a representatividade é de ser questionar a tentativa de suprimir direitos de expressão e credo religioso.[26] Edward Wilson nos lembra, a religião perdurará por muito tempo como força vital na sociedade[27]. Como o gigante mítico Antaeus, que extraía energia da sua mãe, a Terra, a religião não pode ser vencida por aqueles que meramente a desmerecem. Não se trata de uma guerra, mas de equidade de oportunidades e direitos a todas as tradições. Substituir a teologia pela filosofia, como defende Onfray é como trocar a carroça pelo ônibus. Um é mais tosco, apela para os argumentos de força e autoridade quando apertado, anda devagar e vai longe como se é amplamente demonstrado. O outro veio para substituir o antiquado, reveste-se de mecanismos rebuscados e metodológicos, afirma-se produtor de conhecimento, mas não oferece nada de novo. Em ambos, o que os une, é que se tem sempre a falsa sensação de estar no comando dos rumos.
A vida é feita de agruras, bonanças perdas ganhos. É diversa e tudo o que pode acolher é legítimo. Não se podem ignorar as religiões e as tradições enquanto amuleto metafísico. A maturidade iluminista de Kant não foi apresentada aos negros, que ele julgava inferiores. A estes o castigo físico. O iluminismo ocorreu em uma época em que alguns queriam afastar a religião porque em suas perspectivas ela era nociva, mas na perspectiva de outros a religião não, ao contrário, a religião era e é algo bom para muitos. Antes de ela ser um negócio. E hoje ela o é por contingências neoliberais. Independentemente disso, a criança precisa da segurança dos pais. O adulto precisa da segurança dos amigos. Mas o iluminismo tira isso e coloca só o conhecimento. A mim não vale. De que servem as partículas elementares quando eu quero me enforcar de desespero? Para isso o iluminismo e o ateísmo não trazem nada. Não existe a “vida em geral” e o conhecimento filosófico é conhecer as pessoas em suas individualidades. Aceito conselhos dos meus amigos que me conhecem, eles podem estar mais próximos de me ajudar, não o materialismo frio e racional que constrói uma estrutura que subjulga a todos os seres humanos e diz "nós somos os administradores dessa estrutura e se vocês não seguirem exatamente o modo dessa estrutura acontecerá algo terrível a vocês". O nome disso é tirania e toda tirania resulta da completa ignorância. “Isso é o homem, a verdade é negar deus ou isso ou aquilo... blá...blá...blá. Nós pesquisamos, produzimos coisas, aceitem e comam a arvore do conhecimento”. Os povos têm preocupações mais prementes do que a metafísica. E não me refiro aos tempos longínquos da formação das sociedades - também - mas pergunte às meninas sequestradas e estupradas pelo Boko Haram se elas vêm em deus a razão de seu problema. Foda-se o significado de razão ou deus, elas querem que aquilo passe, querem se ver livres. Não há razão ou deus transigente ao sofrimento ou à angústia dos problemas imediatos.  O que conforta é o que conforta e assume diferentes nomes e papeis.




Referências

CUNHA, Euclides da. Os Sertões: a campanha de canudos (vol.I e II). 1902. Ed. Três, São Paulo.
FEYERABEND, P.. Adeus à razão. Tradução de Vera Josceline. São Paulo: Editora Unesp, 2009.
FEYERABEND, P. A ciência em uma sociedade livre. Tradução de Vera Mello Joscelyne. São Paulo: Ed. UNESP, 2011
HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro, DP&A Editora, 1997.
LIMA, Flavia P., MOREIRA, Ildeu C.: Tradições astronômicas tupinambás na visão de Claude D’Abbeville. Revista da SBHC, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, p. 4-19, jan. — jun. 2005
ONFRAY, Michel. Tratado de Ateologia: física da metafísica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014.
RIBEIRO, R. J. A Democracia. 1. ed. São Paulo: Publifolha, 2001
SOUSA SANTOS, B. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 6. ed. São Paulo: Cortez. 1999



[1] Onfray, M. (2014, pg XIII)
[2] Leontiev, A (1978). O desenvolvimento do psiquismo
[3] Frutos típicos do Brasil
[4] Lima & Moreira, 2005
[5] Onfray (2014, pg. 42)
[6] Ibidem pg 52
[7] Ibidem pg 67
[8] Ibidem pg 69 e 79
[9] Ibidem pg 82
[10] Ibidem pg 98
[11] Ibidem pg 132
[12] Ibidem pg 157
[13] Ibidem pg 142
[14] Ibidem pg 152
[15] Ibidem pg 151
[16] Ibidem pg 187
[17] Onfray, M (2014, pg 42)
[18] Feyerabend, P. (2010, pg 125)
[19] Todorov, (2013). O espírito das luzes
[20] Feyerabend, P. (2010, pg 138)
[21] Ibidem, pg 18
[22] Ibidem, pg 19
[23] A distinção entre os relativismos e seu papel em uma sociedade livre se encontra em Feyeraben, P. A ciência em uma sociedade livre. Unesp, 2011
[24] Sousa Santos, Boaventura. Pela mão de Alice
[25] Feyerabend, P (2011, pg 50)
[26] Ribeiro, R.J., A Democracia
[27] On human nature. Harvard university press, Cambridge, 1978

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